Jornal da USP
09/05/2022
Por João Eduardo Hidalgo, doutor em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
Um ensolarado e mediterrânico domingo, 19 de dezembro do ano passado, umas 30 mil pessoas participaram de uma passeata junto ao Arco do Triunfo Barcelonês, que foi feito para a Feira Internacional de 1888. Carregavam cartazes e uma grande faixa onde se lia “Ara i sempre, l’escola en catalã” (agora e sempre a escola em catalão). Este evento foi causado pela decisão judicial que um pai de Canet del Mar, pequena cidade de 15 mil habitantes a 40 quilômetros de Barcelona, conseguiu para garantir que sua filha tenha 25 por cento das aulas em espanhol. A escola onde ela estuda tem o poético nome Turó del Drac, Colina do Dragão, e ficou em evidência aqui na Comunidade Autônoma da Catalunha, uma das 17 que formam o Reino da Espanha. A “imersão linguística” foi conquistada durante a transição para a democracia, com uma lei de normatização em 1983 e regulamentada por uma lei de política linguística em 1998, no Parlamento Catalão. Esta última infere que: todos os cidadãos da Catalunha têm direito a conhecer qualquer das duas línguas oficiais, espanhol e catalão, se expressar adequadamente nelas, ser atendido pelo Estado na qual escolher e nunca ser discriminados no seu uso.
Bem, para entender o que acontece devemos ouvir os educadores e a maioria da população; até a data o modelo de imersão linguística tem funcionado sem grandes percalços, o problema de Canet del Mar é um dos casos que fogem ao ensino pactado, que agrada a todos. A polêmica continua em 2022, com outras nuances. Aqui um testemunho pessoal: quando fiz a FFLCH aprendíamos que eram quatro as línguas oficiais na Espanha – espanhol ou castelhano, galego, catalão e o exótico vasco –, agora temos que acrescentar o valenciano, um ramo mais antigo do catalão e alguns querem incluir o aranês, variante do occitano, falado do Vale de Arão, complicado. Com exceção do vasco, todas as línguas nomeadas acima vêm do latim imposto pelo Império Romano, que colonizava também a cultura dos povos autóctones conquistados; o resultado já conhecemos, o nascimento do espanhol, francês, português, catalão. A língua não pode ser controlada com política, ela é patrimônio de um grupo e muda conforme esse grupo se move, se mescla, desaparece.
O grande escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán, morto em 2003, é o cronista maior de Barcelona e da Catalunha. Nascido no Raval, bairro pobre e degradado do centro antigo da cidade, teria muito que dizer da atual situação de sua urbe. Ele já advertiu que Barcelona era uma cidade que se autodestruía e se reconstruía o tempo todo. Porto natural, visitado desde a Antiguidade, conserva um ar indomável e sempre multifacetado. Os políticos deveriam ler mais seus livros, principalmente o Barcelonas, que atualmente está nas livrarias, somente em catalão, publicada pelo Ajuntament de Barcelona, numa edição preciosa, que comemora os 30 anos de sua primeira edição (em espanhol), que vem com uma separata-cartão, com um texto da prefeita de Barcelona Ada Colau, totalmente dispensável. Vázquez Montalbán conta que o povo autóctone, chamado de laietanos (um ramo dos iberos), foi conquistado pelos gregos e depois pelos romanos. A lenda é que Hércules veio dar nestas paragens, com um grupo de companheiros sobreviventes de uma grande tempestade, ocupantes da nona barca de sua frota, daí barca nona, Barcelona. Seus limites geográficos são o Mediterrâneo azul royal; a montanha Tibidabo, ponto culminante da Cordilheira Collserola; o rio de águas transparentes Besòs (de cujas margens escrevo) e o Rio Llobregat.
No elitista Teatro do Liceu, nas famosas Ramblas, esteve em cartaz a ópera italiana Rigoletto, de 28 de novembro a 19 de dezembro de 2021. O competente espetáculo teve sua iluminação, vestuário e cor predominante diretamente inspirados em Diego Velázquez e na composição de conjunto em El Greco, dois pintores fundamentais na história da arte mundial, espanhóis. Durante o espetáculo o letreiro sobre o palco foi projetado em catalão, o pequeno mecanismo que fica pendurado na cadeira da fila da frente deveria oferecer outras possibilidades de legenda, mas não estavam funcionando, para ninguém. No dia 9 de dezembro assisti a um criativo teatro de bonecos, que adaptava Dom Quixote, no pequeno teatro chamado Sala Versus Glòries, perto da Sagrada Família de Antoni Gaudí. Os dois atores manipuladores usam os bonecos, os objetos, seu corpo e rosto para contar algumas das peripécias do Cavaleiro da Triste Figura, para isso usam uma língua inventada, o contexto e as movimentações davam plenamente o fio condutor do espetáculo. Um dos maiores tesouros da língua espanhola, depois do espetáculo, foi debatido em catalão, um show à parte. Ainda em dezembro assisti a uma montagem de La casa de Bernarda Alba, obra-prima de Federico Garcia Lorca e da literatura dramática espanhola, na Sala Ars Teatre. Toda a orientação de entrada e permanência de máscara dadas em catalão; fiquei esperando que o espetáculo fosse nessa língua, felizmente para a obra, não.
Para sentir-se catalão um turista tem que beber água da “Font Canaletes” na Ramblas e comer seus típicos calçots, um tipo de cebolinha que é cultivada quase inteira coberta de terra, fica com o caule muito branco, lembrando um aspargo. Ela é assada na brasa (difícil de acreditar sem ver), arranca-se a parte queimada externa e se come este caule acompanhado com um molho de pimentão, pimenta e amêndoas; e ela deve ser acompanhada por um vi negre, vinho tinto de Penedès, de Rioja jamais. E, claro, visitar as construções do maior símbolo da cidade, Antoni Gaudí (1852-1926); o Palau Guell fica a meio quarteirão das Ramblas, La Pedrera no Passeig de Gracia e a Sagrada Família, em construção desde 1882, no coração ampliado de Barcelona, o Eixample (ampliação). A Sagrada Família quando terminada terá a sua maior torre a 172,5 metros de altura, meio metro a menos que a altura de Montjuic (monte dos judeus), Gaudí respeita a criação da natureza, nunca a ultrapassa, ela é divina. Assisti a finalização da torre da Virgem Maria, em 8 de dezembro de 2021, que tem 138 metros de altura e uma estrela iluminada na ponta. Há uma promessa para terminar o templo para o centenário da morte de Gaudí em 2026, esperemos.
Finalizando, o catalão está em perigo? Não, nem o espanhol, mas atenção – a língua mais ouvida aqui no centro antigo barcelonês, principalmente no Bairro Gótico e no Raval, é o árabe, dos marroquinos e ultimamente dos paquistaneses, que dominam o comércio na região. É o movimento das massas étnicas e culturais, algo imparável, que não deve ser julgado com preconceito social e muito menos político. Como Barcelona sairá deste labirinto? Não faço nenhuma aposta, nenhum novelo de Ariadne está visível.
[1] Foto: nikolaus_bader / Pixabay.
Como citar este texto: Jornal da USP. Barcelona e Catalunha em seu labirinto. Texto de João Eduardo Hidalgo. Saense. https://saense.com.br/2022/05/barcelona-e-catalunha-em-seu-labirinto/. Publicado em 09 de maio (2022).