Fiocruz
06/05/2022

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Em um passeio pelas ruas da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, é comum que algum morador logo se apresente a Cesar Victora como uma das pessoas nascidas em 1982 e que, desde então, têm seus dados de saúde anotados e tabulados pela equipe coordenada pelo epidemiologista. O estudo de coorte — como é chamado — acompanha, desde o momento do parto, há 40 anos, seis mil recém-nascidos em hospitais no município. Ao longo das quatro últimas décadas, a pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) revelou dados importantes que jogaram luz sobre os reflexos da desigualdade nas condições de saúde. “Fazer parte das coortes é motivo de orgulho para todos”, afirma Victora, em referência a um dos mais longos estudos longitudinais realizados no mundo.

O estudo da Coorte de Nascimentos de Pelotas, realizado sistematicamente desde 1982, colocou o nome de Cesar Gomes Victora em destaque na pesquisa científica mundial. Trouxe também evidências de que muitos dos problemas que afetam os adultos têm origem no início da vida, incluindo a gestação. E, ainda, mostrou que estudos de coorte de nascimento poderiam ser implementados com sucesso em países em desenvolvimento, como o Brasil.

À investigação de 1982, seguiram-se as realizadas em 1993, 2004 e 2015, que continuam acompanhando cerca de 20 mil pessoas e permitiram análises comparativas entre gerações. O começo foi difícil, praticamente sem recursos, e feito na casa dos entrevistados. “Os entrevistadores levavam balança para pesar as crianças, antropômetros para medir altura, faziam uma série de aferições em domicílio”, conta o pesquisador à Radis. Com os resultados, veio a visibilidade. O estudo de Pelotas teve desdobramentos e transformou o Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel em referência internacional na área.

Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1976, Cesar Victora cursou doutorado na Escola de Higiene e Medicina Tropical da Universidade de Londres, em 1983, e sua trajetória científica ajudou a definir políticas globais em diversas áreas. O pesquisador liderou o primeiro estudo epidemiológico a constatar a relação direta entre amamentação e prevenção da mortalidade infantil. Seu trabalho também identificou que as intervenções nutricionais realizadas nos primeiros mil dias de uma criança são mais importantes que intervenções tardias. “Vimos que o custo-benefício é muito maior se a intervenção nutricional ocorrer entre a gestação e os dois primeiros anos. Vale mais a pena investir na nutrição infantil para melhorar a saúde e o capital humano dos adultos”, afirma.

Além disso, suas pesquisas consolidaram a importância do aleitamento materno exclusivo e serviram de base para a política de amamentação adotada, a partir de 1991, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Com esses estudos, foi possível relacionar a amamentação exclusiva a efeitos positivos sobre a renda, a escolaridade e a inteligência das crianças. Victora teve também papel decisivo para o desenvolvimento das Curvas de Crescimento Infantil, que resultaram em padrões de referência para a avaliação do crescimento de crianças e que são utilizadas em mais de 150 países.

O epidemiologista tem uma produção de alta relevância e seu nome figura entre os pesquisadores mais citados no meio científico de todo o mundo. Victora avalia que sua pesquisa é ancorada na “epidemiologia de pé descalço” — e fez com que viajasse intensamente e visitasse locais remotos no mundo, como conta à Radis. “Durante 20 anos, fiz cerca de 15 viagens por ano, trabalhei em mais de 50 países. Minha especialidade é essa, ir de casa em casa entrevistar, examinar e ver as condições de vida das pessoas”. Foi nessas viagens que o cientista conheceu realidades mais desiguais do que aquela enfrentada no país. “O Brasil tem bolsões de pobreza, mas em certos países o bolsão inclui 90% da população”, compara.

Cesar Victora firmou o caminho para a pesquisa sobre os determinantes sociais em saúde ao identificar, em sua tese, que a condição de saúde de crianças que viviam em minifúndios — onde a renda é menos desigual e as famílias são proprietárias da terra — era melhor do que a de crianças que viviam em áreas de latifúndios. Em 1988, publicou o primeiro livro da coorte de Pelotas, Epidemiologia da Desigualdade, em coautoria com os professores Fernando Barros, da UFPel, e Patrick Vaughan, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, que foi seu orientador. Juntos, os três pesquisadores formaram uma bem-sucedida rede de colaboração que fortaleceu os estudos no campo da desigualdade e da epidemiologia do ciclo vital, que começa na concepção e atravessa a vida toda.

Cidade situada no extremo sul do Brasil, que foi cenário de três grandes produções televisivas e famosa por seus doces, foi de Pelotas que Cesar Victora respondeu à entrevista por uma multiplataforma de mensagens. Nesta edição, Radis traz o perfil de um cientista que há 40 anos está envolvido com pesquisa e que vê com tristeza o êxodo científico. “Estou chegando ao final da minha carreira, fui formado no país e no exterior com dinheiro do contribuinte brasileiro. Acredito que retribuí fazendo pesquisas no Brasil”, afirma. Segundo ele, os cortes na área de ciência e tecnologia têm impactos na qualidade de vida e no SUS, que considera essencial para reduzir as desigualdades. “O SUS e a Estratégia Saúde da Família foram muito positivos. Vejo com muita tristeza que o SUS sempre foi subfinanciado, mas atualmente está bem pior. Tem dinheiro para algumas coisas e não tem para outras mais básicas. É uma tragédia”, resume.

Como foi o começo da sua pesquisa com coorte, que é a mais longa em todo o mundo?

Nossas coortes são estudos de base populacional, o que em epidemiologia quer dizer que elas começam com uma população inteira. Em Pelotas, na coorte de 1982, mais de 99% das crianças nasciam no hospital. A gente tinha entrevistadores que recrutavam as mães em todas as maternidades da cidade. Praticamente não tivemos recusas. A população nos recebeu muito bem e começamos a recrutar quase todos os nascimentos. Depois, já com os endereços das pessoas, rastreamos e fizemos visitas em casa. No começo, a gente não tinha instalação, era um grupo pequeno. Como na faculdade não havia espaço para a gente coordenar a pesquisa, aluguei uma sala comercial no centro da cidade com o Fernando Barros [médico, professor Emérito da UFPel], meu colega. Tudo era feito na casa das pessoas. Os entrevistadores levavam balança para pesar as crianças, antropômetros para medir a altura, faziam uma série de aferições em domicílio.

E como foi a continuidade?

Com o tempo, a pesquisa foi se tornando mais visível e conseguimos um bom financiamento. O Ministério da Educação construiu uma sede. Hoje temos um edifício próprio onde as pessoas fazem os exames. Recrutamos e temos uma boa aderência. Tudo ficou mais sofisticado e não conseguimos fazer o acompanhamento em casa. São exames mais complicados, coletamos sangue, fazemos teste de composição corporal, dados de função pulmonar e cardíaca. Somos extremamente gratos à população de Pelotas que nos recebeu tão bem e continua participando do estudo. Fazer parte das coortes é motivo de orgulho. A gente ficou muito conhecido na cidade e tem esse reconhecimento.

Por que é preciso investir nos primeiros mil dias na vida?

As intervenções nutricionais nesse período são muito mais importantes do que intervenções mais tardias. Se é bom ganhar peso para evitar a subnutrição nesse período inicial, depois de mais ou menos dois anos de idade o ganho excessivo passa a ser ruim pois leva à obesidade na adolescência e na idade adulta. Isso não quer dizer que não adianta fazer nada para uma criança de cinco anos ou um adolescente. Claro que adianta, mas nós vimos que o custo-benefício é muito maior se a intervenção nutricional ocorrer entre a gestação e os dois primeiros anos. Vale mais a pena investir na nutrição infantil para melhorar a saúde e o capital humano dos adultos. Se a criança aos 2 anos tem um déficit, mostramos que esse déficit permanece até a idade adulta. Uma criança que em média é 3 cm mais curta do que deveria ser aos dois anos, será 3 cm mais curta que a média da população adulta.

Há relação entre a subnutrição na infância e a obesidade na idade adulta?

É uma combinação muito perigosa, pois uma criança subnutrida tem uma programação biológica para comer pouco durante toda a sua vida, e depois passa a consumir alimentos extremamente calóricos e gordurosos. A criança se adaptou a ser pequena e não consegue dar conta dessa sobrecarga de nutrientes. Estou falando de comidas ultraprocessadas principalmente, não de alimentos como proteínas de origem animal, verduras e frutas, as quais são mais caras e muitas vezes fora do alcance de famílias pobres. A dieta de crianças em idade escolar e de adolescentes é muito importante na etiologia da obesidade. Por isso que não devemos tratar a saúde do adolescente separadamente da saúde escolar ou do pré-escolar, ou dos primeiros mil dias. Nós publicamos agora em 27 de abril um artigo na revista Lancet que mostra a importância de integrar o desenvolvimento da saúde e do capital humano de 0 a 19 anos. Temos que integrar esse conhecimento para ter um maior impacto sobre a saúde dos adultos de amanhã.

O sobrepeso na vida adulta deriva do excesso de comida?

O problema é a sobrecarga de nutrientes que vem de alimentos baratos e altamente calóricos que são consumidos por grande parte das famílias brasileiras de menor poder aquisitivo. A criança que é obesa na infância também tem risco de continuar obesa a vida inteira. Por isso que a gente fala no crescimento ótimo, que é quando a criança consegue crescer bem sem ganhar peso excessivamente. É um crescimento linear adequado, dentro do prescrito, por exemplo, pelas curvas de crescimento. É ganho de massa magra, não de massa gorda. Se a criança não tem esse crescimento adequado, não vai dar conta da sobrecarga de gorduras e calorias na idade adulta. O ideal é que ela tenha um bom crescimento linear e não tenha sobrepeso.

Que pontos o senhor destaca nos resultados dessa pesquisa?

O primeiro é o capital humano quando vemos se a criança está alcançando o seu potencial de desenvolvimento físico e intelectual. Ou seja, se ela cresce adequadamente. Isso pode ser avaliado pela altura que ela atinge na idade adulta. A gente sabe que crianças que são subnutridas na infância se tornam adultos baixos. O segundo ponto é que podemos medir a inteligência porque cerca de 70% do crescimento do cérebro se dá até os dois anos de vida. Uma criança que não teve um desenvolvimento adequado no começo da vida terá um nível de inteligência inferior ao seu potencial genético. Ela seria mais inteligente se não fosse afetada pela subnutrição e se o seu cérebro tivesse se desenvolvido de forma adequada.

Que problemas foram detectados na vida adulta das pessoas que foram acompanhadas na pesquisa?

Doenças crônicas como obesidade, sobrepeso, hipertensão ou diabetes, que são uma endemia no Brasil, têm uma prevalência muito alta e são determinadas em grande parte pelos hábitos alimentares e pela atividade física que ocorre no começo da vida. Nós temos quatro coortes em Pelotas que evidenciam um aumento progressivo na prevalência dessas doenças, mesmo em crianças e em adolescentes. Com o Brasil enfrentando um período de transição nutricional, nós já passamos de uma época em que a maior preocupação era a subnutrição. Os jovens de hoje sofrem de uma dieta hipercalórica devido principalmente ao excesso de alimentos ultraprocessados. Esse comportamento é que leva ao desenvolvimento da obesidade precoce e todas as consequências da doença, como uma série de tipos de câncer, hipertensão ou diabetes.

O que foi observado em relação à saúde das crianças nesses 40 anos?

Em quase quatro décadas, a gente observou que a prevalência de sobrepeso e obesidade em crianças de Pelotas está aumentando. São crianças de dois ou quatro anos de idade. É preocupante porque isso vai afetar a relação da saúde da população e sobrecarregar o sistema de saúde em um momento em que as doenças não transmissíveis já representam uma carga enorme. A boa notícia é que o desfecho da obesidade pode ser controlado pela promoção da atividade física e do controle do consumo de alimentos nocivos, como os ultraprocessados.

De que forma o aleitamento materno repercute positivamente na saúde?

O aleitamento é importante porque o leite materno contém uma série de substâncias essenciais, compostos como ácidos graxos saturados que formam a arquitetura do órgão cerebral. Tem outras substâncias neuroativas e células-tronco que também podem contribuir para o desenvolvimento do cérebro da criança. Vimos que o leite materno está associado a maiores níveis de inteligência, escolaridade e renda financeira na idade adulta. Esse achado é consistente com estudos feitos em outros países.

É possível concluir que uma criança é mais inteligente que outra apenas porque foi amamentada?

O nosso estudo foi baseado em comparar crianças com diferentes durações do aleitamento com aquelas que não foram amamentadas. É claro que a inteligência é multidimensional e multicausal, sendo afetada por inúmeros determinantes como a genética, a estimulação precoce, a qualidade da escola que a criança frequenta na infância e adolescência, e não apenas a amamentação. Nós conseguimos isolar esse efeito. Isso não quer dizer que toda criança amamentada seja um gênio e toda criança que não foi amamentada tenha um QI mais baixo.

O que é preciso para ter sucesso na amamentação?

É importante ter a ajuda de toda a sociedade. Começa pela família, amigos, redes sociais, serviço de saúde e as políticas nacionais. As autoridades, pressionadas pela sociedade civil, precisam garantir uma duração adequada da licença-maternidade, de seis meses ou mais. Tem que exigir que os locais de trabalho tenham locais para coleta de leite para que a mãe possa levar o leite materno para casa. É preciso controlar a propaganda nociva de substitutos do leite materno. A decisão de amamentar é uma decisão coletiva, do país inteiro. Quando escrevemos a série Lancet Amamentação, em 2016, que eu coordenei, eu dizia na capa da revista que o sucesso da amamentação é uma responsabilidade da sociedade e que não se deve culpar as mulheres que não conseguem amamentar num contexto em que a amamentação não é favorecida e promovida em todos os níveis da sociedade. A mulher tem que ser apoiada.

O que o senhor acha do marketing promovido pela indústria de produtos que competem com a amamentação?

A indústria de leite em pó adiciona componentes nas suas fórmulas, mas não consegue imitar a composição do leite materno. Ele é uma substância viva, tem células, tem compostos com propriedades antimicrobianas, tem anticorpos. É preocupante que continuem a solapar e a tentar afetar programas de promoção do leite materno. Nós temos um Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, aprovado no Brasil, que está desatualizado. Ele fala em propaganda no rádio, na TV, nos supermercados, em outdoor. O grosso dessa promoção ocorre via mídia social e em grupos de WhatsApp. Além de desatualizado, o código tem brechas e não é implementado como deveria ser.

Como vê a parceria da Sociedade Brasileira de Pediatria com a Nestlé, empresa que patrocina cursos e eventos para médicos pediatras?

Fico preocupado com a promoção de eventos e congressos científicos com o patrocínio de entidades científicas por indústrias de medicamentos, equipamentos, e, em especial, de alimentos substitutos do leite materno. Isso é reconhecido como conflito de interesses em vários países, sendo proibidos tais formas de patrocínio. A Sociedade Brasileira de Pediatria vem cumprindo, há muitos anos, um papel importante na promoção do aleitamento materno, inclusive tem um comitê de departamento de aleitamento materno muito competente e ativo, do qual participam vários amigos meus. Mesmo assim, creio que cortar totalmente os laços com a indústria seria importante para evitar reais conflitos de interesse, ou pelo menos evitar a aparência de possíveis conflitos que poderiam ocorrer.

A pesquisa científica é importante para o desenvolvimento de um país? Por quê?

Ela é um investimento no futuro de um país. Países como a China e a Coreia do Sul, que há 50 ou 70 anos eram tão ou mais pobres que o Brasil, investiram pesadamente em ciência e tecnologia e hoje são países desenvolvidos e ricos. Infelizmente, o Brasil não tem essa visão. Tivemos alguns governos nos últimos 20 anos que investiram na ciência, mas nos últimos cinco anos a gente constata uma reversão de muitos progressos. Está sendo muito difícil manter pesquisadores de alto nível aqui. Temos programas de pós-graduação bons, que formam pessoas excelentes, e que são atraídas por salários e melhores condições de trabalho em outros países. Eu estou chegando ao final da minha carreira científica, fui formado no país e no exterior com dinheiro do contribuinte brasileiro. Acredito que retribuí fazendo pesquisas por 40 anos aqui no Brasil, mas atualmente o cenário é negativo.

Durante a pandemia de covid-19, o Epicovid, uma das pesquisas conduzidas pelo seu grupo, teve resultados contestados e pesquisadores perseguidos. Quais os impactos dessa postura anticiência?

O Epicovid foi um estudo muito ágil. Menos de um mês depois do primeiro caso no Rio Grande do Sul, nós já tínhamos um estudo de base populacional para saber a verdadeira magnitude da pandemia. No início, de cada sete casos de covid, apenas um era relatado nas estatísticas oficiais. Evidenciamos desigualdades e apresentamos resultados sobre diferenças sociais e étnicas, com alta prevalência de anticorpos nos indígenas, negros e pardos. No momento em que houve uma troca [na gestão] no Ministério da Saúde, o ministério tentou censurar esses resultados, mas optamos por divulgá-los na imprensa nacional. Alguns pesquisadores foram perseguidos, como o coordenador do Epicovid, Pedro Hallal, meu ex-orientando, que depois foi reitor da UFPel e voltou agora para a epidemiologia.

Que erros o senhor aponta na condução da pandemia de covid-19?

Eu acho que o principal erro foi ignorar a ciência. Não entro no debate sobre o uso da máscara, distanciamento social e vacinas, sobre os quais há consenso na comunidade científica séria. Não apenas ignorar a ciência, mas ativamente contrariar a ciência. Isso continua sendo a bandeira do governo federal.

Como o senhor se aproximou do tema da desigualdade?

Durante a faculdade, eu participava de movimentos de saúde coletiva e fiquei chocado com a desigualdade em saúde no país, particularmente no governo militar. Isso me levou a optar por medicina comunitária e trabalhar em favelas. No doutorado, em 1983, minha tese foi sobre propriedade da terra e saúde da criança, mostrando que as crianças que viviam em áreas de latifúndio tinham piores condições de saúde que as crianças em áreas de minifúndio, onde a sua família era proprietária da terra. Depois, em 1988, publicamos o primeiro livro da coorte de Pelotas, o Epidemiologia da Desigualdade: um estudo longitudinal de 6 mil crianças brasileiras, com coautoria do Fernando Barros e Patrick Vaughan [professores]. Um livro do qual tenho muito orgulho. Tive a satisfação de ver que no Brasil, entre os anos 80 e 2010, houve uma redução das desigualdades regionais e sociais fruto de políticas pró-equidade de governos anteriores. Isso me deixou muito feliz, muito otimista por vários anos, mas infelizmente muito do progresso atingido parece estar sendo revertido em anos recentes.

Qual a importância de pesquisas sobre desigualdade em saúde?

Essas pesquisas são importantes por motivos éticos e relativos aos direitos humanos, mas também por motivos práticos. Elas permitem direcionar as intervenções do serviço de saúde e também em outros setores. Elas podem melhorar nossos serviços e garantir que as pessoas que mais precisam sejam alcançadas. Mas o importante é entender que as desigualdades em saúde são multidimensionais e multisetoriais e estão associadas com políticas de educação, transporte, água e saneamento, ambiente em sentido mais amplo. Se não tivermos políticas adequadas e bem-sucedidas como o SUS e a Estratégia Saúde da Família, o setor saúde tende a aumentar a desigualdade, que é o que ocorria no Brasil até 1990 e 1995.

Na sua avaliação, qual o papel do SUS na redução da desigualdade?

As desigualdades regionais e entre grupos sociais, e mesmo as desigualdades entre grupos étnicos no Brasil, foi muito reduzida em função da criação do SUS, da sua expansão pela Estratégia Saúde da Família. Isso foi muito positivo. E a gente vê com muita tristeza que o SUS sempre foi subfinanciado, mas atualmente está bem pior. Tem dinheiro para algumas coisas e não tem para outras mais básicas ainda. Isso é uma tragédia.

O senhor fez muitas viagens a trabalho. O que traz em sua bagagem depois que toma contato com outras realidades?

Durante 20 anos, fiz cerca de 15 viagens por ano, trabalhei em mais de 50 países. Eu ia para o interior olhar o serviço de saúde, fazer inquéritos. Foi muito bom para conhecer realidades que são bem piores do que aquelas que a gente enfrenta em boa parte do Brasil. O Brasil tem bolsões de pobreza, mas em certos países o bolsão inclui 90% da população. A minha especialidade é essa, ir de casa em casa entrevistar, examinar e ver as condições de vida das pessoas. É a epidemiologia de pé descalço que a gente faz até hoje.

O que é o programa de monitoração de equidade de saúde, que está ligado à universidade?

Nosso observatório global é o Centro Internacional de Equidade em Saúde (www.equidade.org) o qual eu coordeno junto com o professor Aluísio Barros. O Centro produz informações para OMS, Opas, Unicef, PNUD e uma série de agências diferentes. Os dados de desigualdade que estão no site da OMS (WHO Health Equity Monitor) são feitos em Pelotas. Recolhemos inquéritos de diversos países e analisamos. Essa análise mostra desigualdades muito importantes. Observamos que são poucos os países que não têm desigualdades étnicas, sociais e de gênero. Fico muito feliz em ter conseguido criar um centro internacional para aumentar a visibilidade da questão da equidade. Precisamos mudar as políticas de saúde para priorizar os grupos mais pobres, carentes e excluídos. Nosso trabalho em Pelotas contribui diretamente para medir essas desigualdades, inclusive para monitorar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [ODSs].

TRAJETÓRIA SINGULAR

Entre tantas premiações, Cesar Victora foi o primeiro e único brasileiro a receber, em 2017, o prêmio Gairdner de Saúde Global, um dos mais importantes da área, pelo conjunto de seus estudos na saúde materno-infantil. Em 2021, venceu o Prêmio Richard Doll em Epidemiologia, a principal premiação científica na área da epidemiologia mundial. Professor emérito da UFPel, Victora ocupa posições honorárias nas universidades de Harvard, Oxford, Johns Hopkins e Londres e é membro do conselho editorial de várias revistas, incluindo o periódico britânico The Lancet. Foi um dos fundadores e coordenador científico da iniciativa Contagem Regressiva para 2015 e é um dos líderes da Contagem Regressiva para 2030, que monitora os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

O epidemiologista realizou pesquisas em diversos estados brasileiros e ainda atua como pesquisador ou consultor em mais de 40 países, assessorando a OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em 2018, ao receber o título de Doutor Honoris Causa da UFRGS, ouviu que sua carreira foi “singular, improvável e rara”. “Singular”, segundo o orador, o também professor Marcelo Goldani, porque há poucos cientistas brasileiros com o reconhecimento mundial obtido por Victora; “improvável”, porque foi iniciada em um centro sem tradição em pesquisa; e “rara” por acontecer em um país como o Brasil, onde a educação e a ciência não são prioridades.

O centro que não tinha tradição é Pelotas, município que fica a 260 quilômetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e que entrou na vida de Victora de forma intencional. Gaúcho, nascido na cidade de São Gabriel, a duas horas da fronteira do Brasil com o Uruguai, ele desejou morar no interior, atuar em medicina comunitária e fazer pesquisa. Por conta do trabalho realizado por Victora e seu grupo, Pelotas se tornou um laboratório a céu aberto e um centro de referência internacional de pesquisas na área de epidemiologia, influenciando políticas globais. Em 2017, sua unidade de pesquisa na área de equidade em saúde, na UFPel, recebeu a designação de Centro Colaborador da OMS para o Monitoramento da Equidade em Saúde, do qual ele é o diretor.

Em Pelotas, Victora conciliou a pesquisa com uma outra paixão, o windsurfe, esporte que durante anos o levou “aos lugares mais ventosos do planeta”, como diz. Aos 70 anos, ele revelou que trocou os ventos favoráveis da Lagoa dos Patos, a maior laguna da América do Sul, pela natação, um esporte menos radical. “O esporte foi muito útil para a minha vida, viajei muito para fazer windsurf. Eu trabalhava no computador e, quando fazia aquela pausa, voltava com a cabeça fresca para ter novas ideias. Às vezes eu tinha ideias durante a prática do esporte”, relembra

CURVAS DE CRESCIMENTO

Para monitorar o crescimento e o estado nutricional durante a infância, profissionais de saúde utilizam as curvas de crescimento, um recurso que permite que conheçam seu estado geral individual e também de grupos de crianças ou da comunidade onde vivem. As curvas também são ótimos indicadores para mostrar a responsáveis como anda a saúde de seus filhos e filhas.

Em 1993, um Comitê de Especialistas da OMS ressaltou que o padrão de crescimento que era utilizado tinha problemas, principalmente por ser baseado em crianças amamentadas com fórmulas artificiais. Assim, um ano depois, a OMS recomendou a construção de novas curvas de crescimento infantil evidenciando como as crianças deveriam crescer. Para chegar às referências, foi realizado o Estudo Internacional Multicêntrico que acompanhou 8,5 mil crianças, com idades entre zero e cinco anos, de seis cidades de continentes diferentes, entre 1997 e 2003.

No Brasil, a pesquisa, coordenada por Cesar Victora, foi feita em Pelotas e a cidade realizou o estudo-piloto que depois seria aplicado nos outros centros. Entre tantos achados, a investigação definiu o aleitamento materno como referência para o crescimento ideal. Segundo Cesar Victora, as curvas refletem o crescimento ideal para crianças em qualquer lugar do mundo e hoje são utilizadas em 150 países. Elas permitem avaliar crianças independente de etnia, condição socioeconômica e tipo de alimentação. “Gosto de falar que tenho dois netos. Fernando, nasceu em Boston [nos Estados Unidos], e Arthur em Porto Alegre. É recompensador saber que ambos foram medidos, pesados e ‘plotados’ [com dados anotados] na curva que o avô deles ajudou a desenvolver”, observa.

COORTES: ESTUDO LONGITUDINAL

As Coortes de Nascimento de Pelotas — de 1982, 1993, 2004 e 2015 — seguem acompanhando cerca de 20 mil participantes. De forma regular, com informações medidas de tempos em tempos, as investigações sobre aleitamento, nutrição e crescimento infantil ajudaram a entender os efeitos que fatores nutricionais exercem ao longo de toda a vida sobre saúde física, desenvolvimento cognitivo e saúde mental. Por meio desses resultados, é possível conhecer o perfil dos brasileiros que hoje sofrem com dieta hipercalórica devido principalmente ao excesso de alimentos nocivos à saúde, como os ultraprocessados.

O estudo de coortes foi iniciado pelo médico pediatra, então professor da Universidade Católica de Pelotas, Fernando Barros, depois de perceber que a metodologia era uma maneira eficaz para estudar a história natural das doenças e analisar a influência de fatores precoces sobre o processo de adoecer da vida adulta. Victora se juntou ao projeto no fim de seu doutorado e, juntos, eles prepararam o primeiro acompanhamento da coorte e todas as suas etapas subsequentes até os dias de hoje.

Victora contou à Radis que cada coorte tem entre 4 e 6 mil pessoas. “O número de nascimentos em Pelotas vem caindo, o que se observa no Brasil inteiro, e cada vez que a gente convoca a coorte usamos uma equipe de pelo menos 50 pessoas para fazer o acompanhamento”, explica. No momento, a equipe termina um acompanhamento da coorte de 2015, com crianças que agora estão com sete anos, e começa o acompanhamento da coorte de 2004 que está com 18 anos. “A coorte de 82 vimos com 30 anos e a próxima visita será com 40, ainda em 2022”, salienta.

O importante é entender que as desigualdades em saúde são multidimensionais e multisetoriais e estão associadas com políticas de educação, transporte, água e saneamento, ambiente em sentido mais amplo. Cesar Victora

AMAMENTAR É PRIORIDADE

Em 2016, a revista Lancet publicou uma série sobre amamentação, coordenada por Cesar Victora, que mostrou que a amamentação exclusiva até os seis meses estava associada a maiores níveis de inteligência, escolaridade e renda financeira na idade adulta. “Nas nossas coortes em Pelotas, a gente observou que as crianças que foram amamentadas por mais tempo mostraram que têm desenvolvimento cerebral e inteligência mais elevados. E o aumento da inteligência persiste até pelo menos 30 anos de vida”, afirmou à Radis. Desde então, o pesquisador tem a receita para garantir saúde: “O aleitamento exclusivo significa dar só o peito da mãe até os seis meses e mais nada, sem chá, água, outro leite ou sucos. O leite em pó nunca vai conseguir substituir ou imitar o leite materno”, ressalta.

Os resultados desses estudos foram incorporados pela OMS em suas recomendações sobre amamentação. De acordo com Victora, o Brasil foi usado como referência. No período estudado, entre 1982 e 2015, a pesquisa comprovou que o aleitamento exclusivo reduz em 14 vezes o risco de morte infantil por diarreia e em 3,6 vezes por doenças respiratórias, principalmente em populações mais pobres, indicando que as desigualdades influenciam diretamente nas oportunidades de viver ou não com saúde e na qualidade de vida. O estudo mostrou que crianças amamentadas por mais de um ano tinham escolaridade 10% superior às que não completaram um mês de alimentação com leite materno e as que tinham maior período de amamentação tornaram-se adultos com renda 33% superior aos que não receberam leite materno por mais de 30 dias.

A série mostrou também que amamentar é importante para reduzir os gastos assistenciais e promover o desenvolvimento social e econômico via aumento da inteligência e da produtividade. O estudo calculou que o impacto econômico se todos os indivíduos tivessem sido amamentados por mais tempo resultaria em um ganho de 302 bilhões de dólares ao ano em todo o mundo.

BASTA AO NEGACIONISMO

No final de 2021, Cesar Victora recusou a promoção da Ordem do Mérito Científico, maior honraria dada a pesquisadores pelo governo brasileiro. Victora já tinha sido agraciado, em 2008, com o grau de comendador e, com a homenagem, passaria à classe superior de Grã-Cruz. A recusa foi feita em carta dirigida, em 5 de novembro, ao ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, em que justificou a forte oposição às decisões tomadas pelo governo federal no enfrentamento à pandemia. Na carta, o cientista afirmou que o governo não apenas ignorou, mas “ativamente boicotou as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva”. Além disso, citou “o negacionismo e os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência”, que estavam sendo “utilizados como ferramentas para retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade científica brasileira nas últimas décadas”.

O pesquisador também afirmou ao ministro que não compactuava com as perseguições a colegas cientistas, entre eles, o epidemiologista Pedro Hallal, ex-reitor da UFPel e coordenador do Epicovid (Estudo de Prevalência da Infecção por Coronavírus no Brasil), o maior estudo epidemiológico do coronavírus no país. Conduzido em 133 municípios brasileiros em 2020, o Epicovid trouxe informações que contrariaram e não foram bem recebidas pelo governo federal, como, por exemplo, o número de infectados por covid-19 ser cerca de seis vezes maior que o divulgado oficialmente. Pedro Hallal e sua família passaram então a ser ameaçados e perseguidos nas redes sociais.

Victora reconheceu que é difícil reagir às “milícias digitais, que atuam com completa ignorância do conhecimento científico”, em conversa com a Radis. “Temos a convicção do conhecimento válido num mundo onde o palpite, a achologia e o viés são às vezes muito mais divulgados que o conhecimento sólido. Temos toda uma metodologia de fazer pesquisa, de divulgar os resultados em revistas revisadas por pares; e uma pessoa acredita em um boato na internet, divulga, prejudica um trabalho de muito tempo e persegue os pesquisadores. Mesmo governantes perseguem pesquisadores sérios, o que é pior ainda”, conclui.

SERVIÇO

Epidemiologia da desigualdade: quatro décadas de coortes de nascimentos apresenta os principais resultados de um grande conjunto de pesquisas que contribuíram diretamente para a elaboração de políticas públicas de saúde materno-infantil no Brasil e no mundo. Escrito por Cesar Victora, António Augusto da Silva, Fernando Barros e Mariângela Freitas da Silveira, com a colaboração de 26 pesquisadores, o livro foi editado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) com apoio do PPGE/UFPel. Em nove artigos são analisados e interpretados dados relacionados à história reprodutiva e antropometria maternas; à atenção pré-natal e desfecho dos partos; e às condições de vida do primeiro ano dos bebês, incluindo questões antropométricas, mortalidade infantil, taxa de hospitalização, aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses, e nutrição e alimentação. [2]

[1] Foto: Daniela Xu

[2] Texto de Liseane Morosini

Como citar esta notícia: Fiocruz. Equidade para toda a vida.  Texto de Liseane Morosini. Saense. https://saense.com.br/2022/05/equidade-para-toda-a-vida/. Publicado em 06 de maio (2022).

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