Jornal da USP
06/07/2022
Você saberia dizer o nome de alguma escritora ou livro publicado por mulheres palestinas? Uma tese de doutorado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP pode ajudar a suprir a falta de informações sobre o tema. A pesquisa da jornalista Soraya Misleh de Matos discute a participação dessas escritoras na literatura e, ao mesmo tempo, relaciona essa arte à política. “A minha tese parte da hipótese de que a marginalização das mulheres na história não se deve ao fato delas terem tido um papel subalterno. Elas tiveram um protagonismo, o que acontece é que a história hegemônica, tipicamente, não considera as histórias e vivências dessas mulheres como cabíveis para serem incorporadas”, conta Soraya ao Jornal da USP.
A pesquisa foi focada nas escritoras do final do século 19 até os anos 1960, entre elas May Ziadeh e Samira Azzam. O estudo ainda traz, ao final da tese, uma breve descrição de mais de cem escritoras palestinas dos anos 1960 até os dias atuais, sendo algumas nascidas como refugiadas em países do oriente, como Amina Kazak (1960-), Faiha Abdulhadi (1951-), Ghada Karmi (1939-), Susan Abulhawa (1970-) e Rim Harb (1959-).
A motivação da autora em pesquisar o tema foi, principalmente, devido a sua identidade palestina, tanto materna quanto paterna. Além disso, o estudo partiu da vontade de estudar uma literatura que não é reconhecida, algo que não é exclusivo das palestinas, mas das mulheres no geral. “A ideia era trazer uma história mais completa da Palestina, incorporando a questão do gênero”, afirma.
A história e a literatura
O estudo analisou os escritos de mulheres nascidas na Palestina do final do século 19 até os anos 1960. Para analisar essas produções, Soraya recorreu a bibliotecas e acervos virtuais, trabalhos acadêmicos, além da contribuição de mulheres palestinas que a ajudaram com referências.
“Esse momento inicial, da segunda metade do século 19 até o início do século 20, é denominado Nahda, despertar cultural que tem seu ponto de partida no Egito e origina o movimento cultural árabe moderno. Então você tem uma produção literária muito rica, e é quando surgem os primeiros salons”, aponta Soraya.
Salons, de origem francesa, era uma palavra usada para se referir a salões literários, prática em que as pessoas recebiam convidados em suas casas para discutir ou vivenciar experiências culturais. A síria Maryana Marrash (1849-1913), considerada a primeira mulher a reviver essa tradição nos países árabes durante o Nahda, se envolveu no universo literário ao publicar poemas e artigos em jornais.
“Uma das autoras que eu trago na minha tese é May Ziadeh (1886-1941), poeta palestina-libanesa, que foi considerada um marco em relação aos salons”, exemplifica. A poeta buscou uma síntese entre os ideais iluministas, predominantes na época, e o reavivamento da herança clássica árabe. Assim, em seus salons, ocorreram discussões que iam desde recitais e críticas literárias até questões econômicas e sociopolíticas, como a emancipação da mulher.
“Ao final da década de 1920, a mulher árabe dá um salto no seu protagonismo”, diz a pesquisadora. É o período pós-Declaração Balfour — quando a Grã-Bretanha se declara favorável à constituição de um lar nacional judeu na Palestina. Nesse momento, as mulheres se unem aos homens nos protestos contra o sionismo colonial.
“As escritoras têm um papel de acompanhar esses acontecimentos da história e as próprias escritoras participam dessas ações de resistência, de política”, aponta a pesquisadora sobre a importância da literatura produzida pelas palestinas, que registram um protagonismo, muitas vezes, esquecido.
Um exemplo é Sadhij Nassar (1900-1970), escritora e jornalista, primeira mulher a ser presa por defender a Palestina, sua terra natal. Seu envolvimento político iniciou-se nos anos 1920, escrevendo no jornal Al Karmel, onde abordava temas sociais e de gênero.
Para além dos salons, que ajudaram no avanço da consciência feminina, os movimentos de resistência contra a colonização britânica dos palestinos também contribuíram para o feminismo anticolonial.
“O feminismo que tem obsessão contra véu não entende as especificidades: o problema não é o uso do véu em si, mas a sua obrigatoriedade. Nessa visão de obsessão do véu, há a ideia de que essas mulheres precisam ser salvas”, detalha Soraya. O feminismo anticolonial faz o contrário: desconstrói representações reducionistas da cultura oriental, lutando contra a opressão machista e a colonização, simultaneamente. E a consciência feminina, que é impulsionada pela literatura, é importante para a desconstrução de estereótipos, como essa ideia da “necessidade de salvamento”.
Outra escritora importante foi Samira Azzam (1927-1967): apesar de ter alcançado a fama na região, ela ainda é desconhecida fora do mundo árabe, com poucas traduções dos seus contos e romances. Ela adota uma narrativa realista que, em alguns momentos, destaca a determinação feminina palestina na resistência durante a Nakba, período que levou à expulsão de palestinos de suas terras devido à formação do Estado de Israel em 1948 e que dura até hoje. É com o Nakba que se inicia a literatura de resistência, produção cultural caracterizada pela consciência do oprimido.
Também autora da literatura de resistência, Najwa Kawar Farah (1923-2015) escreveu fábulas, contos, poemas, autobiografia e romance. Com linguagem popular e personagens baseados em pessoas comuns, suas produções se aprofundam na ocupação israelense e na discriminação contra mulheres na sua sociedade, questões vistas como indissociáveis à libertação palestina.
Soraya conta que essas autoras produziram em diversos gêneros literários, como romances e contos. Porém, a pesquisadora ressalta que a poesia ganhou destaque na sociedade devido à facilidade na transmissão oral.
“O feminismo que tem obsessão contra véu não entende as especificidades: o problema não é o uso do véu em si, mas a sua obrigatoriedade. Nessa visão de obsessão do véu, há a ideia de que essas mulheres precisam ser salvas”, detalha Soraya. O feminismo anticolonial faz o contrário: desconstrói representações reducionistas da cultura oriental, lutando contra a opressão machista e a colonização, simultaneamente. E a consciência feminina, que é impulsionada pela literatura, é importante para a desconstrução de estereótipos, como essa ideia da “necessidade de salvamento”.
A importância de estudar a literatura feminina árabe
Para Soraya, trazer uma história mais real e concreta, incorporando e inserindo a questão do gênero, era uma parte que faltava, um gap na história palestina. “Os escritos das mulheres não tiveram o mesmo espaço e suas histórias foram secundarizadas nos estudos e pesquisas. Assim, mesmo com livros publicados, a relevância dada não é igual, como se seu papel fosse subalterno na história, o que contradiz seu protagonismo”, destaca.
A tese, intitulada Uma história das mulheres palestinas: dos salons aos primórdios da literatura de resistência foi desenvolvida no Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e defendida no último dia 25 de abril, sob orientação do professor Michel Sleiman. “Eu penso que uma tese precisa contribuir de alguma forma para a sociedade, então trago essas descrições como forma de contribuição para futuros estudos”, finaliza.
Mais informações: e-mail sorayamisleh@usp.br, com Soraya Misleh de Matos. [1]
[1] Texto de Bianca Camatta.
Como citar este texto: Jornal da USP. Apesar da vasta produção literária, escritos de mulheres palestinas foram marginalizados. Texto de Bianca Camatta. Saense. https://saense.com.br/2022/07/apesar-da-vasta-producao-literaria-escritos-de-mulheres-palestinas-foram-marginalizados/. Publicado em 06 de julho (2022).