Jornal da USP
17/05/2022

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Por André Francisco Pilon, professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP

AConvenção das Nações Unidas para Combater a Desertificação (UNCCD) une governos, cientistas, formuladores de políticas públicas, setor privado e comunidades em torno de uma visão compartilhada e ação global para restaurar e gerenciar as condições do solo em todo o planeta. A Convenção representa um compromisso multilateral para mitigar os impactos atuais da degradação do solo e promover a sua gestão adequada, a fim de fornecer alimento, água, abrigo e oportunidades econômicas a todas as pessoas do mundo de maneira inclusiva e equitativa.

A 15ª Conferência das Partes, na Costa do Marfim, contará com ministros do Meio Ambiente, representantes do setor privado e da sociedade civil, tendo em vista a agenda global de preservação e restauração dos solos, sua utilização adequada e o combate aos crescentes impactos da seca.

Após mais de três décadas de relatórios científicos e reuniões internacionais, não houve avanços consistentes, na arena pública e privada, em direção a uma abordagem global integrada face às mudanças climáticas, à insegurança alimentar e ao acesso a combustíveis não poluentes. O mundo não pode mais depender de reformas incrementais dentro das estruturas tradicionais de planejamento e desenvolvimento, tendo em vista os profundos desafios ambientais para a sobrevivência humana, que entrelaçam questões econômicas, políticas e culturais.

“Desenvolvimento” e “crescimento”, com fins lucrativos, ignoram aspectos fundamentais de bem-estar e equilíbrio; o “progresso”, dirigido por atores políticos e econômicos, dificilmente implica uma mudança nas assimetrias de poder entre pessoas comuns e corporações de negócios. Políticas públicas, advocacia, comunicação, programas de pesquisa e ensino-aprendizagem devem ir além de particularidades e abordar o fenômeno geral, o “sistema-mundo”, com suas fronteiras, estruturas, paradigmas tecno-econômicos, grupos de apoio, regras de legitimação e coerência.

Grande parte da população mundial carece de condições essenciais como seres humanos: apoio jurídico, saúde pública, saneamento, educação, segurança, espaços de convívio, áreas verdes, alimentação adequada, transparência e espaços sociais de participação política esclarecida. Florestas, savanas, bacias hidrográficas, biodiversidade e habitats são ameaçados por commodities, extração de madeira, mineração e incêndios, gerando uma quantidade insustentável de CO2, presentes na agricultura, transportes, indústria pesada, geração de eletricidade e áreas construídas. Povos indígenas e comunidades são comprovadamente guardiões da terra e a preservação de direitos e seu efetivo envolvimento é vital na gestão dos territórios, enquanto enfrentam o poder do “estabelecimento”, dos “paradigmas de produtividade”, da ânsia pelo lucro.

Um futuro duradouro, justo e equitativo, ações e intervenções coletivas, devem envolver a sociedade civil, unidades de conservação, os media, jornalistas, líderes religiosos, defensores do meio ambiente, especialistas, tomadores de decisão, ativistas, jovens, lideranças e organizações. A questão vai além das soluções tecnológicas, da “ferramenta certa” e da melhor informação; inclui os contextos em que os formuladores de políticas públicas operam na perspectiva dos dilemas e contradições envolvidos nos objetivos e valores incorporados na arena pública e privada. Máquinas, inteligência “artificial”, a hegemonia das soluções tecnológicas e tecnocráticas em todas as esferas da vida, na verdade, obscurece a necessidade de uma abordagem ecossistêmica holística, integradora e transformadora, que considere todas as dimensões de estar no mundo.

Michael Crow, professor da Arizona State University, considera a mudança climática não como questão científica, mas como questão comportamental; para corrigir nossas visões categoricamente erradas, propõe uma educação transdisciplinar, em oposição a uma hierarquia de conhecimento. Condena explicitamente as estruturas químicas existentes e as técnicas de fabricação que estão construindo, com o apoio da pesquisa acadêmica, milhares de moléculas que causam câncer, enquanto tacitamente delegam a terceiros a resolução dos graves problemas assim criados.

A micro e nanotecnologia, o ultraprocessamento de alimentos, as transformações genéticas, a radiação eletromagnética estão atualmente sob escrutínio de organismos internacionais, tendo em vista critérios de toxicidade e ação sobre a saúde humana e o meio ambiente como um todo. Decisões autênticas e esclarecidas são urgentemente necessárias para enfrentar os paradigmas dominantes de desenvolvimento, crescimento, poder, riqueza e liberdade, que, na verdade, são responsáveis pelos muitos problemas de difícil resolução em um mundo desordenado.

A regeneração da Terra e a regeneração da humanidade são interdependentes, e devem ser simultâneas, no espaço e no tempo, para seu apoio mútuo. Isso implica uma mudança fundamental na forma como os problemas atuais são definidos e tratados nas esferas pública e privada.

Uma Constituency global coloca a cultura como pilar do desenvolvimento e insta as autoridades públicas a integrá-la na agenda global, tendo em vista a interdependência sócio-ecológica e seu papel no desenvolvimento de valores consistentes com a preservação do meio ambiente. É necessário situar os problemas à luz de um enfoque ecossistêmico, face à interdependência das dimensões íntima, interativa, social e biofísica relacionadas à condição de estar no mundo, enquanto se influenciam mutuamente para suscitar, manter ou mudar as condições de vida no planeta.

[1] Foto: nuno_tuna / Pixabay.

Como citar este texto: Jornal da USP. Desertificação, uma condição que envolve as pessoas, o solo e as formas de estar no mundo.  Texto de André Francisco Pilon. Saense. https://saense.com.br/2022/05/desertificacao-uma-condicao-que-envolve-as-pessoas-o-solo-e-as-formas-de-estar-no-mundo/. Publicado em 17 de maio (2022).

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