Fiocruz
30/07/2021
Um menino negro e pobre da Bahia que se torna um dos mais importantes nomes da ciência brasileira, com contribuições inúmeras para a saúde. Este foi Juliano Moreira, considerado fundador da psiquiatria brasileira, cujo nome é homenageado em diferentes instituições de saúde no país, mas que continua desconhecido de boa parte das pessoas. Com o intuito de reparar este erro, a pesquisadora Ynaê Lopes dos Santos, professora da disciplina História da América no século 19, no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), escreveu o livro Juliano Moreira: o médico negro na fundação da psiquiatria brasileira, lançado em 2019 e disponibilizado gratuitamente no site da Eduff (https://bit.ly/36RL93G).
“Todo mundo já ouviu falar de Juliano Moreira, sobretudo quem é da área de história das ciências, da psicologia e da psiquiatria, mas geralmente não sabe nem que ele era um homem negro, nem a importância efetiva que ele teve na constituição do campo da psiquiatria no país”, justificou Ynaê, nesta entrevista que concedeu à Radis. Na conversa por telefone, a historiadora falou sobre a vasta produção de Juliano, que viveu entre 1872 e 1933, e destacou a importância que teve na desconstrução da teoria da degenerescência racial — que, em sua época, associava doenças à mistura de raças.
O cientista não somente contestou cientificamente esta tese disfarçada de racismo, como deixou inúmeras outras contribuições para o campo da medicina, como o estudo da sífilis — sua tese de formatura, defendida aos 18 anos, até hoje é uma referência no assunto — e o pioneirismo na divulgação científica, entre outras áreas. Mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Ynaê mergulhou na história de Juliano com o interesse de registrar a vida de um dos mais importantes intelectuais do período republicano no país e acabou descobrindo um terapeuta do afeto, um homem reservado e comprometido que revolucionou a saúde mental, mas que no cotidiano também era reconhecido por sua extrema bondade. Nas palavras do escritor Lima Barreto, “um homem que conseguia ver e enxergar o indivíduo”, como revelou Ynaê, nesta entrevista.
Atualmente concentrada na escrita de um livro sobre a história do racismo no Brasil e na produção de uma pesquisa sobre intelectuais negros nas Américas, Ynaê partiu da vida e da obra de Juliano Moreira para também refletir sobre a atual situação do racismo no país. “Juliano Moreira é uma exceção, com sua história incrível e maravilhosa, mas é a confirmação de toda a negação. Tudo o que ele era, era negado aos homens negros, por serem homens negros. E isso não mudou, porque essa é a estrutura do racismo”.
Em 2020 você lançou o livro Juliano Moreira: o médico negro na fundação da psiquiatria brasileira (Eduff). Por que decidiu biografar o Juliano?
Quem me apresentou o Juliano Moreira foi minha mãe, há uns 15 anos. Ela trabalhava no Museu Afro-Brasil e eu ainda estava no mestrado. “Que história incrível!”, eu pensei. E fiquei com aquilo guardado na cabeça. Em 2015, a Capes abriu um edital sobre personagens da história republicana no Brasil. O livro é resultado da minha pesquisa individual, que está em um projeto sobre os personagens negros que fizeram parte da história da República brasileira de uma forma bem central, mas que muitas vezes permanecem desconhecidos. Foi assim que eu adentrei no mundo do Juliano Moreira, que foi também a melhor forma de eu entrar no mundo pós-abolição — até então eu trabalhava só com a história do Brasil e das Américas no período da escravidão.
Pensando no Juliano ainda como uma figura desconhecida do grande público, como foi levantar informações sobre ele?
Existe muita coisa, mas eu tive muita dificuldade, porque boa parte do material sobre ele está num arquivo na colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, de forma muito pouco organizada. Juliano foi um homem que produziu uma quantidade colossal de pesquisa, atravessou todas as grandes questões da época dele — sobretudo as questões relacionadas ao universo da ciência e da psiquiatria. Sua produção acadêmica é algo impressionante, mas parte dela está nesse arquivo que, quando eu comecei a pesquisa, estava todo desmontado. Eu teria que ter uma equipe para me ajudar a organizá-lo, mas infelizmente a gente não tinha verba para isso. Então eu consegui fazer uma pesquisa a partir da documentação que eu encontrei em Salvador, e algumas coisas que estavam na faculdade de psicologia da UFRJ. Também tive acesso a muita coisa da hemeroteca digital, graças à digitalização dos periódicos da Biblioteca Nacional. Mas ainda tem muita coisa para pesquisar, é apenas uma ponta de iceberg. Ele é um colosso.
E mesmo com uma produção vasta e importante, ele ainda permanece desconhecido…
Pois é. Todo mundo já ouviu falar de Juliano Moreira, sobretudo quem é da área de história das ciências, da psicologia e da psiquiatria, mas geralmente não sabe nem que ele era um homem negro, nem a importância efetiva que ele tem na constituição do campo da psiquiatria no país.
No seu livro, você apresenta Juliano Moreira como um dos primeiros homens a apontar que a problemática racial no Brasil (e no mundo) foi e é uma questão social, e não biológica. Essa realidade persiste?
De certa forma, sim. Juliano Moreira foi um homem negro que conseguiu ocupar um lugar de destaque na sociedade, se transformou num dos maiores cientistas do país — se não o maior — e também no diretor do maior hospício do país. Ele também foi responsável pela implementação das políticas públicas em relação às doenças mentais, ocupou um espaço de poder até a sua morte, mas curiosamente as análises que existem sobre ele geralmente não tocam nesse papel central que ele tem, de ser uma voz dissonante dentro da intelectualidade brasileira. Ele foi um intelectual, um cientista, que não só foi contrário à teoria da degenerescência racial, como comprovou sua teoria do ponto de vista científico. Ele antecipou, no final do século 19, questões que só seriam tratadas efetivamente na segunda e na terceira décadas do século 20. Ele era um homem do seu tempo, mas que fez uso deste duplo lugar, de homem negro e de alguém que conseguiu ocupar estes espaços, para pensar o mundo a partir de uma outra perspectiva — uma perspectiva que depois a ciência mostrou que é a correta. Só que, do ponto de vista sociológico, o racismo é uma realidade que nos estrutura e que está arraigada na falsa ideia de uma supremacia branca, que pode se dar tanto do ponto de vista biológico, como se acreditou durante muito tempo, como do ponto de vista cultural, social, dos ideais civilizatórios. Juliano também questionou isso dentro da própria ciência.
Juliano Moreira foi precursor e seu trabalho influenciou muita gente, como Nise da Silveira. Você identifica hoje trabalhos ou abordagens, na área de Saúde Mental, que dão continuidade ao seu legado?
A própria ideia da colônia, de pensar que as doenças mentais não se manifestam da mesma forma que outras doenças, que precisam de um cuidado específico, isso quem efetivamente implementa dentro do campo da ciência no Brasil é o Juliano Moreira, por meio da reforma que ele faz. Ele faz também uma distinção efetiva entre raça e as doenças, não atribui as doenças a raças, algo que muitos dos colegas dele faziam. Também é uma herança dele a ideia de que havia possibilidade de reinserção dos doentes mentais na sociedade. O projeto das colônias parte desse pressuposto: há a possibilidade de uma reinserção, claro que diferenciada, mas a possibilidade de uma convivência social. Ele a propõe de uma forma um pouco mais controlada, porque também não podemos tirar o Juliano do seu tempo. Ele acreditava no higienismo, ele era um sanitarista. Mas, de certa forma, ele subverte essa lógica ao pontuar a necessidade do olhar cuidadoso com o indivíduo. Isso é algo que sempre chamou atenção das pessoas próximas a ele. Quando eu fui ler o que foi produzido sobre o Juliano Moreira na época do seu falecimento, as palavras que eu mais encontrei é que ele era um homem bom. Isso dito também pelos pares, como Afrânio Peixoto [Médico, político e escritor (1876-1947)], que era um entusiasta dele, amigo próximo e discípulo. Ele formou toda uma escola de psiquiatria no Rio de Janeiro, homens que vão ocupar cargos importantes na implementação de políticas públicas no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. O Lima Barreto [Jornalista e escritor carioca (1881-1922)], que foi interno mais de uma vez, chamou atenção para esse lado da bondade do Juliano Moreira, um homem que conseguia ver e enxergar o indivíduo.
Na exposição A Revolução do afeto, que está em cartaz no Rio de Janeiro (Radis
226), há uma frase do Afrânio Peixoto que define Juliano como “o terapeuta do afeto”…
Concordo! Durante a reforma do prédio onde hoje é o Pinel, no campus da Praia Vermelha, no Rio Janeiro, ele abriu mão da sala da diretoria, que era suntuosa, e pegou uma sala pequena, no andar térreo, onde as portas estavam sempre abertas, para que os doentes não tivessem nenhum tipo de vergonha ou se sentissem impedidos de entrar em contato com ele. Ele era realmente do afeto, daquilo que realmente afeta, que transforma.
Durante a sua pesquisa sobre a vida do Juliano, algo mais te chamou atenção em relação à personalidade dele? Algum caso curioso que ilustre como ele era e com quem convivia?
A minha pesquisa foi feita num período relativamente curto, não deu para dar conta de toda a vida do Juliano Moreira, que foi um homem de muita produção. Mas, no levantamento que fiz nos periódicos que estão na Biblioteca Nacional, eu percebi que ela era um homem que circulava muito, que viajava muito, representava o Brasil numa série de congressos, mas eu quis privilegiar esse aspecto que curiosamente é um dos menos trabalhados, que é o lugar dele como questionador da teoria da degenerescência racial. Sobre isso, tem um caso muito curioso que é quando ele e o Nina Rodrigues — que havia sido professor dele — já eram professores da Faculdade de Medicina no Rio. O Juliano era recém-empossado e o Nina já era um homem de destaque no cenário nacional, um dos mais importantes médicos brasileiros. Eles entraram num embate sobre o caso de um rapaz diagnosticado com esquizofrenia, que é filho de uma mulher negra e de um italiano. Juliano não creditava à raça negra a condição da esquizofrenia, ao passo que o Nina era taxativo de que o rapaz havia herdado essa condição do tronco materno, negro, africano, “degenerado”. Juliano não aceitava. Neste período, ele viajou à Europa para se tratar da tuberculose e participar de congressos, quando mudou o roteiro e foi até à vila italiana de origem do pai desse rapaz esquizofrênico. Como era uma vila pequena, ele rapidamente identificou pelo sobrenome a família e observou que duas tias e um primo desse rapaz também tinham um quadro de esquizofrenia. Ele concluiu então que não era a raça negra “degenerada” que determinava a manifestação da esquizofrenia, mas que havia uma questão biológica. Eu gosto muito desse episódio porque mostra o lugar que o Juliano ocupa como voz dissonante dentro da própria ciência. Não era um historiador questionando, era um cientista que explicava que aquilo que as pessoas imaginavam ser racial era, na verdade, um construto social, que tinha uma história específica. Ele recorreu à história, às mazelas criadas pela escravidão no Brasil, para entender a condição do negro naquele momento no final do século 19 e começo do século 20 — uma perspectiva muito pouco utilizada na época.
No livro você também destaca a contribuição que Juliano deu à área de divulgação científica, contribuindo com inúmeros periódicos nacionais e internacionais, fundando publicações. Você consegue imaginar como ele lidaria hoje com as redes sociais e outras tecnologias de comunicação e informação digitais?
Ele era um homem muito zeloso com a metodologia da ciência, mas ao mesmo tempo um grande difusor da ciência. Então eu acho que ele conseguiria fazer um belo trabalho de divulgação científica, criterioso, mas que pudesse chegar às pessoas. De forma geral, e em parte entendo, os cientistas estão lá com as questões pautadas para o mundo em que eles vivem. Poucos se preocupam em fazer esse “meio de campo” e nós estamos pagando um preço caro por isso, que é justamente o negacionismo. O negacionismo está muito arraigado na profunda ignorância que as pessoas têm do que é a ciência, de como ela funciona, e o lugar que muitas vezes os cientistas ocupam é o de não contato com a população — ou de um contato muito hierarquizado. Talvez o Juliano Moreira pudesse fazer essa correlação, trazer a coisa criteriosa da ciência, mas ao mesmo tempo aproximá-la da população em geral.
Juliano é mais conhecido por sua atuação na área da Saúde Mental, mas deixou inúmeras outras contribuições para a ciência. Que outras contribuições dele você destacaria?
Juliano era um pesquisador multi, coisa que não existe mais no Brasil e nem no mundo! Eu destacaria a psicanálise. Quem introduziu os estudos de Freud no Brasil foi o Juliano Moreira. Também os estudos da sífilis. A tese que ele escreveu para poder se graduar como médico foi muito bem recebida — fora do Brasil, sobretudo —, onde ele já questionava a ideia de raça. Outra contribuição, sem sombra de dúvida, seria essa relação afetiva e afetuosa com a experiência das doenças mentais. Na verdade, ele entendeu as doenças mentais não só dos pontos de vista científico ou social, mas fez uma fusão entre eles. Ele foi um homem que fez uma análise conjuntural e sociológica das doenças e dos doentes, mas entendendo que o uso da ciência pode transformar a realidade.
Você escreveu uma carta para o Juliano, onde revela sua curiosidade em saber qual seria a opinião dele, se vivesse os dias de hoje, sobre as “insanidades desse mundo”. Você o questiona se a loucura seria chave para explicar esta realidade atual ou seria “mais uma desculpa para acobertar aquilo que sabemos que nos estrutura há tanto tempo”. Você imagina que resposta o Juliano te daria?
Ele escolheria a segunda opção, sem dúvida. Juliano sabia que a loucura é só uma desculpa para acobertar o que a gente conhece e sabe que está aí, que é o racismo. Ele era um homem tão perspicaz que ele sabia disso, falava sobre isso do ponto de vista científico, mas não entrou num confronto aberto como seus pares; por outro lado, ele trouxe essas questões para o seu cotidiano e conseguiu implementar mudanças significativas que só um homem que pensa como ele poderia implementar; ele soube como fazer o jogo, porque entendia como se estruturava o racismo. Ele era um homem negro! E acho que esse lugar muitas vezes é retirado da população negra, sobretudo daqueles que constroem os lugares na intelectualidade, impedindo a possibilidade de olhar de forma muito mais crítica para a realidade brasileira, justamente por estar nesse lugar da discriminação.
Juliano poderia representar o que as mídias hoje apresentam como uma “história de superação”, muitas vezes usada para negar a existência das desigualdades e da exclusão. Você concorda com isso?
Eu vou fazer uso do bom e velho ditado popular: As exceções confirmam as regras. Juliano Moreira é uma exceção, com sua história incrível e maravilhosa, mas é a confirmação de toda a negação. Tudo o que ele era, era negado aos homens negros, por serem homens negros. E isso não mudou, porque essa é a estrutura do racismo. Só que hoje isso ganhou as mídias digitais. A gente observa hoje é que algumas personalidades são “eleitas” e têm uma voz ativa contra o racismo, mas de certa maneira essas pessoas estão dentro da própria lógica racista. Isso é uma coisa perversa, porque você também tem que se fazer ouvir, então é um jogo que tem que ser jogado. Nós vivemos uma estrutura racista e não há outra alternativa. A gente tem que construir uma alternativa, mas por enquanto não há nenhuma outra. Eu entendo muito essas personalidades, que têm uma ação destacada, mas o debate tem que ser estrutural. O racismo é um jogo de poder que cria uma série de ônus para a população negra e para as populações indígenas ou não brancas, e bônus para as populações brancas. O que a gente precisa entender é essa outra parte; o racismo aparece como um problema do negro, mas é problema de todo mundo. A questão é que quem sofre com racismo são os negros, e sofrem porque os brancos ganham com isso, mesmo não tendo consciência. Tem quem tenha essa consciência, e tem quem não tenha. Por isso é tão difícil ser antirracista, porque ser antirracista é ser contra o sistema, é ser contra a ideia de norma, daquilo que a gente entende como normal. [2]
[1] Foto: Acervo pessoal.
[2] Texto de Adriano de Lavor.
Como citar esta notícia: Fiocruz. “Juliano Moreira, uma voz dissonante”. Texto de Adriano de Lavor. Saense. https://saense.com.br/2021/07/juliano-moreira-uma-voz-dissonante/. Publicado em 30 de julho (2021).