UFRGS
01/03/2021
Uma horta comunitária escondida ao lado da escadaria Gen. João Manoel. Para acessar a Horta Coletiva da Formiga, você pode subir a escadaria pela Rua Fernando Machado ou descer pela Rua Duque de Caxias. Bem no coração do Centro Histórico de Porto Alegre, esse terreno íngreme está rodeado de prédios, trânsito e transeuntes que sobem ou descem a escadaria, historicamente utilizada por pessoas em situação de rua que buscam abrigo.
Repaginado, o acesso à horta agora tem os degraus coloridos e, para entrar, é só parar na concha e virar à esquerda (para quem sobe). A vista é bonita, calma, arborizada, com clima ameno por conta da sombra que faz à tarde e o local está mais seguro.
No imaginário popular, quando se fala em horta, logo surge à mente um terreno plano, canteiros repletos de alfaces, cenouras, temperos verdes, algumas árvores frutíferas, sem cercas e aberta. Ao chegar à Horta da Formiga, esse ideário cai por terra. Para ter acesso ao espaço é preciso abrir um cadeado, ingressar em um corredor estreito e caminhar por calçadas. O espaço, cedido para uso em contrato de comodato realizado entre o coletivo da Horta da Formiga e a família proprietária da área, foi objeto de estudo da doutora Ana Clara Aparecida Alves de Souza em tese defendida em março de 2019 junto ao Programa de Pós-Graduação em Administração da UFRGS (PPGA).
A linha de pesquisa de Ana foi Inovação, Tecnologia e Sustentabilidade. A ideia era descobrir como agentes protagonistas em uma horta urbana coletiva conciliam as contradições inerentes a esse campo social.
A tese A conciliação de contradições inerentes à prática coletiva da agricultura urbana aborda a agricultura urbana na contemporaneidade como um movimento complexo e multifacetado. Para a autora, cultivar uma horta em uma área urbana é muito mais que plantar e colher, é desenvolver um laboratório social. Em sua pesquisa, emergem como fatores fundamentais na defesa da agricultura urbana diversos aspectos: sustentabilidade, resiliência, resgate de laços comunitários, revitalização de espaços ociosos, público ou privados, reconexão com a natureza, cultivo de alimentos, terapias ocupacionais, dinâmicas recreativas e educacionais, tratamento de enfermidades por meio de plantas medicinais e até mesmo a descoberta de plantas alimentícias não convencionais.
“A agricultura urbana é uma prática da agricultura nas cidades. Não é um fenômeno novo, mas na contemporaneidade tem alcançado visibilidade. Ela nasce, principalmente, com a migração de pessoas do campo para constituírem as cidades e pode ser configurada considerando múltiplas questões: sustentabilidade, resiliência, direito à cidade, alimentação, reconexão ou primeira conexão com a terra, entre outros”, explica ela.
Esse mecanismo complexo faz com que se envolvam áreas públicas ou privadas, coletivos organizados e a vontade de estar em contato com a terra faz com que a constituição de uma horta comunitária não seja uma tarefa tão simples assim. Entram em discussão outros pontos centrais que permeiam as cidades e que precisam ser enfrentados para construir essa conexão/reconexão com a terra. “Há pessoas que buscam esses espaços como uma fuga ou a lembrança de um passado; outras querem o primeiro contato com a terra, ou proporcionar aos filhos que saibam de onde vêm os alimentos e desfrutar um consumo orgânico. Do outro lado, estão tensionamentos próprios da cidade: a ocupação desses terrenos por pessoas em situação de rua que demandam moradia, moradores da vizinhança que possam ser contrários à atividade na horta. Ou seja, o fato de ocupar um terreno privado tem uma série de questões estruturais e sociais que antecedem”, diz a pesquisadora, que acompanhou por dois anos, in loco, a Horta da Formiga.
Mergulhada neste universo, Ana buscou compreender a dinâmica organizativa da Horta da Formiga, uma iniciativa de agricultura urbana coletiva, compreendendo a sua constituição e os seus engendramentos por meio de uma investigação participante. A questão central de tese justifica um estudo em Administração, uma vez que a intensão foi verificar como os atores protagonistas da horta conciliaram as contradições inerentes à vida social e ao movimento, garantindo que ele permaneça. “Minha pesquisa olhou para aquele grupo, que estava consciente dessas contradições, e viu como ele se mobilizou”, diz. Apoiada pela literatura, a pesquisadora aponta que a agricultura urbana pode ser pensada de uma maneira mais entusiasta ou de um ponto de vista mais crítico, que busca atender e responder a uma questão social ao mesmo tempo em que se contradiz. “Ficamos neste duplo movimento: a horta nasce dentro de uma estrutura social complexa e contraditória, preexistente, e cria ao mesmo tempo uma resposta a um problema urbano e a possibilidade de um processo de gentrificação . Essa é uma dupla faceta da agricultura urbana que precisa ser discutida”, salienta Ana.
Essa contradição é nítida pela necessidade de colocar um cadeado no portão de entrada da horta. São tensionamentos que acontecem no cotidiano do convívio social, inerentes a nossa estrutura, e que são questionados pela doutora. Assim, a Horta da Formiga é definida pela pesquisa como um campo social, na perspectiva de Pierre Bourdieu, em que se faz a análise relacional deste campo sem deixar de lado as relações de poder e dominação estabelecidas. “Há uma dinâmica social, e busquei identificar como se dá a conciliação de contradições. Acredito que o conhecimento científico existe para isso, para questionar, pois não se avança no conhecimento pela certeza, e sim pela dúvida. A horta mostrou que ela vai muito além daquele terreno: há uma série de questões de cidade que circulam ali e que precisam ser discutidas”, complementa a pesquisadora.
A acadêmica no debate do conflito social
Contato com pessoas em situação de rua, dependentes químicos, enfrentamento ao tráfico, aceitação ou não de moradores do entorno, ocupação de um espaço urbano ocioso, entre outros conflitos, permearam a implantação da Horta da Formiga. Por meio de diálogo, doações, inserção das pessoas nos mutirões se estabeleceu uma relação saudável entre todos.
Pesquisas como a de Ana têm a capacidade de pensar esses espaços e levar contribuições para a sociedade. No caso da Horta da Formiga, foi possível elencar uma série de problematizações possíveis. “Temos que pensar numa perspectiva macro para entender o fenômeno; o pensamento científico serve para isso: eu vou para aquele movimento e penso. Não se trata de um padrão de horta perfeito, mas sim de um laboratório social de provocação e reflexão”, diz ela.
Nesses dois universos distintos que dialogam, há o fator agricultura urbana que vai além de plantar e colher, passando a assumir um papel social, comunitário, coletivo. A Administração se faz presente neste espaço nas formas organizativas do organismo social, mostrando à pesquisadora as problematizações presentes ali, os tensionamentos sociais. “A horta construiu a tese, e eu me transformei durante o processo, me construí enquanto cidadã e pesquisadora”, frisa.
Trazer esse debate para a UFRGS permite que se pense a Administração como fundamento das formas organizativas da vida social, que está em tudo, como, por exemplo, na administração da vida do sujeito. A principal contribuição da tese é pensar o movimento social na perspectiva organizacional e refletir sobre como são esses tensionamentos no movimento social e como as pessoas se organizam para responder uma problemática.
Para a doutora, é preciso que o pesquisador esteja aberto para ver o que o campo está sinalizando, qual a problemática e como pensar sobre aquilo. “Sigo na horta como voluntária e analiso de que maneira levar essa vivência para o meu âmbito acadêmico, tentando promover essa conexão: vida acadêmica e sujeito social”, finaliza Ana. [1]
[1] Texto de Nicole Trevisol.
Como citar esta notícia: UFRGS. Uma horta no meio do concreto: pesquisa da UFRGS analisa a conciliação de contradições na agricultura urbana. Texto de Nicole Trevisol. Saense. https://saense.com.br/2021/03/uma-horta-no-meio-do-concreto-pesquisa-da-ufrgs-analisa-a-conciliacao-de-contradicoes-na-agricultura-urbana/. Publicado em 01 de março (2021).