Jornal da USP
05/05/2021
Muita gente já ouviu falar em big data e algoritmo, mas poucos podem dizer que entendem o que significam essas palavras. De forma geral, pode-se dizer que a big data, por exemplo, é a formação de um banco imenso de dados que normalmente são utilizados como um dispositivo que distribui informações para empresas, à primeira vista. O algoritmo, também em termos gerais, é um conjunto de instruções, passo a passo, para alcançar um determinado objetivo. A ideia do artigo Vigilância negra: O dispositivo de reconhecimento facial e a disciplinaridade dos corpos, publicado na revista Novos Olhares, não é aprofundar-se nesses conceitos, mas sim discutir como esses dispositivos são usados atualmente e para quê, pois, segundo os autores, “a tecnologia não é neutra”.
Uma prova disso são as informações, muitas vezes confidenciais e comprometedoras, que passamos pelas redes sociais, seja no Facebook ou em buscadores como o Google, que geram um banco de dados e, a partir daí, os algoritmos alcançam seu objetivo – oferecer ao sujeito aquilo que ele gosta. Mas depois começam a aparecer, insistentemente, sites, muitas vezes falsos, com o propósito de “fisgar” o sujeito. Esses dispositivos tecnológicos são capazes de controlar e manipular o que vemos ou o que queremos ver. Esse contexto é base para entender o objetivo do artigo.
O texto foca nos dispositivos de reconhecimento facial, mostrando que, apesar de serem, a princípio, uma leitura biométrica, como a impressão digital, considerada útil “para praticidade e segurança”, seja substituindo chaves, por exemplo, ou na proteção de animais em risco de extinção, também são usados pela polícia para rastrear possíveis criminosos.
Trata-se, de fato, de reconhecer que a tecnologia, para as populações que sofrem de instabilidade social e econômica, é instrumento de vigilância e controle, pois, segundo dados do artigo, “90% das 151 pessoas detidas com base em câmeras de reconhecimento facial são negras”. A análise dessa questão parte da perspectiva do filósofo francês Michel Foucault – vigilância e disciplinaridade dos corpos; do conceito de mediação em que se cruzam cultura, política e comunicação do filósofo espanhol Martín Barbero; e da problemática da vigilância negra abordada pela educadora Simone Browne.
O reconhecimento facial é o resultado de um mapeamento de linhas faciais. Por meio de algoritmos, ele realiza uma comparação com “uma imagem digital, reconhecendo (ou negando) a identidade de alguém”. Como a tecnologia “ainda não apresenta eficiência completa no reconhecimento de pessoas negras de pele mais escura, principalmente mulheres”, as populações mais carentes estão mais expostas a constrangimentos e violências.
O artigo relata que um dispositivo de reconhecimento facial foi aplicado na Bahia, no Rio de Janeiro, em Santa Catarina e na Paraíba e, segundo o Departamento Penitenciário Nacional, “foram detidas 108.395 pessoas, das quais 66.419 são negras ou pardas, um total de 61,27%”, na clara evidência do preconceito racista do sistema criminal. Para os autores, “há um dispositivo de segurança que, com a face da neutralidade, aplica um algoritmo racista capaz de legalizar e culpabilizar robôs por práticas humanas: o genocídio do povo negro”.
As tomadas de decisão baseadas nesses dispositivos são motivo de desconfiança, pois quais são os critérios para rotular um indivíduo? O artigo aponta que “no Brasil, a violência, a criminalização e a pobreza continuam a ter uma cor“, segundo Rita Izsák, relatora das Nações Unidas sobre questões de minorias.
Finalizando, os autores deixam claro que se o reconhecimento facial é visto como ferramenta necessária capaz de oferecer praticidade e facilidades das quais o século 21 não mais pode prescindir, também é essencial estarmos cientes de que esse dispositivo “tem relações nítidas com a vigilância e o controle” e precisamos estar atentos, olhar sempre criticamente para eles com o intuito de compreender e questionar “as mensagens utópicas e os pesadelos latentes que podem ser encontrados” nessas tecnologias.
Artigo
MAGNO, M. E. da S. P.; BEZERRA, J. S. Vigilância negra: O dispositivo de reconhecimento facial e a disciplinaridade dos corpos. Novos Olhares, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 45-52, 2020. ISSN: 2238-7714. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2020.165698. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/165698. Acesso em: 02 fev. 2021.
Contatos
Madja Elayne da Silva Penha Magno – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPgEM) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
madjamagno@gmail.com
Josenildo Soares Bezerra – Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPgEM) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e doutor em Estudos da Linguagem na mesma universidade.
soares.bezerra@gmail.com. [1]
[1] Texto de Margarete Artur / Portal de Revistas da USP.
Como citar este texto: Jornal da USP. Qual o impacto da tecnologia de reconhecimento facial na população negra? Texto de Margarete Artur / Portal de Revistas da USP. Saense. https://saense.com.br/2021/05/qual-o-impacto-da-tecnologia-de-reconhecimento-facial-na-populacao-negra/. Publicado em 05 de maio (2021).