Jornal da USP
09/04/2021

(Imagem de Barbara Dougherty por Pixabay)

Por Wânia Duleba, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades/Universidade de São Paulo, e Tássia Biazon, jornalista científica/Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano

No limite do mundo, distante de qualquer civilização, inóspito para muitas espécies, atravessando um mar revolto, lá está ele, o mais desconhecido de todos os continentes: a Antártida. Com uma área equivalente a 10% da superfície da Terra (14 milhões de km2), a maior reserva de gelo (90%), os mais intensos ventos (até 327 km/h), as mais baixas temperaturas (até -94,7°C), a Antártida é a região dos extremos.

Desde a antiguidade, a existência de um enorme continente, conhecido como Terra Australis Incognita, povoou o imaginário de muitos, como Aristóteles e Ptolomeu. Embora não haja registros probatórios, os primeiros a avistá-la devem ter sido habitantes da Terra do Fogo (Chile) ou maoris (Nova Zelândia), cujas lendas falam da existência de um país de gelo.

Em meados do século XVII, a pesca e a caça marítima expandiram-se para o Atlântico Sul, chegando cada vez mais perto da Antártida. E após o desbravador britânico James Cook cruzar três vezes o Círculo Polar Antártico entre 1772 e 1775, e ainda assim não encontrar o “fim do mundo”, o Ocidente voltou sua atenção para comprová-lo.

A (co)descoberta do último continente ocorreu no início do século XIX, com o protagonismo do britânico William Smith em 1819; do britânico Edward Bransfield, do russo Fabian von Bellingshausen e do norte-americano Nathaniel Palmer – estes três em momentos diferentes de 1820. Em seguida, o continente passou por acontecimentos históricos que podem ser resumidos em quatro fases: exploratória, heroica, científica e ambiental.

A primeira caracteriza-se pelo desbravamento e exploração econômica da região, com o protagonismo dos exploradores que lideravam expedições com cunho científico, como o britânico James Ross e o belga Adrien Gerlache, ou de caça às focas, como o norte-americano Nathaniel Palmer e o britânico James Weddell.

E antes dos exploradores desbravarem o interior do continente, rastros de impactos já estavam lá, exaurindo muitos dos seus recursos naturais. Por meio de frotas de diferentes países, milhões de focas, baleias e elefantes-marinhos foram mortos, levando as populações à beira da extinção. Um caçador experiente conseguia matar e esfolar mais de 60 focas em uma hora. Havia um ávido mercado que transformava a pele de animais em vestimentas e a gordura em combustível.

Concomitante à fase exploratória, inicia-se a fase heroica no início do século XX, marcada pela história do oficial britânico Robert Scott que foi suplantado pelo explorador norueguês Roald Amundsen, que conquistou o Polo Sul em 1911. Essas expedições subsidiaram reivindicações territoriais no continente por algumas nações, como o Reino Unido (1908) e a Noruega (1939).

Durante a Guerra Fria, interesses pela região se acentuaram entre os norte-americanos e os soviéticos. Então, a comunidade científica internacional organizou o Ano Geofísico Internacional (1957-1958), com a participação de cientistas de 67 países e a criação do Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica, que coordena as atividades científicas por lá. Assim, inicia-se a fase científica que perdura até hoje.

Em 1959, o Tratado da Antártida, assinado em Washington, foi um importante documento para proteger o continente, que defende principalmente a liberdade de pesquisa científica, o uso da região para fins pacíficos, a proibição de explosões nucleares e de novas reivindicações territoriais. O Brasil aderiu ao Tratado em 1975 e apenas em 1982 realizou a primeira expedição à Antártida, a bordo dos navios Barão de Teffé, da Marinha do Brasil, e do Professor W. Besnard, da Universidade de São Paulo.

Quando foram criadas as convenções para regularizar a preservação das Focas Antárticas (1972) e dos Recursos Vivos Marinhos da Antártica (1980), iniciou-se a quarta fase, a ambiental. Em seguida, foi proposta a Convenção para Regulação de Atividades sobre Recursos Minerais Antárticos (1988), que não entrou em vigor, mas foi substituída pelo Protocolo de Proteção Ambiental ou Protocolo de Madri (1991). Este confere à Antártida o status de Reserva Natural Internacional dedicada à ciência e à paz, bem como institui uma moratória à exploração de recursos minerais até 2048.

Até aqui, é possível perceber que a importância da Antártida se divide nos eixos econômico, geopolítico, científico e ambiental. Quanto ao viés econômico, em um mundo onde a água já é uma commodity, a reserva de 70% da água doce do planeta já engrandece o lugar. Países cobiçam reservas minerais antárticas de cobre, ouro, platina, prata, carvão e petróleo – estima-se 200 bilhões de barris de petróleo. Proibida na região, a exploração mineral é economicamente inviável, além de provocar desastres ambientais incalculáveis. O pescado é também outra cobiça, devido à abundância de peixes e krill – este último é uma das espécies-chave à manutenção da vida na Antártida, pois, se pescados em excesso, outros animais que se alimentam deles, como pinguins, declinam.

Quanto à geopolítica, há sete países que reivindicam territórios no continente, alguns com áreas coincidentes – reivindicações não reconhecidas pela comunidade internacional. Sem o Tratado da Antártida, com 54 países signatários, provavelmente conflitos aconteceriam por posse do território por interesses estratégicos ou para explorar recursos minerais e biológicos do continente.

Com um cenário único, a pesquisa no extremo sul é importante para gerar informações valiosas sobre o planeta e subsidiar tomadas de decisão quanto ao manejo e à conservação da região. Biotecnologia, bioprospecção, campo magnético, propagação de ondas de rádio, observação de raios cósmicos são exemplos de estudos realizados na Antártida – inclusive a descoberta do buraco na camada de ozônio, que confirmaram sua relação com os clorofluorcarbonetos.

A importância ambiental do último continente é crucial ao planeta. Ele controla o nível médio dos mares, forma a maioria das águas de fundo do oceano, interconecta as águas dos diferentes continentes, influencia o clima de todo o globo etc. – qualquer previsão meteorológica de longo prazo ou modelos climáticos globais utilizam dados da Antártida. Diferente do Ártico, a Antártida é formada por terra, que está quase completamente coberta por gelo com uma média de 2,5 km de espessura. Além de absorver o CO2, o gelo guarda informações da atmosfera do passado, subsidiando modelos paleoclimáticos que fundamentam pesquisas sobre mudanças climáticas. Enquanto em terra a vida é escassa, com pequenos organismos e quase ausência de plantas, no mar há uma rica trama de vida sustentada pelo krill, com pinguins, focas, baleias, peixes e aves.

Superando os extremos da região e movidos pela busca do conhecimento, neste momento alguns pesquisadores estão lá – inclusive brasileiros na Base Comandante Ferraz, reinaugurada em 2020, onde a ciência brasileira tem sido profícua. Um dos reflexos disso é o lançamento do documentário Antártica: O Continente dos Extremos, idealizado pela USP.

E se no passado houve muita exploração, aventuras e perigos, espera-se que os horizontes navegantes até o fim do mundo incentivem a preservação e a pesquisa do continente mais intenso da Terra.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Nem só de gelo vive a Antártida.  Texto de Wânia Duleba e Tássia Biazon. Saense. https://saense.com.br/2021/04/nem-so-de-gelo-vive-a-antartida/. Publicado em 09 de abril (2021).

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