Fiocruz
01/07/2021

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Do meme ao cordel. Das cartilhas às hashtags. Pelo folheto. Pelo telefone. Pela tela do aplicativo. Em tempos de pandemia — e para além deles —, os profissionais da saúde buscam estratégias mais variadas para levar informação e se aproximar dos usuários com experiências de fazer inveja a qualquer profissional da comunicação. Radis apresenta algumas delas. Conheça nas próximas páginas a peleja do médico cearense contra a covid-19 e outras mazelas; o trabalho de educação per- manente feito por uma agente comunitária de saúde no interior do Piauí; a quarentena digital dos profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf), na “cidade das tapiocas”, na Paraíba; e as ações de uma turma de residentes na periferia do Rio de Janeiro.

O MÉDICO E O POETA NO FRONT

De jaleco, de frente para a câmera, Sávio Pinheiro afia o gogó num ritmo cadenciado: “Da China saiu em silêncio profundo / cruzou a fronteira mostrando o poder / feriu o planeta sem tempo a perder / Do homem tirou o viver mais fecundo / sem pena e sem dó agrediu todo mundo / matou, maltratou, pôs o povo a chorar…” Começa assim um dos muitos cordéis que o médico cearense natural de Várzea Alegre escreveu sobre o novo coronavírus.

Em quase 40 anos de medicina, ele já usou a literatura para falar com seus pacientes sobre tudo. Hanseníase e problemas do coração, gravidez na adolescência e doenças sexualmente transmissíveis, os males dos agrotóxicos, vírus, cocos e bacilos, todos mereceram folhetos. Certa vez, imaginou “A  peleja do fígado valente com Mané Garrincha”. Também o Sistema Único de Saúde ganhou páginas inteiras de rima. Mas é a primeira vez que ele conta sobre uma pandemia em versos.

No “front do coronavírus”, como resume em entrevista por telefone à Radis, vem enfrentando uma rotina que inclui atendimento em hospitais e plantões em postos de saúde de cinco cidades do Cariri cearense. Em um único dia, chegou a atender sete pacientes com covid-19. “Estamos trabalhando em condições muito difíceis em meio a tantos casos”, declara. O cordel sobre a pandemia no início deste texto, ele fez a convite de uma turma do mestrado em educação e saúde que funciona na região. Desde então vieram outros contos, crônicas e poemas, que vem usando com a sua equipe, nas consultas com pacientes e em programas de rádio para os quais é convidado. Nesta estrofe escrita em 29 de janeiro, doze dias depois de a enfermeira Mônica Calazans se tornar a primeira pessoa a receber uma dose de Coronavac no Brasil, Sávio reverenciou os esforços da ciência e da medicina: “Para o povo a sanidade / só virá com a imunidade / oriunda da vacina”.

Aos 63 anos, o médico também já está imunizado. Antes, bem antes, quando a vida ainda não girava em torno de uma pandemia, Sávio conheceu Ariano Suassuna e seu Movimento Armorial pelas ruas do Recife. Encantou-se. O baú de Suassuna — literatura, música e teatro num caleidoscópio infinito — fez a diferença no caminho do jovem estudante de medicina e futuro poeta. De volta ao Ceará, no início dos anos 1980, foi daqueles médicos que fez de tudo um pouco. “Um generalista”, ele diz, “que antigamente, ao chegar no interior, a gente não procurava uma especialidade”. Foi cirurgião, obstetra, anestesista, ortopedista. Médico da família, é um ardoroso defensor da saúde pública e do SUS, cuja implantação ele acompanhou desde o primeiro momento. Viu de perto a ideia dos agentes comunitários de saúde ganhar corpo e contribuiu com a criação do Programa Saúde da Família – hoje Estratégia Saúde da Família.

A propósito, toda essa aventura desde a origem do SUS até hoje ele narra no cordel intitulado “A história da saúde no Brasil”, que deveria ser leitura obrigatória para quem deseja entender melhor a gigante capilaridade do sistema público de saúde brasileiro. “Quando tem início o PSF, eu já estou totalmente envolvido com as experiências na área e naturalmente acabo fazendo parte da atenção básica”, conta. Na porta de entrada do sistema, para melhor se comunicar com a população, Sávio usou versos, pequenas peças, quadrinhas, cordéis. “A gente vai tentando utilizar o cordel para amenizar as dificuldades. Você se mistura com as pessoas, as pessoas se identificam com você e assim vamos procurando formas de envolver a todos”. Foi assim quando um pequeno poema de estímulo ao aleitamento materno passou a ser usado durante as consultas de pré-natal, mobilizando toda a equipe que se preparava para melhor declamar os versos com as gestantes. “Introduzi aquilo e notei que tinha um certo estímulo e que criava um incentivo dentro da equipe”.

Mais até do que informar os pacientes, o médico viu no cordel também uma forma de inspirar gestores e profissionais de saúde nas ações junto à população. A iniciativa virou o projeto “A literatura de cordel como Estratégia Saúde da Família”, que acabou ganhando reconhecimento no I Encontro de Experiências Exitosas da Estratégia Saúde da Família do Nordeste, que aconteceu em João Pessoa em 2006, e logo avançou para um segundo projeto: “A literatura de cordel como metodologia de construção social”. À sua maneira, misturando sintaxes e prosódias, Sávio foi construindo um verdadeiro movimento — o “Receitando Cordéis” — que lança mão da literatura para, a um só tempo, ajudar a conscientizar a população na prevenção de doenças e a transformar rotinas de trabalho e cotidianos de saúde. “Acho que a medicina é ciência, mas também é uma arte. Você tem que praticar com o coração, com a alma. Assim como a literatura”.

Desde 2009, o médico é integrante da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, onde ocupa a cadeira de número 35. Quando for possível, pretende lançar em forma de livro o seu cordel mais recente, “O romance do cruzeiro isolado e o parangolé do fuxico do vai e volta”— que não é exclusivamente sobre saúde e dá a volta ao mundo em 1872 estrofes. Mas esse é um plano que Sávio Pinheiro guarda para quando passar a pandemia, esse “tsunami”, que como ele bem traduz em seu cordel:

“Matou o carnaval e as festas juninas,
os cultos gigantes, a paz do obreiro,
do alegre estudante, o sonho certeiro,
do mestre, o contato com as disciplinas.
Da noite, tirou o amor das meninas,
nas casas, prendeu quem não foi trabalhar.
Castrou-nos, na marra, o dom de sonhar
de forma grosseira, macabra e temente,
mexeu com o pobre e com o rico valente
do chão, do agreste; sertão, beira-mar”.

ACS TROVADORA

Quando percebeu que a população da pequena Pio IX, no interior do Piauí, estava ficando mais confusa do que informada com as notícias que chegavam sobre a pandemia de covid-19, a agente comunitária de saúde Maria Marilene do Monte Carvalho não hesitou: reuniu conhecimento técnico e sabedoria popular para compor as 12 estrofes do cordel #Fiqueemcasa. Em versos claros feito água, o histórico do vírus, os sintomas da doença, as orientações e protocolos de segurança pareciam muito mais fáceis de assimilar. Marilene começava ali a quebrar a barreira junto a uma parte das 167 famílias que ela acompanhava.

“Era março de 2020 e fomos todos pegos de surpresa. Mesmo que não entrássemos nas casas das pessoas, notei que havia resistência da população em receber o ACS”, explicou por telefone à Radis. De uma pessoa da comunidade, ouviu que “aquele não era tempo de visitas”. “Eu precisava fazer alguma coisa”, decidiu. Sem recursos para impressão do folheto, estampou os versos em uma folha de papel. Colocou, ao final, seu telefone e os números disponibilizados pela Secretaria de Saúde para dúvidas e orientações. Distribuiu de bairro em bairro. Ao mesmo tempo, na sala de casa, com o celular, gravou um vídeo recitando o cordel e encaminhou para sua rede de contatos de WhatsApp.

A iniciativa surtiu efeito. “As pessoas começaram a me procurar e, ao mesmo tempo, outros profissionais da equipe passaram a divulgar o material”, disse. A ferramenta usada pela agente comunitária no município de 18 mil habitantes, que fica a 440 quilômetros de Teresina, foi uma das selecionadas na primeira fase da “APSForte no SUS — no combate à covid-19”, uma iniciativa da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS) para dar visibilidade às práticas desenvolvidas pela Atenção Primária à Saúde que se destacaram no cenário de crise sanitária vivida pelo Brasil. Durante um encontro online para falar sobre o trabalho, em julho do ano passado, Marilene pediu licença e surpreendeu ao fugir dos tradicionais slides e relatar a experiência — adivinhem? — em forma de cordel.

De lá para cá, ela fez chegar muitos outros vídeos e folhetos à comunidade. Em “Vamos conversar”, a agente comunitária recomenda: “Tem exame pra fazer Será que não pode esperar? Está precisando de receita Seu ACS pode lhe ajudar Ele agenda sua consulta Para não aglomerar Precisa tomar vacina Também podemos agendar Compareça no horário marcado Para não tumultuar Todas essas medidas É visando seu bem-estar”. Recentemente, compôs “Uma dose de esperança”, como uma forma de celebrar a chegada da vacina em Pio IX.

A cidade teve uma primeira onda mais branda, contou Marilene, mas desde o relaxamento das normas de segurança em dezembro vem enfrentando um número recorde com 821 casos confirmados e 17 mortes, segundo o boletim epidemiológico da Secretaria de Saúde do Piauí em meados de maio. A agente comunitária de saúde não descuida. “O cordel da vacina eu distribuí para cada pessoa que recebia a imunização. Ele fala sobre a esperança em cada dose, mas ao mesmo tempo explica que todos devem continuar se protegendo”.

Assim como o médico cearense, Marilene descobriu nessa arte milenar um poderoso aliado para se comunicar com a população. O cordel entrou em sua vida ainda bem antes de ela se descobrir agente comunitária de saúde, há 20 anos. Escrevia para si mesma. “Em alguns momentos, era como eu conseguia desabafar. Em um período pessoal de muitas dificuldades, foi onde encontrei a ponte para, digamos assim, não entrar numa depressão”, revelou. Tornar-se uma agente comunitária de saúde não foi a primeira escolha de Marilene. Nem a segunda. Fez o curso técnico, sem acreditar muito que seguiria na profissão. No meio do caminho, formou-se em pedagogia. “Eu ouvia de todo mundo que nasci para ser ACS, mas não acreditava nisso”. Hoje, costuma dizer que foi Maria Marilene: de mãos dadas com a sabedoria popular escolhida para seguir nesse trabalho de promoção de saúde e prevenção de doenças. “Me encontrei. É onde faço o que sei de melhor: tento ajudar as pessoas”.

Faz isso com o auxílio inestimável do cordel. “As pessoas entendem com mais facilidade as informações que a gente deseja passar”, ressalta. A inspiração pode surgir durante uma visita domiciliar, ouvindo histórias pessoais ou enquanto lê. Costuma dizer que “é um filme que vem na cabeça e não passa”. “Enquanto não coloco no papel, aquilo ali fica digitando na minha cabeça”. Ela ainda lembra a primeira vez que usou os versos para se dirigir à população. “A gente tinha uma dificuldade muito grande de trazer as gestantes para as palestras, que normalmente eram feitas com datashow e só quem ficava na frente, falava”, relembrou. “A gente queria fazer uma coisa diferente e fizemos só um versinho para convidar as pessoas”. Naquele dia, conseguiram atrair 19 mulheres grávidas e ainda uma avó e um pai como acompanhantes. Antes, esse número não passava de três.

Depois, vieram as campanhas de vacinação também convocadas via cordel. Qualquer evento na unidade de saúde, cordel. Setembro Amarelo ou Outubro Rosa, cordel. O SUS também ganhou folheto — “Fiz questão de mostrar em cordel o SUS que dá certo. A mídia só mostra o que dá errado”, disse. Também as notícias fraudulentas vêm sendo combatidas verso a verso por Marilene. “No início da pandemia, percebi que as pessoas estavam adoecendo também por conta da disseminação das fake news e fiz um cordel específico”. Além de informação segura, ela descobriu que o apoio emocional também é importante durante a quarentena. Agora, costuma dedicar alguns de seus versos a esse aspecto da pandemia. “Hoje, acho que, mesmo distante, consegui ficar mais próxima da minha comunidade”, surpreende-se Marilene. E isso também pode virar cordel.

#QUARENTENASF E OUTRAS HASHTAGS

Segunda-feira: “Treino em casa”. Terça-feira: “Arrasta para o lado”. Quarta-feira: “Quarta tem live”. Quinta-feira: “Passo a passo”. Sexta-feira: “Cinenasf”. Durante alguns meses, essa foi a agenda proposta pelo Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) de Caldas Brandão, no interior da Paraíba. Impossibilitados de realizar as atividades coletivas e presenciais no período da pandemia, os profissionais decidiram inventar uma maneira de se aproximar dos usuários à distância, sem perder de vista a promoção do cuidado e a prevenção em saúde. Para isso, lançaram mão das redes sociais e, pelo Instagram, sistematizaram as ações possíveis. A estratégia ganhou nome em forma de hashtag — #Quarentenasf — e em pouco tempo conquistou o interesse e a adesão da população.

Em três meses, o perfil criado em março do ano passado no instagram já contava com mais de 200 seguidores — hoje tem 1.500. Com uma média de 600 visualizações diárias e interações que chegavam por meio de respostas nas lives, comentários nas postagens, participações nas enquetes, o projeto era também uma via de mão dupla, um canal de diálogo para tirar dúvidas e encaminhar demandas da po- pulação relacionadas à pandemia. Funcionava assim: a cada semana, a equipe multiprofissional trabalhava um conteúdo específico para encaixar na programação diária fixa, a partir de linguagem simples e materiais audiovisuais voltados para determinado público.

Por exemplo, enquanto na segunda-feira era possível aprender os exercícios de um treino de intensidade moderada para ser executado em casa, no dia seguinte, um vídeo no “Arrasta para o lado” ensinava didaticamente a forma correta de fazer a higienização das mãos ou como lavar frutas e verduras. Na quarta-feira, uma live poderia discutir com a população o aumento dos casos no município, enquanto na quinta, um guia ilustrado demonstrava como falar de covid-19 com as crianças. A sexta-feira era dedicada às dicas de cinema sempre articuladas com a temática da semana — o primeiro filme sugerido foi a animação “Divertidamente”, uma maneira original de abordar a ansiedade e outros medos.

Nem mesmo a falta de acesso à internet de boa parte da população do município virou impedimento para o sucesso do projeto — nesses casos, as postagens se transformavam em cartilhas gráficas que, depois de impressas, contavam com o apoio dos agentes comunitários de saúde para a distribuição entre os usuários. Foi assim com o guia sobre alimentação saudável ou um oportuno tira-dúvidas sobre quando ir à unidade de saúde com sintomas da covid ou como cuidar de um paciente em casa sem risco de contaminação para o restante da família. “Quando a gente trabalha com educação em saúde, esperamos que a informação não fique só com quem a recebe, mas que seja multiplicada. Com esse projeto, conseguimos isso”, diz Laís Santos Castro, uma das idealizadoras do #Quarentenasf.

Laís é educadora física. Logo no início da pandemia, ela costumava se perguntar: “Como fazer um trabalho educativo de enfrentamento à pandemia sem as ações coletivas? Como inspirar novos hábitos de prevenção à saúde e qualidade de Equipe do Nasf de Caldas Brandão (PB): promovendo o cuidado online vida nesse contexto?” As indagações eram comuns aos outros integrantes da equipe — além da educadora física, o Nasf de Caldas Brandão oferece serviços de fisioterapia, psicologia, fonoaudiologia, nutrição e assistência social. Para Laís, o grande diferencial do projeto foi justamente a sistematização das atividades multidisciplinares de maneira que as redes sociais fossem usadas não apenas como uma ferramenta institucional e burocrática de difusão de informação, números e estatísticas, mas também de educação.

Há outro detalhe não menos importante destacado por Laís ao falar sobre o projeto. “Em um momento em que as redes vêm sendo usadas para espalhar fake news e dificultar o trabalho em saúde, divulgando informações que não são reais e deixando as pessoas com medo das vacinas, por exemplo, a gente fez o caminho inverso”, analisa. “Se dá pra construir mentiras nessas redes, também dá pra desconstruir”. O mais difícil para a educadora física foi encarar a timidez. Sem contar com profissionais de comunicação para auxiliá-los com os materiais, cabia aos integrantes da equipe de saúde produzir os vídeos. “Foi a união dos nossos talentos”, brinca.

Caldas Brandão fica a 52 km de João Pessoa. É conhecida como “a cidade das tapiocas” e tem cerca de 6 mil habitantes. Por se tratar de um município pequeno, o número de casos de covid-19 é menos expressivo que na maior parte do país — em meados de maio, contava com uma média semanal de 14 casos; no total, sete pessoas haviam morrido em decorrência da doença. Mesmo assim, o #Quarentenasf somou esforços e fez a diferença no combate à pandemia, ficando também entre os selecionados do prêmio da Opas/ OMS. “Sem invencionices, sem fórmulas mágicas, sem mirabolâncias”, continua Laís, “a gente conseguiu pensar em saídas e formas de estruturar o conhecimento científico para produzir respostas no contexto de crise que estamos vivendo”.

Com os serviços presenciais no município retornando gradativamente, o projeto entrou em uma nova fase, bastante desafiadora. Inclusive, porque, segundo Laís, há questões de ordem burocrática que não podem ser desconsideradas, como a chegada do Previne Brasil — novo modelo de financiamento para APS que, na opinião da educadora física, compromete a existência dos Nasf. Além disso, a equipe percebeu um certo cansaço da população que, diante de tanto tempo em isolamento, começou a demonstrar desinteresse para fórmulas como a das transmissões online ao vivo — se no início do #Quarentenasf, uma live atraía cerca de 90 pessoas a cada quarta-feira, nas últimas exibidas, esse número já não passava de 15.

Seja como for, o #Quarentenasf deixou frutos. “É uma experiência nascida do chão da atenção básica e que mostrou a nossa capacidade de produzir respostas efetivas”, diz Laís. Entre os desdobramentos do projeto, ela cita o trabalho de telemonitoramento dos pacientes com covid implementado em Caldas Brandão a partir dessa experiência e ainda um intercâmbio com o município vizinho de Gurinhém.

CUIDADO EM REDE

Thayná Miranda tem 24 anos, é dentista e está no segundo ano do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Mal havia começado a pandemia, em março do ano passado, quando ela e uma equipe de residentes — uma enfermeira, um psicólogo, uma nutricionista e uma assistente social — chegaram à Clínica da Família Anthídio Dias, no Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. Diante dos desafios impostos pelo isolamento social e da total ausência de campanhas educativas por parte dos órgãos oficiais, decidiram utilizar as redes sociais como estratégia para se comunicar com os usuários, divulgando ações e serviços.

Os profissionais da clínica já mantinham assiduamente uma página no Facebook. Mas o pulo do gato se deu com um perfil criado pelos residentes para o Instagram, em que podiam utilizar a linguagem do vídeo e outras ferramentas da plataforma para se aproximar da comunidade. O perfil acabou funcionando como uma espécie de diário de campo das atividades do “Pé no Jaca” — o nome do grupo é uma brincadeira com a famosa expressão popular e a forma carinhosa com que os residentes se referem ao bairro. A partir dali os seguidores do perfil passaram a ser brindados com um conteúdo diversificado cujo foco era o cuidado.

Em 20 de maio de 2020, a enfermeira residente Quésia deu dicas sobre o manuseio das máscaras; em 11 de junho, foi a vez da nutricionista Clarice falar aos usuários sobre alimentação, contestando as mensagens que circulavam na Internet com promessas de receitas milagrosas contra o novo coronavírus; e no dia em que a lei 8.080 completou 30 anos (25/9), os residentes gravaram um vídeo em que o psicólogo residente Gabriel explicava a importância da lei que regulamenta o SUS. Um dos vídeos preferidos de Thayná é o que acompanha os residentes numa ação junto à equipe do Consultório de Rua. Um outro conteúdo produzido pelo “Pé no Jaca”, com o caminho percorrido pelos ACSs até a casa dos usuários para vacinar os acamados, foi compartilhado inclusive pelo secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, um assíduo seguidor das postagens do grupo no Instagram.

Além disso, há dicas de filmes e livros e uma websérie, “Dona Gê e a horta” — pequenos vídeos sobre uma moradora do Jacarezinho e voluntária da clínica e a relação que ela mantém com a comida que planta na horta comunitária da CF Anthídio Dias. “Acho que a comunidade se reconhece nessas iniciativas e essa sensação de pertencimento é valiosa”, disse Thayná por telefone à Radis, ressaltando a capilaridade do SUS e toda a riqueza dos territórios que devem ser valori- zadas em qualquer política voltada para a Atenção Primária.

O uso das redes pelo grupo “Pé no Jaca” foi apenas uma das práticas compartilhadas em maio, durante o XV Ciclo de Debates da Residência Multiprofissional em Saúde da Família ENSP/Fiocruz. Coordenada pela professora Maria Alice Pessanha, uma roda de conversa online apresentou um belo panorama de “experiências para os vazios do SUS e a ampliação do cuidado”. A psicóloga residente Amanda Marinho explicou as estratégias que sua equipe utilizou, aproximando-se da dinâmica veloz das redes sociais para trazer informação e comunicação para os usuários da Clínica da Família Amélia dos Santos Ferreira, no bairro do Encantado.

Letícia Parente, enfermeira, contou como o trabalho de comunicação nas redes vem ajudando no combate às fake news. No conjunto de ferramentas que desenvolveu junto com sua equipe na CF Wilma Costa, na Ilha do Governador, destaque para o “Fala, Wilma!”, um canal para compartilhamento de vídeos e outros materiais informativos. Mas eles também não dispensaram os cartazes e fôlderes, que continuaram sendo utilizados no território. Para Ana Luisa Kuehn, que montou uma verdadeira linha de produção de vídeos para WhatsApp com os profissionais de educação física do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, em Manguinhos, todo o conteúdo produzido é importante para combater as notícias fraudulentas e disseminar informação de qualidade. A educadora física ressaltou a importância dos formatos digitais durante a pandemia para adesão à prática de exercícios e bem-estar físico e mental dos usuários no período.

Em comum, as experiências revelam uma comunicação em saúde que amplifica cuidados. Em sua fala, Alan Nogueira, egresso do programa da Ensp, ressaltou que “comunicação pode salvar vidas” e fez uma análise quantitativa e qualitativa das interações dos usuários durante seu trabalho na coordenação das redes sociais na CF Epitácio Soares Reis, na Pavuna.

Assim como o “Pé no Jaca”, a experiência apresentada pela nutricionista Sophia Rosa foi realizada na Clínica da Família Anthídio Dias, no Jacarezinho, ainda antes da pandemia, quando era possível desenvolver ações presenciais. Construída a 14 mãos por ‘jacaroas’ formadas pela Ensp entre 2018 e 2020, como fez questão de frisar a nutricionista egressa do programa, a experiência-xodó do grupo foram as assembleias populares — encontros que incentivavam o espírito coletivo, propunham um diálogo entre comunicação e participação dentro do SUS e que muito aproximaram trabalhadores e usuários em um território que sofre com a violência do Estado e as guerras entre facções. O debate transmitido online aconteceu na manhã em que uma operação policial no Jacarezinho deixou 28 mortos. Radis participou da roda de conversa com os residentes, cuja íntegra você pode conferir aqui. [2]

[1] Imagem: Radis / Fiocruz.

[2] Texto de Ana Cláudia Peres.

Como citar esta notícia: Fiocruz. Histórias do SUS em verso e prosa.  Texto de Ana Cláudia Peres. Saense. https://saense.com.br/2021/07/historias-do-sus-em-verso-e-prosa/. Publicado em 01 de julho (2021).

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