Fiocruz
13/09/2021

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Se hoje a maioria das crianças tem uma marquinha no braço, nem sempre foi assim. Tudo começou há 100 anos em um laboratório na França. Foi no Instituto Pasteur de Lille que Albert Calmette e Camille Guérin, depois de 13 anos de trabalho, conseguiram atenuar o bacilo Mycobacterium bovis, causador da tuberculose bovina. Os cientistas desenvolveram o estudo sobre o bacilo que carrega o nome deles e criaram, a partir dele, o imunizante que até hoje protege os recém-nascidos contra a tuberculose: a vacina do Bacilo Calmette-Guérin (ou BCG) um imunizante que se espalhou pelo mundo e que comemora, em 2021, o seu centenário.

Durante o Seminário Internacional “Sociedade, política e ciência: o centenário da vacina BCG, 1921 — 2021”, promovido pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), em julho, o diretor científico da Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), Luiz Roberto Castello-Branco, destacou o protagonismo desses personagens na criação de uma das mais importantes vacinas adotadas pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI). “Eles pegaram um bacilo causador da tuberculose bovina e fizeram passagens seguidas durante 13 anos para que ele perdesse a sua virulência, quer dizer, para que ele se tornasse menos ou não causador de doença, mas fizesse uma proteção, que era um princípio descrito por Pasteur”, explicou.

Calmette e Guérin fizeram algo extraordinário na época, destaca Castello-Branco. “Quando eles conseguiram, difundiram a vacina para o mundo sem qualquer custo. Como na maioria dos países existiam os serviços soroterápicos, eles repassaram a vacina para esses serviços”, contou. Por esse motivo, pontuou o diretor, a BCG é tão variada hoje em dia. “Em 1921, eles chegaram a aplicar a vacina que tinham descoberto em crianças no hospital infantil de Paris; em 1924, comunicaram à Academia Francesa de Medicina; e em 1925, a vacina chegou ao Brasil”, descreve à Radis Dilene Raimundo do Nascimento, médica, doutora em História Social e docente do programa de História da Saúde e das Doenças da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

No Brasil, a vacina é produzida a partir da cepa Moreau RJ, considerada uma das mais imunogênicas e com menor índice de reação em relação a outras cepas de BCG, como informa o site da FAP 一 responsável pela produção do imunizante no país. Inicialmente, utilizava-se no Brasil a vacina via oral, iniciada em 1930 pela FAP, tratamento que foi abandonado pelo país na década de 1970. O maior defensor da imunização oral pela BCG foi o professor Arlindo de Assis, pioneiro no uso dessa vacina no país, “sendo seu maior pesquisador e incentivador”, como destaca o site. A BCG Moreau RJ, como pontuou Castello-Branco durante o seminário, é referência da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Foi por meio das mãos do médico uruguaio Julio Elvio Moreau que a BCG chegou ao Brasil. Moreau trabalhou com Calmette e Guérin no Instituto Pasteur de Lille e trouxe a vacina para a América do Sul. No Rio de Janeiro, Moreau deixou a cultura com Arlindo de Assis, como lembrou Castello-Branco. A cepa entregue a Assis acabou ficando com o nome de Moreau, explica Dilene. Já Assis, que fez sua formação como microbiologista no Instituto Butantan e depois foi para o Instituto Vital Brazil, começou a produzir a vacina BCG e, em uma articulação com a Liga Brasileira contra a Tuberculose, iniciou a aplicação do imunizante nas crianças em idade escolar e no Preventório que a Liga havia criado na Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro. Era para esse lugar que iam as crianças filhas de pais tuberculosos, para que não adoecessem.

“A Liga deu o maior apoio para essa questão da BCG e chegou a criar um laboratório de produção da vacina, cuja direção foi assumida por Arlindo de Assis”, afirma Dilene. Em 1930, por conta da mudança na política pública e social durante o governo Vargas, explica a pesquisadora, a Liga deixou de fazer assistência propriamente dita e passou a se dedicar ao laboratório de produção da vacina. Como Castello-Branco ressaltou, Assis recebeu a BCG, começou a fazer as culturas e durante dois anos fez estudos em animais, antes de imunizar a primeira criança no Brasil, o que ocorreu em agosto de 1927.

Tuberculose no Brasil

“No final do século 19, havia um grande número de pessoas com tuberculose na cidade do Rio de Janeiro, por causa da rápida urbanização, e não havia tratamento etiológico ou prevenção eficiente. No Brasil, o Estado não atuava nessa questão”, ressaltou Castello-Branco. Por iniciativa de elites médicas e intelectuais do Rio de Janeiro, foi criada, em 4 de agosto de 1900, a Liga Brasileira contra a Tuberculose, que futuramente deu origem à Fundação Ataulpho de Paiva.

Segundo Dilene, a Liga apontava a relação da doença com fatores predisponentes, como moradias e locais de trabalho insalubres, má alimentação e jornada de trabalho extensa e intensa. “Essa relação do acometimento pela tuberculose com as condições de vida ficou cada vez mais confirmada e o índice de tuberculose no início de século 20 era altíssimo no Rio de Janeiro”, pontua. A tuberculose (TB) é uma doença infecciosa provocada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis (também conhecida como bacilo de Koch) e transmitida por gotículas. A TB tem cura e tratamento oferecido gratuitamente pelo SUS.

A edição especial do Boletim Epidemiológico Tuberculose 2021, divulgado pelo Ministério da Saúde, em março deste ano, descreve que a doença permanece um importante problema de saúde pública mundial (Radis 184). A estimativa é de que, em 2019, no mundo, cerca de dez milhões de pessoas desenvolveram TB e 1,2 milhão morreram devido à doença. No Brasil, em 2020, foram registrados 66.819 casos novos de tuberculose, com um coeficiente de incidência de 31,6 casos por cem mil habitantes. Em 2019, foram notificadas cerca de 4,5 mil mortes pela doença, o que corresponde a 2,2 por cem mil habitantes.

O Brasil continua entre os 30 países de alta carga para TB e para coinfecção TB-HIV e é considerado país prioritário para o controle da doença no mundo pela OMS. De acordo ainda com o Boletim, o cenário atual de enfrentamento do novo coronavírus agravou a situação epidemiológica da TB no país e no mundo.

Condições precárias de vida

Os resultados da vacinação com BCG demoraram a aparecer, já que a aplicação ocorria nas crianças, explica Dilene. Segundo ela, o que aconteceu foi que as condições de vida melhoraram para uma parcela da população, mas não para todos. “Se no começo do século 20, todos acabavam contraindo a tuberculose de uma forma ou de outra, com o passar dos anos, a incidência foi se localizando no contingente da população mais vulnerável, como as pessoas que moram na periferia, que continuam vivendo em condições precárias de moradia, de vida e de trabalho”, explica a professora, pontuando que ainda hoje existe essa incidência maior entre a população em situação de vulnerabilidade.

A pesquisadora descreve que é mais difícil encontrar um caso de tuberculose entre as pessoas de classe alta, por exemplo, o que acontecia no início do século 20. “A diferença entre o rico e o trabalhador que vivia em más condições era que os ricos tinham condições de procurar tratamento”, ressalta. Segundo Dilene, o trabalhador com precárias condições de vida tinha mais chance de morrer por conta da doença. “O número de óbitos por tuberculose era bastante alto no início do século 20 e mais adiante um pouco”, completa.

100 anos depois

Dilene explica que é a Liga Brasileira contra a Tuberculose — que deu origem à Fundação Ataulpho de Paiva — que produz a vacina BCG no Brasil e vende para o PNI, responsável por distribuir o imunizante no SUS. Desde 1976, o Ministério da Saúde tornou obrigatória a administração em crianças, recomendando que ela fosse aplicada, de preferência, no recém-nascido. “Hoje, o gestor municipal garante as vacinas BCG para as maternidades. As crianças saem já vacinadas. Se a maternidade não aplica, os pais devem levar o recém-nascido logo que possam ao posto de saúde para que a criança possa tomar”, ressalta.

Com a queda recente nas coberturas vacinais, observadas desde 2016, a BCG também passou a sofrer com a não vacinação, embora tenha demorado um pouco mais a cair em relação a outras vacinas: dados do próprio PNI indicam que a taxa de cobertura dessa vacina foi de 99,72% em 2018, mas caiu para 86,67% em 2019 e chegou a 73,38% em 2020.

Um século depois, a vacina BCG mantém a sua relevância enquanto medida de saúde pública. “Uma vacina que protege, em algum nível, contra a tuberculose é da maior importância, porque essa é uma doença que ainda tem uma incidência altíssima entre a população que vive em condições mais precárias de vida”, afirma Dilene. Ela enfatiza que as desigualdades estruturais da sociedade brasileira refletem diretamente nas questões de saúde. “Enquanto não modificar essa estrutura, a saúde também fica, em suma, a desejar. Mas nós temos organismos como o PNI, por exemplo, que contribuem enormemente para minimizar essa situação, mantendo em dia as vacinas para as doenças imunopreveníveis”, conclui. [2]

[1] Imagem: Radis / Fiocruz.

[2] Texto de Moniqui Frazão.

Como citar esta notícia: Fiocruz. Vacina Centenária.  Texto de Moniqui Frazão. Saense. https://saense.com.br/2021/09/vacina-centenaria/. Publicado em 13 de setembro (2021).

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