UFRGS
12/03/2021

(Foto: CC BY-NC-ND 2.0)

Um estudo da pesquisadora Gabriela Birnfeld Kurtz, em seu doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sulanalisou a violência simbólica de gênero – e mostrou como ela acontece – nos jogos digitais Dota 2 e League of Legends (LoL). A pesquisa percorreu dois eixos teóricos diretamente ligados: as relações do gênero masculino com o feminino nesses jogos e a definição de jogos digitais e seus sistemas de regras. Gabriela, atualmente professora da PUCRS, categorizou as violências que ocorreram e criou o conceito “violência de jogabilidade-discursiva” a partir da pesquisa. Ela defendeu a tese em 2019 e foi orientada por Raquel da Cunha Recuero.

Os dois jogos que envolvem a tese de doutorado da professora são do gênero MOBA. A sigla vem do inglês “Multiplayer Online Battle Arena”, que significa “arena de batalha online para vários jogadores”, e caracteriza um jogo de estratégia em tempo real. Os jogadores são divididos em duas equipes, geralmente de cinco jogadores cada uma, para que se enfrentem nessa arena. O objetivo é destruir a estrutura principal que está situada na base inimiga (no LoL a estrutura é um grande cristal chamado “nexus”no Dota II é um trono), e o vencedor é quem fizer isso primeiro – uma espécie de xeque-mate do xadrez.

Gabriela conta que, para começar a pesquisa, usou como base suas próprias experiências no ambiente dos jogos. Ela notava que, apesar de certa agressividade ser bastante comum entre os jogadores em razão da competitividade, alguns xingamentos sofridos por ela eram muito diferentes. “Ninguém mais era mandado a ir lavar louça”, exemplifica. A partir dessas situações, um dos objetivos do estudo foi detectar como as mulheres sofrem esse tipo de violência nos jogos. O trabalho foi uma análise teórico-empírica, ou seja, a pesquisadora analisa teoricamente a existência de uma violência contra as mulheres no jogo e em seus recursos. Depois, utiliza exemplos práticos que comprovem a parte teórica. Para fazer isso, ela analisou seis vídeos de jogadoras na Twitch (uma plataforma de transmissão ao vivo de vídeos de jogos) a partir das dois eixos teóricos e de algumas hipóteses que levantou sobre como as violências de gênero acontecem geralmente.

A pesquisadora diz que críticas são muito comuns a esses estudos de cunho mais feminista – uma das críticas mais comuns, por exemplo, é dizer que os casos de violência encontrados são muito raros e pontuais. Para invalidar esses argumentos, ela adotou critérios que legitimassem seus resultados: assistiu às partidas mais recentes de forma aleatória; assim, tudo o que acontecesse seria surpresa para ela. Gabriela também evitou ter qualquer intromissão nas situações analisadas. Mesmo assim, a pesquisadora observou casos de violência simbólica de gênero.

A professora explica que a violência simbólica de gênero não precisa de força física para acontecer. De acordo com estudos da comunicação, essa violência está presente desde no nosso vocabulário (como em palavras com origem preconceituosa) até em atitudes do dia a dia, como atravessar a rua quando vemos alguém que nos causa desconfiança. Basicamente, ela acontece em discursos e outras manifestações comunicativas das pessoas de forma sutil, o que a torna muito eficiente para reforçar estruturas de exclusão de minorias na nossa sociedade. Gabriela dá um exemplo que notou nas análises: “Às vezes as mulheres eram muito elogiadas nas partidas, quando elas jogavam bem, o que parece bom, mas na verdade é como se os homens não acreditassem que elas pudessem jogar assim. E aí, por jogadas não tão boas assim, elas recebem elogios”.

A questão principal é que muitos elementos dos jogos acabam sendo usados para cometer agressões. Nesse ambiente virtual, a comunicação não acontece só por bate-papo de texto ou voz, mas também com mensagens pré-prontas (selecionadas com um comando, de maneira que quebre a barreira linguística entre pessoas de diferentes nacionalidades) e ações dos personagens (dancinhas, provocações, risadas). Esses elementos podem ser usados repetitivamente, com intenção de debochar, criticar ou irritar outros jogadores. Gabriela explica que até aí a violência simbólica de gênero não aconteceu necessariamente. No entanto, a partir do momento em que, apenas pela presença de uma jogadora mulher, esses comportamentos se apresentam, a agressão se concretiza.

Com as análises das partidas, Gabriela categorizou as violências presenciadas em diretas e indiretas. A violência direta é a mais comum, cometida por homens, a qual já esperava em suas hipóteses. Entretanto, as desenvolvedoras de jogos também foram incluídas nessa categoria, por sexualizarem o design das personagens femininas, mantendo um padrão de corpo esteticamente aceito e valorizado, enquanto os masculinos possuíam os mais diversos tamanhos, massas corporais e idade. Ela relata que, apesar de não ser uma violência tão nociva e não fazer com que as jogadoras se sentissem agredidas – até porque padrões estéticos são uma violência que as mulheres já vivem fora dos jogos –, esse detalhe mudou como outros jogadores se relacionam com as personagens, expandido a possibilidade de agressões a partir dos mecanismos do jogo. Já a violência indireta é aquela autoinfligida pelas próprias jogadoras, em casos nos quais elas se cobram demais, menosprezam a si mesmas por acontecimentos durante a partida ou anulam sua identidade por medo de sofrerem agressões. Gabriela conta que muitas mulheres que jogam utilizam um nome de usuário neutro ou masculino para se esconder, ou então nunca usam chat de voz. Em casos mais extremos, jogadoras mutam a partida – o que dificulta o jogo em equipe e piora a experiência geral dos jogadores.

O problema central de opressões simbólicas é que não há nada dentro dos jogos que as barrem. Em uma partida de quarenta minutos, pode ser que um jogador fique constantemente xingando outro das diversas maneiras possíveis. Se quem está sendo xingado sair da partida, sofrerá uma punição por isso. Entretanto, naquele momento, nada pode ser feito contra o agressor. De acordo com a professora, esse é justamente o poder da violência simbólica. É algo que atua em um sistema, é sutil e difícil de combater. Pessoas constantemente aprendem a agir dessa forma e não existe apenas um “vilão”, culpado por tudo.

Jogabilidade-discursiva

A violência simbólica estudada por Gabriela não é a mesma que foi teorizada por filósofos como Pierre Bourdieu e Michel Foucault. Na verdade, ela atua de maneira similar às teorizadas, por meio de comunicação em um círculo social – nesse caso, no ambiente digital dos jogos. A professora criou o conceito “violência de jogabilidade-discursiva”, que explica como funciona e em que esferas atua a violência simbólica e de gênero nos jogos digitais. Basicamente, o conceito quer dizer que a coerção ocorre de forma discursiva, comunicativa, dentro de mecanismos de interação dos jogos (além da conversa), mas com o detalhe da jogabilidade — ou seja, algumas regras e elementos que possuem um determinado intuito acabam sendo subvertidos de forma que a agressão aconteça. “É o fato de a pessoa utilizar as próprias regras do jogo para cometer uma violência simbólica, que atua de forma discursiva”, explica Gabriela. Essa brecha encontrada pode configurar também o griefing: um conjunto de atitudes que visam estragar a experiência dos outros jogadores. “A máquina não é capaz de dizer que isso é errado. Não é contra as regras. Só um jogador sabe dizer que isso está errado”, diz.

A professora esclarece que o computador só segue as regras que são colocadas no código do jogo. Por exemplo: não é possível atacar um colega de equipe, ele não vai tomar dano nem sofrer algum efeito negativo. Dessa forma, outros conceitos como a ética dos computadores e a ética dos jogadores se relacionam. O computador tem como ética apenas o que está incluso em seu código de programação e não consegue identificar algumas ações, mesmo que elas prejudiquem a experiência dos demais jogadores. Logo, as empresas desenvolvedoras precisam criar mecanismos que levem essas questões à ética dos jogadores, que conseguem perceber esses griefings. Ao fim das partidas, os participantes podem avaliar como os outros jogaram e relatar comportamentos errados. A partir disso, medidas como suspensão ou banimento podem ser tomadas. “É como fazer um gol contra intencionalmente: não é contra as regras, mas quebra a ética dos jogadores, que podem se sentir agredidos e desejar que esse colega de equipenão jogue mais”, exemplifica. No entanto, Gabriela ressalta que o sistema é falho, e, como são muitos jogadores, poucos relatos acabam causando efetivamente alguma punição.

Próximos passos do estudo e a relação com o contexto

A pesquisa de Gabriela Kurtz pertence a um ramo chamado game studies Esse ramo é novo e pequeno no Brasil. A pesquisadora conta que, em nível mundial, estudos do tipo qualitativo (que analisam uma amostragem pequena, com muitos detalhes) como o dela não têm tanta relevância até que sejam levados ao quantitativo (amostragem muito maior, análise de pontos principais). Em setembro de 2020, a professora realizou um pequeno estudo desse tipo, analisando a diferença de percepção de comportamentos tóxicos entre os gêneros. No entanto, ela deseja chegar a uma investigação de alcance nacional. A pesquisadora também quer estudar outros pontos: quais são as diferenças entre os gêneros feminino e masculino durante o jogo, o que as pessoas percebem como problemático, se a questão de ser uma partida ranqueada influencia as ações dos jogadores e ver como todos esses fatores influenciam na violência de jogabilidade-discursiva, inclusive em outras modalidades de jogos.

A pesquisadora pretende ainda trazer para as pesquisas outros eixos de análise, como a relação entre a política e perspectiva histórica do país com os comportamentos dentro dos jogos e o impacto desses elementos na competitividade entre os jogadores. Segundo ela, a competitividade incentiva uma lógica predatória, em que se busca incessantemente o melhor lugar e se valoriza a hierarquia. Isso leva a comunicações muito características, que às vezes revelam o pior de nós.

Gabriela também destaca o papel das empresas desenvolvedoras de jogos nesse processo: “É necessário um aprofundamento em relação às próprias questões políticas e estruturais que dão forma à indústria dos games, com vistas a compreender de que maneira o histórico e as políticas das empresas desenvolvedoras ‘enviesam’ o discurso de gênero nas suas produções. É importante entender se, de fato, há um plano para combater violências ou apenas ações pontuais que são realizadas após escândalos”.

TESE

Título: “Respeita aí” : os discursos e a subversão das regras como manifestações de violência simbólica de gênero nos jogos digitais Dota 2 e League of Legends
Autora: 
Gabriela Birnfeld Kurtz
Orientadora: Raquel Recuero
Unidade: Programa de Pós-Graduação em Comunicação. [1]

[1] Texto de Thiago Sória.

Como citar esta notícia: UFRGS. Não é só videogame: a violência simbólica de gênero em jogos digitais. Texto de Thiago Sória. Saense. https://saense.com.br/2021/03/nao-e-so-videogame-a-violencia-simbolica-de-genero-em-jogos-digitais/. Publicado em 12 de março (2021).

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