Marcus Eugênio Oliveira Lima
16/03/2021

(Imagem de Gerd Altmann por Pixabay)

Uma busca rápida na internet ou uma conversação cotidiana sobre motivações e desejos será capaz de inundar seus olhos e ouvidos com um termo clássico, mal definido e “pau para toda obra” da psicologia: o inconsciente. Interessado nesses usos e desusos do termo, procedemos a uma busca nas matérias de um Jornal de circulação nacional e encontramos o termo empregado em algumas das suas principais possibilidades. Possibilidade 1: A astrofísica e professora Marcelle Soares-Santos, analisando as barreiras para as mulheres na ciência, afirmou que existe “viés inconsciente”, que interfere nos julgamentos, favorecendo os homens (Boldrini, 28/02/2021) [i]. Possibilidade 2: A funkeira MC Carol, analisando o cancelamento social e a gordofobia, afirma que a luta contra os preconceitos e a militância feminista sempre estiveram presentes nas suas músicas, “mesmo que de forma inconsciente” (Malta, 08/03/2021) [ii]. Possibilidade 3: O estado do golfista Tiger Woods, depois de sofrer um grave acidente automobilístico, foi assim descrito: “Ele foi levado inconsciente para o hospital.” [iii]

Na possibilidade de uso nº 1, o inconsciente se refere a um tipo de preconceito implícito expresso sem controle consciente da maioria social, os editores de periódicos de sexo masculino, contra uma minoria social, as mulheres cientistas. No segundo tipo de uso, o inconsciente é concebido como algo (motivo, emoção, crença) que, de forma sub-reptícia, sem a percepção consciente do ator social, interfere nas suas ações. A terceira possibilidade de uso traz uma noção de inconsciente como um estado neural (físico) de perda de consciência por parte de um indivíduo. Em linhas gerais, essas três possibilidades dão conta do vasto espectro de usos do termo nas conversações cotidianas. Na primeira delas, o inconsciente tem um uso mais “social”, pois interfere na relação entre pessoas e grupos. Na segunda, ele descreve estados psicológicos individuais. Na terceira, serve para definir estados neurológicos. 

À luz da psicologia social, tentaremos, neste texto, demonstrar que o primeiro uso do termo “inconsciente”, que tem se tornado cada dia mais frequente, é equivocado. O preconceito nunca é inconsciente, pois o inconsciente não é capaz de descrever fenômenos de nível intra e entre grupos. No entanto, vamos começar a abordagem do termo pela sua origem, para, em seguida, falarmos de seu uso psicanalítico e de seus desusos sociais.

O inconsciente inicia sua carreira semântica na filosofia, a partir de Leibniz (1646-1716), para descrever percepções dos sentidos sobre as quais não se tomava ciência, formando algo que ele chamava de “não-sei-o-quê” [iv]. Se, na filosofia, o inconsciente era concebido como indeterminado e amorfo, na psicanálise ele ganha proeminência, sentido e conteúdo. Para Sigmund Freud (1856-1939), o inconsciente, como adjetivo, exprime conteúdos psíquicos não presentes no campo da consciência. Em um sentido “tópico”, o inconsciente se refere a um sistema do funcionamento mental humano, em oposição ao consciente e mais próximo do pré-consciente, os outros dois sistemas. Em termos de conteúdo, é constituído por afetos ou desejos recalcados, geralmente na infância, cujo acesso foi negado aos outros sistemas. Tais conteúdos, que representam as pulsões, são condensados e deslocados na luta para chegarem à consciência, para interferirem nos comportamentos. Eles conseguem isso, muitas vezes, por meio das “formações de compromisso” [v], depois de vencidas as resistências dos processos repressivos do ego. O inconsciente é, nessa concepção, um lugar ou sistema psíquico específico e com uma energia (pulsional) e dinâmicas também específicas [vi]. 

Com Carl Gustav Jung (1875-1961), o inconsciente psicanalítico passa a ter um significado mais mitológico, definido como “uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal”. Seus conteúdos “nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos”. Os arquétipos são entendidos como “pensamentos elementares”, formas “primordiais” ou “imagens inconscientes dos próprios instintos” da espécie. [vii]

O emprego do termo inconsciente na filosofia, como o indefinido e amorfo, e na psicanálise freudiana, como sistema psíquico habitado por conteúdos reprimidos e recalcados, descreve adequadamente os usos na segunda e terceira possibilidades que destacamos; seja como algo que interfere nas nossas ações individuais, mesmo sem sabermos (ou não podemos saber) o que é, como no caso das músicas de MC Carol; seja um estado neural de total “não-sei-o-quê”, como o que se encontrava Tiger Woods, depois do acidente. Nenhuma dessas acepções do termo é, contudo, capaz de explicar o uso do inconsciente feito pela cientista Marcelle Soares-Santos, ao referir um tipo preconceituoso de distorção de julgamento social. Mesmo a noção, digamos mais coletiva, do inconsciente por Jung, não consegue fazê-lo, uma vez que se situa no campo de uma simbologia mitológica hereditariamente adquirida. 

Quando estamos tratando de fenômenos das relações sociais, que envolvem, simultânea e inextricavelmente, indivíduos, papéis ou funções sociais, grupos, instituições e relações de poder, a exemplo da análise do preconceito sexista, sofrido pelas mulheres na ciência, as noções filosófica e psicanalítica do inconsciente são insuficientes e até encobridoras do que se pretende significar.

Um preconceito nunca é inconsciente! Isto porque ele é sempre socialmente aprendido, propagado e sancionado, não sendo algo da ordem de um sintoma individual (recalcado) que, para se manifestar, necessita de formações de compromisso específicas. O preconceito é da ordem do racional, do tático e do estratégico. Ele é um tipo de arma carregada que, quando necessária, é usada ou para manter o outro distante, acuado “no seu lugar”, ou, em situações mais extremas, para exterminá-lo. Eles, os preconceitos, não se relacionam com as nossas pulsões, sejam de vida, sejam de morte, e não foram adquiridos a partir de arquétipos dos instintos na nossa filogênese. São aprendidos ao longo dos processos de socialização, de forma direta, por mensagens explícitas sobre a inferioridade de alguns grupos e de seus membros, e, de forma indireta, por mensagens sub-reptícias, disfarçadas, a exemplo das associações culturais “família: pai-mãe-filhos”, “mulher: lar-maternidade”, “negros: pobreza-violência”, “homossexuais: descontrole-pecado”, dentre outras. Não obstante evidências da sociobiologia indicarem que uma criança, já ao nascer, possa amar mais aqueles que lhe são parecidos e próximos, não há base biológica e/ou instintiva para explicar o ódio ao outro “diferente” e distante [viii].

Entretanto, se descartamos o termo inconsciente para explicar o preconceito, como então entender o que aconteceu, e todos os dias acontece, com aquelas avaliações e julgamentos (de editores de periódicos ou consultores de agências de fomento, no caso relatado) que, apenas por olhar o nome, a cor, o gênero, a classe (…) de alguém, definem sobre a sua ida ao céu, purgatório ou inferno, mesmo sem consciência disso? Trata-se, nestes casos, de um preconceito implícito que ocorre no âmbito de um processo cognitivo automático.

O termo “automático” surgiu antes da psicanálise, por David Hartley, em 1749, para explicar dois tipos de funcionamento do corpo humano: “automático” e “voluntário”. A moderna psicologia cognitiva trata do fenômeno considerando a existência de duas formas de processamento das informações (“duas mentes”), interconectadas, os processos controlados e os automáticos. Estes são os que ocorrem sem intenção deliberada, sem percepção consciente e sem interferência com outra atividade mental [ix]. Quando os processos de funcionamento cognitivo automáticos interferem na percepção social, ou seja, de pessoas e grupos, temos o que a literatura da área psicossocial chama atitudes implícitas, ou “traços introspectivamente não identificados (ou identificados incorretamente) de experiências passadas que medeiam sentimentos, pensamentos ou ações favoráveis ou desfavoráveis em relação a objetos sociais” [x].

A esta altura, você deve estar imaginando que eu estou “apenas batendo a clara em neve”, como muitas vezes se supõe que nós, os cientistas sociais, gostamos de fazer, sem agregar nada novo, além de boa retórica. Não é o caso. Há implicações importantes, afetivas e políticas, em considerar o preconceito uma atitude implícita que se expressa de forma controlada e automática ou considerá-lo inconsciente. 

Quando dirigimos um carro que possui câmbio de marchas mecânico, com o tempo e repetidas associações de treino, nos tornamos capazes de mudar as marchas sem pensar em fazê-lo e mesmo sem perceber que o fizemos. Nesses casos, dizemos que automaticamente se criou um default, um tipo de mindset não deliberativo, que nos faz conduzir um carro de uma certa forma. Não seria apropriado dizer que “inconscientemente” trocamos de marcha, pois não há registro de recalques, instintos, pulsões ou arquétipos na produção desse comportamento.

Resguardadas as enormes diferenças entre aprender a dirigir um carro e aprender um preconceito social, a automatização do processo pode ser análoga. São as nossas experiências individuais e grupais passadas, de treinos associativos promovidos na e pela nossa cultura, que definem um certo mindset, que muitas vezes nos levam a exprimir julgamentos e atitudes preconceituosas sem que percebamos conscientemente. Uma espécie de defeito (default) de funcionamento, um mau hábito, como chamam alguns autores [xi], que é também um sintoma, mas não de um indivíduo que deseja expressar ou fazer algo conflitante com sua cultura ou superego; é sintoma social, de doença coletivamente transmissível e que pode, social e individualmente, ser curada. 

Voltando ao nosso motorista, o hábito de passar a macha pode ser “desnaturalizado”, com o simples exercício mental de se obrigar a pensar sobre o que está fazendo, deixando de ser automática a condução. Quanto à condução dos nossos julgamentos e ações, em relação aos grupos, atitudes sociais, a exemplo do preconceito, eles podem começar a deixar de ser automáticos, a partir de um controle individual e cultural/social/institucional, que nos faça perceber que associações estão em jogo, porque estão, a favor de e contra quem operam e como neutralizá-las ou revertê-las. Por isso, quando for referir-se a um preconceito do tipo “não-sei-o-quê”, use o termo “preconceito automático” ou implícito, para resguardar a ideia central de que tudo que foi culturalmente aprendido pode ser desaprendido e depois reaprendido de forma melhor. 

A discussão dos processos automáticos e controlados, seus impactos nas relações entre grupos sociais, é um excelente campo para imersões psicossociais. Esperamos que esta breve introdução a um tema tão amplo estimule novas leituras sobre o preconceito e suas manifestações.

[i] https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2021/02/barreiras-para-mulheres-na-ciencia-sao-concretas-nao-apenas-falta-de-motivacao-diz-fisica.shtml.

[ii] https://sonsdaperifa.blogfolha.uol.com.br/2021/03/08/cancelamento-bailes-na-pandemia-e-gordofobia-um-papo-com-mc-carol/.

[iii] https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2021/02/com-parafusos-na-perna-e-no-pe-tiger-woods-se-recupera-apos-cirurgia.shtml.

[iv] Abbagnano, N. (1998). Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes.

[v] “Forma que o recalcado assume para ser admitido no consciente, retornando no sintoma, no sonho e, mais geralmente, em qualquer produção do inconsciente. As representações recalcadas são então deformadas pela defesa ao ponto de serem irreconhecíveis. Na mesma formação podem assim ser satisfeitos — num mesmo compromisso — simultaneamente o desejo inconsciente e as exigências defensivas.” (Laplanche & Pontalis, 2011, p. 198).

[vi] Laplanche, J. & Pontalis, J. (2001). Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

[vii] Jung, C. G. (2000). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes (página 53).

[viii] file:///C:/Users/marcu/Downloads/OpenAccess-Lima-9786555500127%20(1).pdf.

[ix] Posner, M.I., & Snyder, C.R.R. (1975). Attention and cognitive control. In R.L. Solso (Ed.), Information Processing and Cognition: The Loyola symposium (pp. 55-85). Hillsdale, NJ: Erlbaum.

[x] Greenwald, A.G., & Banaji, M.R. (1995). Implicit social cognition: Attitudes, self-esteem, and stereotypes. Psychological Review, 102, 4-27.

[xi] Devine, P.G. (1989). Stereotypes and prejudice: Their automatic and controlled components. Journal of Personality and Social Psychology, 56, 1, 1-18.

Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. O inconsciente e o automático nas expressões de preconceito. Saense. https://saense.com.br/2021/03/o-inconsciente-e-o-automatico-nas-expressoes-de-preconceito/. Publicado em 16 de março (2021).

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