Adolfo Melo
07/02/2023
O ar é isolante, acho que todos devem saber, mas é só até certo ponto. Para altas tensões até mesmo o ar, com centenas ou milhares de metros de comprimento num dia de tempestades, pode se tornar condutor. Quando isso ocorre diz-se que houve um rompimento da barreira dielétrica e um arco voltaico é formado, arco este por onde os elétrons vão viajar pela atmosfera. O nome rotineiro para este arco voltaico é simplesmente raio. A novidade é que o fenômeno que causa um raio é muito semelhante ao que ocorre em um cérebro inorgânico e talvez este cérebro seja o futuro da inteligência artificial (IA).
Vários cientistas, inclusive eu no meu doutorado, estudamos materiais considerados semicondutores, ou seja, materiais que estão na fronteira entre ser isolante e ser condutor. Um exemplo é o óxido de zinco – aquele usado em talco de bebê e pomadas para assaduras -, pois bem, utilizando técnicas sofisticadas é possível construir filmes extremamente finos de semicondutores os quais podem ser estimulados por tensões elétricas. Quando você aplica uma baixa tensão o filme semicondutor que inicialmente possui resistência elétrica muito alta, na ordem até de bilhões de ohms, começa gradativa e vagarosamente a alterar a resistência, e à medida que você vai aumentando a tensão, há um momento em que ocorre o rompimento da barreira dielétrica do filme, algo entre 5 e 20 Volts, e os elétrons então fluem, pois agora o filme se tornou condutor. Muito parecido ao que ocorre com o raio, não é? Mas as semelhanças não param por aí.
Na Figura 2, que está no artigo de Kim e colaboradores (2011) [2], podemos perceber que durante o aumento gradativo da tensão, ocorrem modificações estruturais internamente ao filme. Estas alterações possuem formatos interessantes. No caso deles, o filme fino é uma composição de prata, germânio e selênio. Qual formato o leitor acha que se parece? Um raio? Ou quem sabe, um “dendrito”? Exatamente, durante a formação dessa estrutura há migração de íons, e estes íons (como tudo na natureza) seguem pelo caminho mais fácil, de menor resistência. No entanto esse caminho, nem sempre é tão retilíneo pois depende do meio e da aleatoriedade na qual é constituída a camada semicondutora (ou isolante). Veja que numa amostra mais amorfa, o caminho formado não é tão preferencial, mas sim mais ao estilo arbóreo.
A questão principal é que dispositivos que assim funcionam são chamados de memristores (memórias baseadas em resistência elétrica) e tem alcançado grande aplicabilidade em dispositivos para armazenamento de dados, em que ao estado de maior resistência entende-se como bit 0, e ao estado de menor resistência entende-se como bit 1 (ou vice-versa). Contudo, não há somente este comportamento binário, é possível haver também estágios intermediários de resistência, ou seja, variar continua e gradativamente entre o estado de maior resistência e o de menor, algo bastante semelhante ao que ocorre em sinapses neuronais, cujo mecanismo de aprendizagem em animais está intimamente relacionado às conexões neuronais (vide o artigo que eu publiquei anteriormente [3]). Numa revisão rápida, quando dois neurônios não estão conectados a resistência elétrica entre eles é alta, porém quando a conexão é formada e a sinapse é bastante estimulada tem-se a menor resistência elétrica possível.
Diversos dispositivos neuromóficos (estes com capacidade de imitar o mecanismo de sinapse) têm sido estudados, e os resultados publicados [4] indicam fortemente a aplicabilidade em substituir um conjunto de neurônios por chips feitos com filmes finos neuromórficos, ou mesmo desenvolver softwares que se articulam com estes chips para assim formar IA não só através de programação, mas também por vias de hardware de redes neurais. Aqui digo rede neural o dispositivo formado por milhões de memristores nanoscópicos interligados entre si via eletrodos condutores e à medida que a rede neural é estimulada por tensão elétrica haverá a comutação entre os estados de resistência. Em outras palavras, a rede neural consegue ir se adaptando e se modificando de acordo com estímulos elétricos.
Desta forma, é possível que perceber que a relação entre raio de tempestade e cérebro inorgânico está nos dispositivos memristores, os quais são feitos de materiais semicondutores que tem sua barreira dielétrica rompida por modificações estruturais em sua composição através de aplicação de tensão elétrica. Estas modificações possuem formatos tipo raio ou arbóreo a depender de sua organização atômica mais aleatória ou não. Assim sendo, além de armazenar dados, é possível imitar o mecanismo de aprendizado animal mimetizando como as sinapses se formam, e com isso aplicar em futuras IAs que vão aprender de forma semelhante aos animais.
[1] Crédito da Imagem: Timothy Kirkpatrick / Wikimedia Commons </p>
[2] KM Kim et al. Nanofilamentary resistive switching in binary oxide system: a review on the present status and outlook. Nanotechnology 10.1088/0957-4484/22/25/254002 (2011)
[3] Adolfo Melo. As máquinas podem ter sinapses eletrônicas. Saense. http://www.saense.com.br/2018/03/as-maquinas-podem-ter-sinapses-eletronicas/. Publicado em 30 de março (2018)
[4] Melo et al. Transition from homogeneous to filamentary behavior in ZnO/ZnO-Al thin films. JOURNAL OF ALLOYS AND COMPOUND 10.1016/j.jallcom.2018.08.229 (2019)
Como citar este artigo: Adolfo Melo. A relação entre raio de tempestade e cérebro inorgânico (futuro da IA?). Saense. https://saense.com.br/2023/02/a-relacao-entre-raio-de-tempestade-e-cerebro-inorganico-futuro-da-ia/. Publicado em 07 de fevereiro (2023).
Excelente artigo! Tudo bem explicado 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼