UnB
06/05/2022

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Ana Magnólia Mendes

São brutais e devastadoras as marcas no trabalhador dos modos de reprodução do capitalismo na atualidade, em especial nas plataformas numéricas – o sistema –, a ditadura do algoritmo, o fetiche das tecnologias, e sobretudo, a colonização das subjetividades. O canto sedutor do consumo e da acumulação, traduzidos em vozes que proferem injunções, as quais conectam as exigências produtivistas com o narcisismo. Ideia que não se aplica à maioria da classe que vive do trabalho, mas a uma minoria que tem acesso aos “sistemas”, a maioria ainda tenta sobre-viver na miséria. A fome voltou a nos assombrar, que dizer, àqueles que ainda não foram tomados pela patologia da indiferença.


Partimos do pressuposto que um caminho possível para pensar essa problemática é questionar o sentido social e político da colonização. O discurso e as ideologias sobre os “sistemas” tenta nos colonizar. É um discurso alimentado por valores de dominação e saber totalitário, produzindo efeitos nefastos sobre os modos de pensar, sentir e agir humanos. As tecnologias despersonalizas, não têm cara. Pelo excesso de informação, as plataformas numéricas podem produzir um curto-circuito na nossa capacidade crítica-analítica.


Assim, são produzidos sujeitos que aos poucos se melancolizam e podem sucumbir à patologia da indiferença. Essa indiferença tende a existir tanto nos contextos de emprego formal assalariado quanto nas novas modalidades de (des)emprego, considerando a globalização do discurso digital na sociedade. Assim, o discurso é, ao nosso ver, o revelador do engate da subjetividade pelas exigências do mundo do trabalho produtivo capitalista.


Cria-se uma fábrica de moer trabalhadores, coisificar, usurpar e aprisionar a nossa existência ético-política, nossa liberdade de ser. Nessa fábrica, as relações são assimétricas, de opressão, subordinação, sem reciprocidade e sem estabelecer o laço social. Fabrica um sujeito sem trabalho. Produz e é produzida por subjetividades normopatas, consolida a despersonalização. Produz uma “carnificina” pela caçada às metas, aos resultados, ao sucesso, à perfeição, ao absoluto, ao total.


Uma fábrica, sustentada pelo medo e desespero do confronto com o desamparo, que se enfraquece quando a angústia como força motriz questionadora sobrevive, denunciando, por meio do adoecimento, acidentes e suicídio, o modelo falacioso de promessa do “paraíso perdido” – a onipotência, a arrogância, a soberba. O adoecimento coloca à prova este projeto de “carnificina” como arma principal para exterminar o humano do mundo da produção.


Nesse contexto, encruzilhadas e labirintos impõem-se para todos nós, especial para os que pensam. Talvez assistir ao filme A fuga das galinhas nos conforte ou não?… Enfim, por acreditar que todo labirinto tem uma saída, tenho insistido na ideia que o trabalho vivo ainda é uma possibilidade de resistência e existência. Pensar, como o maior de todos os trabalhos humanos, colocar em questão o poder, o querer, o dever, se perguntar quem trabalha e para quem, talvez seja um caminho possível para balançar – quem sabe furar – os esquemas dos  “sistemas”, e talvez nos fazer re-lembrar dos trabalhadores que já estão sendo moídos desde a escravidão. [2]

[1] Foto: KaiPilger / Pixabay

[2] Ana Magnólia Mendes é professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília (UnB). Possui pós-Doutorado na Université Côte d’Azur, França, no Freudian- Lacanian Institute Après-Coup Psychoanalytic Association em parceria com a School of Visual Arts, New York (EUA) e no Conservatoire National des Arts et Métiers (Paris). Doutorado e mestrado em Psicologia pela UnB, sanduíche na Universidade de Bath, Inglaterra, graduação em Psicologia na UFPE. Coordenadora do Núcleo Trabalho, Psicanálise e Crítica Social, Líder do Grupo de Pesquisa Psicanálise e Trabalho no CNPq/UnB. Coordenadora do projeto Clínica Lacaniana do Trabalho com trabalhadores em adoecimento na UnB

Como citar este texto:  UnB. A fábrica de moer trabalhadores. Texto de Ana Magnólia Mendes. Saense. https://saense.com.br/2022/05/a-fabrica-de-moer-trabalhadores/. Publicado em 06 de maio (2022).

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