Fiocruz
13/12/2022
Depois de tramitar por 20 anos no Congresso Brasileiro, o Projeto de Lei (PL) 6.299 de 2002, conhecido como Pacote do Veneno, foi aprovado na Câmara dos Deputados em 09 de fevereiro de 2022 — e seguiu para tramitação no Senado, agora convertido no PL 1.459 de 2022. Na embalagem do “pacote”, está a proposta de atualizar a lei 7.802 de 1989, a principal legislação sobre agrotóxicos no Brasil; porém, no conteúdo, o real propósito: flexibilizar o controle sobre esses produtos nocivos à saúde no país. “A aprovação do PL 6.299/02 representa um enorme retrocesso para a sociedade como um todo, pois institucionaliza medidas que representam graves danos ao ambiente e à saúde humana”, avalia Aline Gurgel.
Em entrevista para a reportagem de capa da Radis de dezembro (243), Aline aborda o lobby do setor ruralista para aprovar um projeto que afrouxa a regulação sobre os agrotóxicos no Brasil e aumenta os riscos à saúde e ao ambiente. Pesquisadora do Laboratório Saúde, Ambiente e Trabalho do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco) e vice-coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz, ela pontua que a presença de agrotóxicos já foi identificada no Brasil em sucos, polpas, massas, salgadinhos, biscoitos, pães, ovos, leite, carnes e outros alimentos. “Apesar do perigo que o consumo de agrotóxicos representa para a saúde da população, não existe nenhuma lei que obrigue a indicação de que aquele produto foi produzido com o uso de agrotóxicos, negando à população o direito à informação”, relata.
O tema “agrotóxicos” está diretamente relacionado ao modelo de produção agrícola adotado no país. Que interesses e pressões motivam essa tendência de liberalização/desregulação do controle dos agrotóxicos no Brasil e como eles têm atuado diretamente no Congresso?
Existe um modelo de produção pautado na exploração do ambiente e da mão de obra dos trabalhadores, que é predatório e grande responsável pela destruição de biomas e uma importante força motriz da crise climática que ameaça a vida no planeta. Esse modelo também se coloca como uma ameaça à própria vida humana e vem se somando às emergências em saúde pública que tem, de forma cada vez mais frequente, causado grandes danos à sociedade contemporânea, em processos sindêmicos, que podem ser definidos como uma interação entre os problemas de saúde e processos socioeconômicos/ambientais. Apesar da gravidade dos problemas representados por esse modelo de produção, o agronegócio que se sustenta nesse formato se expande e tem encontrado nos últimos anos no Brasil a conjuntura ideal para a expansão de seus interesses. O avanço do neoliberalismo se reflete na bancada de parlamentares vinculados ao grande agronegócio, que tem pressionado para que projetos que não haviam encontrado condições favoráveis para tramitar na Câmara dos Deputados e Senado sejam “tirados da gaveta”. É o caso do PL 1.459, o então PL 6.299 e que foi renumerado ao chegar no Senado, após aprovação na Câmara. Esse Projeto de Lei estava engavetado desde 2002, pois a conjuntura política e econômica não proporcionava as condições adequadas para sua aprovação nos termos exigidos pelo grande agronegócio. Com a ruptura democrática pós 2016, o cenário ideal para que projetos que diminuem a atuação do Estado, inclusive sobre produtos perigosos, bem como reduzem as medidas de proteção ambiental, trabalhistas e de saúde, se conformava, dando vida ao PL 1.459.
Quais os impactos decorrentes da aprovação do chamado Pacote do Veneno?
A aprovação do PL 6.299/02 representa um enorme retrocesso para a sociedade como um todo, pois ele institucionaliza medidas que representam graves danos ao ambiente e à saúde humana. Os impactos associados à aprovação desse PL serão severos, e muitos deles podem ser potencialmente irreversíveis. Esses danos serão sentidos em curto, médio e longo prazos, em particular por grupos em maior situação de vulnerabilidade, como campesinos, indígenas, quilombolas, crianças, idosos e outros. Haverá impacto sobre os diferentes ecossistemas, pois a intensificação do uso de agrotóxicos fomentado pela flexibilização do registro pode levar à redução ou mesmo à eliminação de espécies benéficas, como polinizadores, a exemplo das abelhas, que são grandes responsáveis pelos cultivos mundiais que produzem frutos e sementes, e até de microorganismos do solo necessários ao crescimento das plantas. Esse desequilíbrio pode levar à extinção de várias espécies animais e vegetais, reduzindo em médio e longo prazos a produtividade do setor agrícola, com impactos ambientais no mundo inteiro. Pode haver perda de biodiversidade, contaminação de fontes de água, aumento da resistência das chamadas “pragas agrícolas”, dentre outros problemas.
Quais os riscos diretos dos agrotóxicos sobre a saúde humana?
Para a saúde, alguns dos agravos associados à exposição a agrotóxicos e documentados na literatura científica são malformações em crianças, mutagênese, cânceres, desregulação hormonal e outros, além de intoxicações agudas. Destacam-se os elevados custos econômicos para os serviços de saúde associados ao tratamento das intoxicações. Um estudo apontou que, somente para tratamento de intoxicações agudas, para cada dólar investido na compra de agrotóxico, U$ 1,28 é gasto no tratamento de intoxicações agudas no SUS. Para intoxicações crônicas, de difícil tratamento e longo seguimento, sequer existem estudos que permitam estimar gastos, dada a diversidade de agravos potencialmente associados às exposições e à dificuldade de mensurar tal custo.
Uma sociedade séria e verdadeiramente preocupada com seus cidadãos jamais permitiria que decisões políticas pautadas por interesses econômicos guiados pelo lobby da indústria de agrotóxicos se sobrepusessem à defesa da vida.
E esses riscos à saúde podem ser ampliados caso o Projeto de Lei (PL) 1.459 de 2022 — antigo PL 6.299/02 — seja aprovado?
O PL propõe eliminar a proibição de registro de agrotóxicos com características “teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas”, como previsto na lei 7.802, de 1989. A partir da aprovação desse Projeto de Lei, somente seriam proibidos agrotóxicos que apresentem “risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente”, condicionando a aprovação do registro ao cumprimento de todas as etapas do processo de avaliação de risco. Hoje a legislação brasileira vigente, acertadamente, proíbe o registro de um agrotóxico na primeira etapa da avaliação de risco, que é a identificação do perigo. Isso quer dizer que, quando existem evidências que associem um agrotóxico a malformações congênitas, cânceres, mutações, desregulação hormonal, danos reprodutivos, seu registro é automaticamente proibido. Ainda, essa medida se opõe ao Princípio da Precaução, previsto no arcabouço legal brasileiro, ao impor a exposição a agrotóxicos potencialmente associados a danos graves para a saúde e para o ambiente baseando-se na “incerteza” da ocorrência desses efeitos. Quantos casos de câncer ou de malformações em bebês são considerados aceitáveis? Uma sociedade séria e verdadeiramente preocupada com seus cidadãos jamais permitiria que decisões políticas pautadas por interesses econômicos guiados pelo lobby da indústria de agrotóxicos se sobrepusessem à defesa da vida.
Para um leitor ou leitora pouco habituado com o assunto, qual é o tamanho do problema quando se fala em contaminação dos alimentos com agrotóxicos?
A realidade de exposição aos agrotóxicos no Brasil não é a uma única substância, por uma única via. Ao contrário, devido ao uso de grandes quantidades de diferentes tipos agrotóxicos, as pessoas se expõem a uma mistura de substâncias, e não a um agente isoladamente. Essa exposição, seja ela ambiental, ocupacional ou dietética (via ingestão de água ou alimentos contaminados) se dá a um conjunto de agentes, que podem interagir entre si, e não há nenhuma modelagem ou desenho de estudo capaz de definir com precisão os efeitos para a saúde e para o ambiente decorrentes dessas interações. Nesses casos, medidas precaucionarias precisam ser adotadas, evitando a exposição frente às incertezas. A modificação da lei vigente, que acaba com a proibição do registro de um agrotóxico na etapa da identificação do perigo — como ocorre para carcinógenos, agentes mutagênicos ou desreguladores endócrinos ou que causam malformação em bebês — contraria os critérios de regulação da Comunidade Europeia, que inclusive foram alterados, de risco para perigo, igualando ao previsto na lei em vigor no Brasil. As mudanças propostas no PL pertinentes ao processo de avaliação de risco não representam “modernização” ou “desburocratização”, mas um potencial retrocesso, indo na contramão dos avanços que vem sendo adotados nos EUA e Comunidade Europeia.
A presença de agrotóxicos já foi identificada no Brasil em sucos, polpas, massas, salgadinhos, biscoitos, pães, ovos, leite, carnes e outros alimentos, demonstrando a magnitude da contaminação provocada pelo uso de agrotóxicos.
O que há de veneno em nosso cotidiano que não vemos?
Os agrotóxicos podem estar presentes tanto em alimentos in natura como em produtos alimentícios processados e ultraprocessados, uma vez que não existe nenhuma técnica capaz de remover 100% dos resíduos de agrotóxicos em alimentos, incluindo os de origem animal. Isso quer dizer que pode haver agrotóxico tanto no tomate como no molho pronto; tanto em uma fruta como em um suco ou néctar industrializado. A presença de agrotóxicos já foi identificada no Brasil em sucos, polpas, massas, salgadinhos, biscoitos, pães, ovos, leite, carnes e outros alimentos, demonstrando a magnitude da contaminação provocada pelo uso de agrotóxicos. Recentemente, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) evidenciou a presença de agrotóxicos em produtos alimentícios de origem animal, como linguiça, salsicha, mortadela, hambúrguer, empanado de frango, bebidas lácteas e requeijão comercializados no Brasil, mostrando que a presença de agrotóxicos em alimentos e produtos alimentícios constitui uma verdadeira ameaça ao direito humano à alimentação adequada.
E como é o controle do poder público sobre a presença dos agrotóxicos nos alimentos que consumimos?
Não há obrigatoriedade de rastreio de agrotóxicos em alimentos, à exceção daquela feita no âmbito do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) e voltada somente para algumas culturas de alimentos in natura, como morango, pimentão e tomate. Em outras palavras, não há exigência de rastreio de agrotóxicos em produtos alimentícios processados e ultraprocessados que, além do menor valor nutricional e adição de produtos como corantes e conservantes, podem ainda conter agrotóxicos associados a danos à saúde, ameaçando a segurança alimentar e nutricional dos brasileiros e brasileiras. Apesar do perigo que o consumo de agrotóxicos representa para a saúde da população, também não existe nenhuma lei que obrigue a indicação de que aquele produto foi produzido com o uso de agrotóxicos, negando à população o direito à informação. De forma controversa, os alimentos orgânicos são monitorados quanto à presença de resíduos de agrotóxicos, e caso seja identificada a presença, o produtor pode ter a comercialização de seu produto suspensa ou até mesmo proibida. Enquanto isso, quem usa agrotóxico segue comercializando livremente os seus produtos industrializados, sem qualquer monitoramento sistemático.
E como se dá a contaminação indireta ou por meio da água?
Esses agrotóxicos podem chegar aos alimentos de diferentes formas, intencionalmente ou não. A presença não intencional se dá quando o alimento é produzido sem agrotóxicos, mas é contaminado por meio da água contendo resíduos (seja por lixiviação, seja por irrigação), seja por deriva técnica e ou acidental de cultivos vizinhos, seja pelo cultivo em solo contaminado, por exemplo. Muitos agrotóxicos são persistentes no ambiente ou apresentam meia vida aquática/terrestre longa, e substâncias que apresentam características como essa podem permanecer por longos períodos nos diferentes compartimentos ambientais. Já a contaminação intencional é pela aplicação nas lavouras, ou mesmo pelo tratamento das sementes, antes mesmo do plantio, com agrotóxicos, por exemplo, fazendo com que, a depender das características do agente utilizado e dos demais componentes do produto formulado, este possa permanecer no alimento mesmo após chegar ao consumidor final.
E o que podemos dizer sobre os impactos dos agrotóxicos sobre a saúde dos trabalhadores rurais diretamente expostos?
Os trabalhadores constituem um grupo particularmente vulnerável, por estarem expostos rotineiramente, ainda que a baixas doses. Diversos estudos apontam um risco diferenciado para trabalhadores, identificando que há risco aumentado para a manifestação de diversas patologias, independente da dose. A exposição frequente a baixas doses pode, então, levar à ocorrência de danos, inclusive pela acumulação de alguns destes agentes no organismo, ou mesmo pela não existência de uma relação direta entre a dose e o efeito, como carcinógenos genotóxicos ou nos casos de compostos que apresentam curvas de efeito não monotônicas, onde efeitos significativos podem ser observados em baixas doses. Estudos recentes apontam que os efeitos de baixas doses e de relações não monotônicas são frequentemente observados após a exposição a desreguladores endócrinos, como é o caso de vários agrotóxicos, incluindo alguns dos mais utilizados no Brasil, como o 2,4-D, o glifosato e a atrazina.
E como o contexto de fragilização das condições de trabalho contribui para ampliar ainda mais os riscos à saúde do trabalhador pela exposição aos venenos?
É preciso considerar que frequentemente as condições de trabalho são precárias. Há dificuldade no acesso à informação no campo. Existe uma carência de assistência técnica e de ações de fiscalização trabalhista, assim como de vigilância em saúde, que aumentam as situações de risco para os trabalhadores. Quando se fala de trabalhadores rurais no Brasil, há que se considerar ainda o baixo nível de escolaridade de boa parte desse grupo, o que pode levar a dificuldades em ler e interpretar informações em rótulos e bulas de agrotóxicos, por exemplo, o que pode aumentar os cenários de exposição. Destaca-se que o risco de exposição dos trabalhadores não é eliminado pelo simples uso de equipamentos de proteção individual (EPI), como advogam os defensores do PL. Diversos estudos indicam a baixa eficiência dos EPI, que muitas vezes viabilizam o contato dos trabalhadores com os agrotóxicos, inclusive nos procedimentos de vestir e despir as vestimentas, bem como durante o processo de limpeza destes. Outro fator importante a ser considerado é que, em geral, os EPI são projetados para uso em condições climáticas diferentes das observadas em grande parte do país, praticamente inviabilizando seu uso devido às altas temperaturas proporcionadas pelo clima tropical. Ainda, grande parte dos EPI foi concebida para proteger contra agentes isolados, ignorando os potenciais efeitos combinados dos agrotóxicos utilizados no campo. Analisar essas questões em um cenário de perda de direitos trabalhistas e redução de medidas mais protetivas para a saúde e o ambiente gera preocupação quanto às repercussões sobre a saúde dos trabalhadores expostos a agrotóxicos, especialmente no campo.
Ainda sobre o modelo agrícola: Um dos argumentos adotados pelo setor do agronegócio é de que não é possível produzir sem veneno — e que o uso de agrotóxicos seria uma característica da modernização agrícola. Como tem se organizado a resistência aos agrotóxicos, principalmente com o protagonismo de pequenos agricultores, trabalhadores do campo e populações tradicionais? Que alternativas e outros modelos de agricultura têm sido buscados no Brasil?
O PL afeta o desenvolvimento de sistemas agrícolas tradicionais, ameaçando a manutenção das práticas de populações tradicionais e agricultores familiares. Atualmente existe uma proposta de PL alternativo ao Pacote do Veneno, que é o PL 6.670/2016, que cria a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara). Essa proposta está vinculada à redução do uso de agrotóxicos e à promoção de um sistema alimentar mais justo e sustentável, respeitando direitos humanos fundamentais como o da alimentação adequada e o da defesa da vida. A Pnara se opõe também ao racismo ambiental promovido pelo PL, que determina que o risco maior da exposição aos agrotóxicos recaia sobre os mais pobres e vulnerabilizados, como, por exemplo, trabalhadores da agricultura, populações do campo, pobres, crianças, mulheres, indígenas, quilombolas e pessoas imunossuprimidas. A Pnara trata, em última instância, do projeto de país que queremos: com mais veneno ou voltado à proteção da vida? [2]
[1] Foto: Divulgação/Fiocruz
[2] Texto de Luiz Felipe Stevanim
Como citar esta notícia: Fiocruz. O veneno está na mesa. Texto de Luiz Felipe Stevanim. Saense. https://saense.com.br/2022/12/o-veneno-esta-na-mesa/. Publicado em 13 de dezembro (2022).