Jornal da USP
04/04/2023
Baseado em um rico material historiográfico, uma pesquisa da USP reconstrói a história das tavernas brasileiras dos períodos colonial e imperial. O estudo mostrou que mesmo com uma visão estigmatizada construída pela sociedade, elas tiveram importância na formação da cultura do País. No século 18, durante o ciclo da exploração do ouro em Minas Gerais, sua imagem foi associada a pecados, indecências e devassidão. No século 19, o Estado via as tavernas como redutos de confusões, tumultos e negócios ilícitos; para os fazendeiros, esconderijos de escravizados fugitivos e ladrões; e, para a vizinhança, sinônimo de despudores, crimes, brigas e embriaguez.
O trabalho deu origem à tese História das tavernas do ouro ao café (séculos 18 e 19), de autoria de Lucas Endrigo Brunozi Avelar, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob a orientação do professor Henrique Soares Carneiro. O historiador analisou relatos de viajantes, processos criminais, atas de reuniões da Câmara e do Senado, notícias de jornal, manuais agrícolas, literatura de época, obras de memorialistas e folcloristas e documentação eclesiástica referentes às tavernas de Minas Gerais, no período da extração do ouro, e do Rio de Janeiro, capital do império português e zona de plantação cafeeira escravista.
Os primeiros registros da existência das tavernas datam do século 16. No início da colonização do Brasil, elas ofereciam vinho e espaço para os portugueses comemorarem vitórias nas guerras empreendidas contra os indígenas. Frequentadas por pessoas de várias classes sociais, as precárias “vendas de beira de estrada” passaram a comercializar de tudo, desde gêneros de subsistência como milho, mandioca e café, até bebidas alcoólicas como a aguardente, o item mais popular desses estabelecimentos. Também cumpriam outras funções, servindo de pouso para viajantes e tropeiros e promovendo “diversão” para seus frequentadores.
“As tavernas favoreciam tanto a economia do contrabando como a cultura da convivialidade das pessoas, da tolerância e trocas recíprocas”, diz Henrique Carneiro ao Jornal da USP. O estudo analisa e problematiza as visões moralistas e antagônicas a partir das quais se construiu uma imagem caricatural desses espaços públicos. “Por serem versáteis e constituídas de ‘elementos disruptivos e, ao mesmo tempo, contenciosos – caminhos e descaminhos, ordem e desordem, lícito e ilícito’, as tavernas sempre estiveram abertas a diferentes tipos de interação social, com desfechos próprios, dependendo da época, dos agentes envolvidos e da dinâmica de cada local”, descreve Bruno Avelar, se referindo às múltiplas funcionalidades das tavernas, frequentadas, à época, por pessoas de diferentes estratos sociais – escravizados, viajantes, tropeiros, capatazes de fazenda e até mesmo padres, em algumas ocasiões.
Segundo a pesquisa, a taverna era lugar inclusive para a formação e circulação de novas ideias políticas, longe dos ouvidos e das vontades dos senhores de pessoas escravizadas e da Coroa portuguesa. Em um processo judicial da época, Tiradentes foi acusado de andar pelas tavernas inflamando pessoas com ideias republicanas.
“É possível que Tiradentes tenha levantado sua voz para falar sobre República e liberdade nesses lugares de encontro populares, de refúgio dos cativos, lugares de descobertas, de invenção e imaginação de outros mundos possíveis”, diz o estudo.
Tavernas do Brasil colônia
Segundo o historiador, as tavernas como espaços para ofertas de gêneros de subsistência surgiram no Brasil colônia, ao longo do século 18, para atender a uma crescente demanda de mobilidade espacial gerada pela mineração, que atraiu milhares de pessoas para Minas Gerais interessadas em enriquecer por meio da extração do ouro. Os estabelecimentos vendiam aguardente e alimentos dos mais variados: milho para animais e pessoas, frango, porco, mandioca, peixe, legumes, verduras, alguma cerveja, doces esporádicos, tabaco, maconha, utensílios domésticos e ferramentas.
A chegada da Corte em 1808 e a expansão cafeeira provocaram aumento da atenção policial aos estabelecimentos, eleitos como o principal foco das desordens sociais. Mesmo assim, na cidade do Rio de Janeiro, inúmeras ocorrências em jornal documentam as variadas funções daqueles espaços. Foi nessas fontes que o historiador encontrou registros de escravizados fugidos de seus senhores, como relata o anúncio da época:
“ditto Monjolo, de nome Sebastião, estatura ordinária, tem no rosto riscos de sua Nação, e uma cicatriz no tornozelo de um dos pés, procedida de uma ferida recente, este escravo é cozinheiro a muitos anos, e bem conhecido nas vendas e armazéns por ser comprador e também pode ser que se tenha alugado como forro”.
Visões moralistas
Veja alguns trechos de documentos que faziam menção estigmatizada das tavernas:
“São tantos os males, prejuízos e perturbações que esses pequenos estabelecimentos de comércio ilícito trazem aos lavradores, que com razão podem ser considerados o maior flagelo da lavoura.”(Ideia difundida em material de um Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, em 1878)
“As tavernas abrigavam contraventores, era alívio da corja, desafogo, pouso, diversão e vício do ébrio, do bandalho e do vadio. O espaço era improvisado, degradado e escondia o ‘negro malandro, a escrava revel.’(Crítica à taverna feita pelo cronista e jornalista Luis Edmundo, no início dos anos 1900)
Tentativa de controle e regulação das tavernas
No século 19, a Igreja, a Coroa portuguesa e os fazendeiros, ao verificar a expansão das tavernas e a importância que elas começavam a ter na vida social nas comunidades, tentaram controlá-las. Utilizaram discursos religiosos (prédicas), leis impondo horários de funcionamento, preços e perfil de frequentadores dos estabelecimentos, e empregaram a violência tanto contra os que abusavam do uso do álcool e se envolviam em brigas, como para recapturar escravizados que se refugiavam nas tavernas e para coibir os que iam lá para troca de mercadorias produzidas ou furtadas nas fazendas.
A Igreja, por exemplo, usava um discurso moralista e impunha regras rígidas aos clérigos para evitar a “degeneração dos costumes” e impedir que eles frequentassem as tavernas. A instituição via estes estabelecimentos como lugar dos excessos, da gula à embriaguez, e do contato com mulheres. Documentos eclesiais analisados mostram que a Igreja estabelecia normas em que definiam que os clérigos só poderiam frequentar as tavernas quando em missão e não encontrassem outra casa que pudessem pousar ou fazer suas refeições, e com a condição de não comerem com mulheres à mesa nem com outras pessoas que pudessem oferecer algum tipo de “escândalo.” A pena era o pagamento de quinhentos réis de multa, na primeira vez que as normas fossem infligidas; se houvesse reincidência, haveria castigo maior definido pelo vigário geral.
A pesquisa ainda relata que, apesar de desejarem manter a “ordem social”, os detentores do poder não puderam ir muito longe na regulação desses estabelecimentos por entenderem a importância deles no contexto social e também por interesse econômico – o governo dependia cada vez mais das taxas que incidiam sobre a cachaça, a bebida alcoólica campeã de vendas nas tavernas.
“Branqueamento” do consumo de bebidas: sai a cachaça e entra a cerveja
O professor Henrique Carneiro, orientador da trabalho, explica que a pesquisa “está no campo da história das bebidas alcoólicas na época moderna”, e cita o historiador francês Fernand Braudel, que dizia que o século 17 foi o século da revolução do álcool destilado. Lucas Avelar estudou o espaço de circulação e consumo dessas bebidas ao longo dos períodos colonial e imperial do Brasil, mostrando sua vinculação com o espaço das tavernas, que criavam uma esfera pública singular no sistema escravista.
Sobre as transformações pelas quais as tavernas passaram, Avelar conta que, no começo do século 20, houve um movimento da indústria cervejeira no sentido de “branqueamento” do consumo da bebida alcoólica. A aguardente, servida à larga nas tavernas, começava a perder espaço para as cervejas. Nas propagandas, a cachaça foi rebaixada a bebida barata e consumida apenas por pobres.
Uma das primeiras ações de marketing foi em 1902, quando a Brahma inaugurou no Rio de Janeiro um parque temático para enaltecer o consumo da cerveja. A pesquisa relata que, nas dependências do parque fluminense, havia um jardim e um teatro onde as orquestras tocavam, além de outras atrações musicais, bem como projeções de filmes e iluminação elétrica. A propaganda massiva e o parque foram as apostas da Brahma para estabelecer seu nome no mercado de bebidas e consolidar a cerveja como bebida preferida do brasileiro, diz o estudo. A abolição da escravidão, o surgimento das ferrovias e a migração europeia foram outros dentre os fatores que transformaram a cultura das tavernas no Brasil.
Tavernas contemporâneas
Avelar explica que as tavernas foram sofrendo transformações, mas sobreviveram até hoje por sua versatilidade e por se adaptarem ao tempo, às pessoas e ao lugar em que elas se inserem. Apesar destas mudanças, as vendas e tavernas do sertão, dos caminhos e das periferias urbanas sobrevivem na atualidade fornecendo amparo às classes populares que nelas encontram um trago, um trato, um prato, um papo. Em meio a bares descolados e restaurantes gourmetizados, o “hospital das almas”, salvaguarda do tempo de não trabalho e espaço público popular, também é um dos berços da cultura popular brasileira, conclui.
Mais informações: e-mail lucas.avelar@usp.br, com Lucas Brunozi Avelar (autor da pesquisa), e henriquecarneiro@usp.br, com Henrique Soares Carneiro (orientador). [1], [2]
[1] Texto de Ivanir Ferreira.
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/versateis-e-disruptivas-tavernas-brasileiras-ja-foram-alvo-de-estigma-e-tambem-de-celebracao/.
Como citar este texto: Jornal da USP. “Versáteis e disruptivas”, tavernas brasileiras já foram alvo de estigma e também de celebração. Texto de Ivanir Ferreira. Saense. Ivanir Ferreira, Tavernas, . Publicado em 04 de abril (2023).