IPT
11/11/2022

Composição dos HPAs está sendo analisada por cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massa: técnica permite estabelecer indicadores de origem de contaminação, ou seja, se a contaminação se deu quando ocorreu a exposição direta a derivados de petróleo, ou quando aconteceu a exposição a produtos de combustão incompleta [1]

Qual é a composição do material particulado encontrado em pulmões de cadáveres? Para responder a esta pergunta, a pesquisadora Daniela Perroni Frias, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), está trabalhando desde 2019 em um projeto de pesquisa que estuda os efeitos de antracose em cocultura de células A549 (câncer de pulmão de pequenas células) e macrófagos tipo 1 ou tipo 2, sob a coordenação da professora Mariangela Macchione, também da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

A antracose pode ser definida como a pigmentação negra dos pulmões e da árvore traqueobrônquica (área que, juntamente com as vias aéreas superiores, tem a função de acondicionar e conduzir o ar até o pulmão) causada pela deposição de partículas de carbono inaladas, que provocam lesões inflamatórias no pulmão chamadas de pneumoconiose – esta é a designação usada genericamente, segundo a Secretaria de Saúde da Prefeitura de São Paulo, para todas as doenças que atingem o parênquima dos pulmões causadas por inalação de poeiras, independentemente do processo fisiopatológico envolvido.

A associação entre câncer e inalação de partículas não é nova: em 2014, o patologista Paulo Saldiva participou do painel da International Agency for Research in Cancer (Iarc) e mostrou a prevalência dos casos de câncer atribuídos à poluição do ar. Saldiva afirmou em entrevista para a Revista Pesquisa Fapesp, que havia evidências muito sólidas da redução da expectativa de vida por doenças respiratórias e cardiovasculares induzidas pela poluição do ar e também que a exposição à poluição urbana é uma das causas do câncer de pulmão.

“O objetivo do trabalho é o de estudar a composição do material particulado da antracose e o efeito no metabolismo celular, utilizando células de brônquios humanos normais, células de adenocarcinoma pulmonar e macrófagos tipo 1 e tipo 2, expostos a partículas de exaustão de diesel e antracose”, explica a pesquisadora.

Segundo ela, foram escolhidas células de brônquios normais porque elas não apresentam nenhum tipo de patologia, garantindo que a resposta encontrada pelo estudo seja provocada apenas pela exposição às partículas, sem nenhuma condição prévia.

No caso da segunda escolha, as células de adenocarcinoma são já derivadas de um câncer, contrastando com a célula normal, o que permite analisar o perfil de resposta à exposição das partículas em um ‘cenário sem doença’ versus ‘cenário com doença’.

Finalmente, como os macrófagos (importantes células do sistema imunológico, envolvidas na eliminação de células/partículas estranhas ao organismo) têm uma participação ativa no estabelecimento da antracose (eles fagocitam as partículas que ficam depositadas), a pesquisadora utilizará a cocultura dessas células pulmonares normais e cancerígenas com dois de seus tipos: M1 – pró-inflamatório e M2 – anti-inflamatório (este mais relacionado ao desenvolvimento de tumores).

METODOLOGIA – O material particulado ambiental, ou material particulado do diesel (DEP), foi coletado acoplando um retentor de partículas ao escapamento de um motor a diesel de um ônibus. O material antracótico foi coletado de pulmões de cadáveres do Serviço de Verificação de Óbitos da cidade de São Paulo.

“Conforme a fuligem sai pelo escapamento, ela fica depositada na camada interna do retentor. Esse método foi escolhido porque conseguimos grande quantidade de material particulado em comparação com a coleta de PM2,5 ambiental, que é feita a partir de filtros, com difícil recuperação e quantidade bem menor de material, além de a fuligem do escapamento ser mais estável, possibilitando uma análise mais segura de seus componentes “, explica Frias.

A coleta da antracose, segundo ela, não poderia ser feita de outra forma, uma vez que as partículas já estão depositadas no pulmão, e a única opção era a retirada posteriormente à morte.

METODOLOGIA NO IPT – O Laboratório de Química e Manufaturados do IPT participa do trabalho com a determinação dos Hidrocarbonetos Policiclicos Aromáticos (HPAs) no material extraído dos cadáveres. A composição dos HPAs está sendo analisada por cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massa (GCMS) porque esta técnica permite a correta identificação e quantificação de 18 moléculas de HPA, incluindo algumas de grande interesse biológico por conta da toxicidade, como o naftaleno, o pireno e o benzo(a)antraceno.

“Essa técnica permite ainda estabelecer indicadores de origem de contaminação baseado na relação entre os compostos detectados: por exemplo, se a contaminação é de origem petrogênica, quando ocorre a exposição direta a derivados de petróleo, ou pirogênica, quando acontece a exposição a produtos de combustão incompleta”, afirma o pesquisador do laboratório, João Paulo Amorim de Lacerda.

É a primeira vez que o laboratório do IPT realiza uma avaliação de material extraído de cadáveres. E quais seriam as particularidades para executar este trabalho em comparação a análises realizadas no dia a dia? Segundo o pesquisador, a diferença é que esse material está retido no material biológico dos tecidos pulmonares, praticamente dentro das células. Assim, foi usado um processo enzimático para separar as partículas do tecido (realizado pela pesquisadora da USP) que, em seguida, foram recuperadas para que fosse enviado apenas o particulado preto para as análises. 

“É a primeira vez que trabalhamos com material de origem biológica humana e isso mostra a versatilidade de aplicações das técnicas analíticas que dispomos aqui e a capacitação da equipe na definição de estratégias analíticas para caracterização de materiais complexos”, afirma Lacerda. Atualmente, os HPAs são uma das classes mais importantes de carcinógenos devido à sua abundância e persistência no meio ambiente. 

PRIMEIROS RESULTADOS – A maioria dos HPAs encontrados nas primeiras amostras foram das espécies naftaleno e acenaftileno. Os HPAs são compostos aromáticos com dois ou mais anéis benzênicos fundidos em suas configurações estruturais. 

Essas espécies químicas com até quatro anéis são chamadas de HPAs leves, enquanto aqueles contendo mais de quatro anéis são denominados como pesados. Os HPAs pesados são mais estáveis e mais tóxicos em comparação aos leves – o naftaleno, por exemplo, tem dois anéis enquanto o acenaftileno apresenta três anéis.

“Apesar de serem leves, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) classifica o naftaleno como possível cancerígeno humano, com base na evidência de neuroblastomas olfativos e adenomas do epitélio nasal em cobaias expostas por inalação. O acenaftileno não está listado na IARC como um carcinógeno, mas por ser um HPA ele é tratado como um risco potencial, pela capacidade do seu metabolismo de gerar espécies reativas de oxigênio e estresse oxidativo”, explica o pesquisador.

Segundo os pesquisadores, a antracose não é um particulado inerte no organismo, provavelmente pelo HPA em sua composição, e é capaz de causar reações semelhantes ao particulado ambiental em células epiteliais normais ou cancerosas e em macrófagos.

“Alguns pesquisadores acreditam que essas partículas retidas no pulmão já foram metabolizadas pelo organismo, não representando um perigo e sim apenas um marcador de exposição à fuligem e à poeira. Contudo, ao extrair esse material e analisar sua natureza, descobrimos que ainda existem HPAs nessas partículas, ou seja, eles não foram totalmente metabolizados” afirma a pesquisadora.

Os primeiros resultados abrem a possibilidade de que a lesão antracótica apresente um perigo em potencial, mesmo depois que as partículas entraram em contato com as defesas dos pulmões – a conclusão definitiva, ressalta a pesquisadora, só será possível no fim do trabalho, com todas as análises e controles realizados.

[1] Foto: IP.

Como citar este texto: IPT. Poluição e câncer.  Saense. https://saense.com.br/2022/11/poluicao-e-cancer/. Publicado em 11 de novembro (2022).

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