Jornal UFG
26/05/2021

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A medicalização social, processo que contribui para que problemas psicossociais ou as mais simples diferenças humanas sejam consideradas doenças, tem sido objeto de estudo desde os anos 1970. Recentemente, houve um aumento no número dessas investigações devido ao grande consumo de psicotrópicos verificado nos últimos anos. Como poucas delas lançaram seu olhar sobre os educadores, a professora de Psicologia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), Gisele Toassa, realizou uma pesquisa a partir das licenças psiquiátricas de docentes de Goiânia que têm relação com o trabalho que eles desenvolvem.

A professora e os graduandos da equipe de pesquisadores se debruçaram sobre os dados encontrados nos documentos da Junta Médica Municipal: produziram estatísticas descritivas e análises qualitativas em 110 dos prontuários dos docentes que tiraram ao menos uma licença psiquiátrica entre os anos de 2015 e 2017. A partir daí, foi identificado o perfil social dos professores, que inclui gênero, renda, cor/ raça, número de vínculos, formação, entre outros. Somaram-se ao estudo mais dados relevantes, como os tipos de medicamentos utilizados; as queixas; os motivos das solicitações de licença, descritos pelos próprios professores e outros profissionais que mantiveram contato com eles; consequências psicossociais do adoecimento; terapias recomendadas.

Com as informações obtidas, foi possível realizar uma comparação entre esses professores que tiraram licença e o banco de dados do INEP que versa sobre os professores municipais de Goiânia. “Pela via qualitativa, traçamos o percurso que os educadores atravessam no seu processo de afastamento do trabalho. As descrições da psiquiatrização nas palavras dos próprios professores – de sua identidade, memórias, conceitos e afetos – são um conteúdo muito rico. Acreditamos que nossa pesquisa é de muito interesse na definição de políticas públicas educacionais”, explica Gisele. A implantação de um plantão psicológico focado em eventos dramáticos (como situações de violência escolar); a ampliação das opções de lazer, cultura e psicoterapia para os docentes; a criação de políticas “desmedicalizantes” e de grupos para docentes em situação de sofrimento psíquico são algumas das ações consideradas importantes pela professora Gisele para a construção dessas políticas públicas.

A medicalização implica em traduzir os problemas sociais para uma lógica biomédica, que vai do diagnóstico ao tratamento. Quando esse fenômeno é observado no campo da psiquiatria, emerge um processo que pode ser denominado de psiquiatrização. Em sua fundamentação teórica, a pesquisa traz as contribuições de estudiosos como Ivan Illich e Charles Tesser, que atribuem à medicalização o consumo exagerado dos serviços biomédicos e a rotina de tratamentos padronizados. “No caso dos prontuários pesquisados, vemos certas características em comum na psiquiatrização dos professores. Em diversos prontuários, há grandes disparidades nos relatos de diferentes sujeitos sobre o mesmo processo de adoecimento singular e também foi observado discrepâncias de diagnósticos: até oito diferentes para a mesma professora”, pontuou a professora Gisele.

Alguns aspectos podem ser identificados na psiquiatrização de docentes: o afastamento das atividades laborais é realizado, sem modificar o meio em que se originou o sofrimento; os professores começam a discursar nos códigos do sistema: diagnóstico, sintomas e medicação. Na readaptação ao trabalho, é feita a mudança de cargo, provisória ou definitiva, e muitos professores vão para secretarias ou bibliotecas para realizarem atividades que não exijam contato direto com os alunos: cortar papéis, atender telefones, cuidar dos livros. 

Seis hipóteses foram propostas no projeto original do estudo e, dentre elas, confirmaram-se a existência de desinformação sobre os transtornos psiquiátricos, bem como a falta de reflexão e autonomia dos sujeitos sobre o processo de medicalização. Outro ponto observado é que existe uma relação estreita entre os problemas de qualidade na educação pública e a medicalização dos professores, embora a pesquisadora acredite que essas relações ainda precisam ser melhor traçadas.

Com financiamento do programa de iniciação científica da UFG e com recursos próprios da equipe, a pesquisa está em andamento há três anos. “Estamos fazendo as primeiras análises integradoras desses dados, além de elaborar uma descrição narrativa do processo de adoecimento de cada professor do qual tenhamos registros mais extensos, o que consumiu muito do nosso tempo. Até o primeiro semestre de 2022, devemos desenvolver melhor o aporte metodológico, que se apresenta inovador no que se refere à análise dramática do adoecimento docente, e desenvolver mais estudos integradores e das referências bibliográficas, sendo todas as etapas feitas de forma democrática e colaborativa na equipe”, finaliza. [2]

[1] Imagem de mohamed Hassan por Pixabay.

[2] Texto de Luciana Santal.

Como citar este texto: Jornal UFG. Educar pode adoecer o mestre?  Texto de Luciana Santal. Saense. https://saense.com.br/2021/05/educar-pode-adoecer-o-mestre/. Publicado em 26 de maio (2021).

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