Jornal da USP
19/05/2023
Por Luciana Ziglio, Jéssica Weiler e Carolina Fernandes, pós-doutorandas do programa USPSusten da Superintendência de Gestão Ambiental da USP, e outros autores*
Mal finalizamos o primeiro trimestre de 2023, e as tragédias climáticas já confirmam o que o relatório-síntese do Sexto Ciclo de Avaliação (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), anunciado no final de março deste ano, declarou: as mudanças climáticas já estão postas e vêm acontecendo no planeta. A frequência e a intensidade em que esses eventos estão ocorrendo – as chuvas, as secas, o calor e frio extremos e os incêndios – geram incerteza até mesmo nos mais céticos em relação ao aquecimento global, afinal vivemos um momento atípico, com constantes catástrofes climáticas.
Não há como contestar, a humanidade está em perigo; cada qual com maior ou menor grau de vulnerabilidade, mas todos seremos afetados. Dean Curran contesta o sociólogo alemão Ulrich Beck, que, em 1986, declarou em seu livro Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade que o conceito de classe não será mais adequado para entender a nova realidade social. Para Curran, as classes continuarão a ser relevantes para a vida individual e a emergência da sociedade de risco. A consequente “distribuição de perdas” associa renda e riqueza com a relação de classes, o que vai se tornar um fator essencial para a vida dos indivíduos; dois exemplos para isso são a questão da moradia e a insegurança alimentar.
As consequências de tragédias, como a que ocorreu no mês de fevereiro de 2023 no Litoral Norte de São Paulo, são vivenciadas por todos, mas os que sofrem os maiores impactos são os menos providos de riquezas, sustentando a crítica de Curran. Os desmoronamentos decorrentes das fortes chuvas deixaram desabrigados e mais de 60 mortos; e, se mensurarmos, os maiores impactos ocorreram em áreas classificadas como de risco. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou que o governo debate internamente a edição de um decreto para reconhecer estado de emergência climática em 1.038 municípios mapeados como mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, para assim agir de maneira contínua minimizando os desastres.
O World Resources Institute (WRI), em seu apanhado do relatório-síntese do AR6 do IPCC, declarou que entre 2010 e 2020, por exemplo, a taxa de mortalidade de tempestades, inundações e secas foi 15 vezes mais alta nos países mais suscetíveis às mudanças climáticas. Além disso, as populações mais vulneráveis são as que historicamente menos contribuíram para o aquecimento global.
Nesse sentido, a definição de justiça climática vem da apreensão que os impactos desse aquecimento atinjam de maneira desigual os diferentes grupos sociais. Para o IPCC (2023) a justiça climática pode permitir a adaptação e ações de mitigação ambiciosas e desenvolvimento resiliente ao clima, com resultados de adaptação fundamentados nas áreas e pessoas com maior vulnerabilidade aos riscos climáticos. Apesar do crescimento dos níveis de emissão per capita de países do Sul global, ainda há grandes disparidades econômicas, históricas e sociais que distinguem tanto a contribuição quanto as estratégias de mitigação e adaptação adotadas.
A implantação dessas estratégias leva a práticas de prevenção e mitigação que vêm sendo conduzidas local e globalmente visando a reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE) e consequentes alterações do clima. Em relação à prevenção temos, por exemplo, o aumento da eficiência energética, uso de combustíveis de baixo carbono, implantação de energia renovável; já as práticas de mitigação podem ser soluções baseadas na natureza (Nature Based Solutions – NBS), captura e armazenamento de CO2 (Carbon Capture and Storage – CCS), captura e utilização do CO2 (Carbon Capture and Utilization – CCU) e carbonatação mineral.
Destaca-se que as técnicas para captura de carbono são especialmente importantes para fontes estacionárias de emissão de GEE, tal como uma indústria com queima de combustíveis fósseis. Isso porque, se limitarmos a emissão pontualmente, impedimos que os gases sejam disseminados na atmosfera. Pensando em termos de justiça climática, isso pode ser ainda mais relevante: se os empreendimentos possuem responsabilidades, recursos financeiros e técnicas disponíveis para gerenciamento dos seus resíduos (nesse caso, o resíduo gasoso), a sociedade em geral não deveria ser corresponsável pela mitigação de tal impacto.
Além de medidas técnicas, instrumentos econômicos se tornaram comum globalmente, como a precificação de carbono, que permite que os custos que atividades econômicas geram na sociedade sejam propriamente contabilizados. Por outro lado, esse custo tende a elevar a carga tributária e recai sobre grupos de faixas menores de renda, em geral, a população mais exposta às mudanças climáticas. Significa, portanto, que qualquer que seja a escolha política, esta deve considerar a justiça climática na formulação de ações de mitigação e igualmente de adaptação, de modo a evitar ou limitar a exposição da população às condições de risco e vulnerabilidade.
Vale destacar que as ações praticadas em prol da gestão dos resíduos sólidos urbanos e redução de GEE expressam arranjos dos atores envolvidos. Deste modo, há uma complexidade de técnicas, saberes sociais e científicos para os temas de geração, redução, tratamento (por exemplo, reciclagem) existentes em escalas locais e globais.
Neste sentido, compreender a química envolvida nos processos que resultam a composição atmosférica, desde a contribuição por fontes até as diferentes formas de interações na atmosfera, constitui um processo extremamente complexo, mas de suma importância para controlar e reduzir o impacto na saúde das pessoas, nos ecossistemas naturais e nas mudanças climáticas. Estudos voltados ao entendimento e diagnóstico da composição atmosférica envolvem englobar estes diferentes processos, fontes, mecanismos, interações e reações.
Sendo assim, a universidade tem papel fundamental nos estudos para o enfrentamento das questões climáticas de diversas formas. A primeira, e talvez mais fácil de identificar, é a produção de conhecimento a respeito dos fenômenos físico-químico-meteorológicos envolvidos. Entender, por exemplo, quais são as necessidades humanas e atividades econômicas que mais contribuem com emissões de GEE. Quais as perspectivas para os eventos extremos, distribuição de chuvas, umidade do solo, aumento do nível do mar, bem como suas potenciais consequências sociais e econômicas, nos vários cenários, na perspectiva do local ou região em que a universidade é atuante? Como isso pode afetar a agricultura, a indústria, o transporte, a habitação, a estrutura da defesa civil, apenas para citar alguns assuntos? Identificar soluções existentes e desenvolver novas soluções para mitigação e adaptação climática: qual o potencial para energia solar, eólica e biocombustíveis? Quais os processos para produção e transporte de hidrogênio verde? Quais as vantagens e desvantagens dos métodos de recuperação de vegetação nos nossos vários biomas? Como usar a tecnologia para agilizar os sistemas de defesa civil?
O preenchimento dessas e outras lacunas propicia um melhor embasamento para formulação de estratégias de mitigação e adaptação, assim como, também, para tomadas de decisões e direcionamento de regulamentações para reduzir os impactos locais e globais dentro do cenário de mudanças climáticas.
Paulo Artaxo afirma que não faltam ferramentas, mas sim um governo que se preocupe realmente com a emergência climática e a população mais carente. Assim, identificar as demandas da sociedade, produzir conhecimento e difundi-lo é papel central das universidades. Fonte da produção de novos conhecimentos, advindos das pesquisas básicas, a partir da produção acadêmica das diversas áreas do conhecimento, espera-se a concepção e implementação de políticas públicas que contribuam para a efetiva justiça climática.
De fato, as políticas públicas assumem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais sustentável e de baixo carbono. Mas adotar iniciativas de mitigação e adaptação requer um entendimento sobre os possíveis impactos e o desenho mais apropriado para minimizá-los, principalmente aqueles que oneram a população mais vulnerável, e aí está a centralidade das universidades.
Tais orientações colaboram para um aperfeiçoamento quanto às infraestruturas verdes, ao saneamento, à habitação e à educação em áreas urbanas e rurais. Identifica-se, conjuntamente, a existência de nexo entre justiça climática e cidadania para uma mudança da agenda global do clima. E para que isso aconteça, uma ferramenta que pode ser importante é liderar pelo exemplo. Agir dentro dos campi universitários para que sejam mais sustentáveis, incluindo operações de baixo carbono, e a consideração dos grupos vulneráveis na perspectiva da justiça climática. Mas não só agir, mas dar visibilidade a essas ações. Sem a visibilidade, o impacto da liderança pelo exemplo com certeza se perde.
Um exemplo dessa centralidade é o programa USPSusten, em que pesquisadores, junto à Superintendência de Gestão Ambiental (SGA), vêm produzindo, além da pesquisa básica, pesquisa aplicada em conjunto com instituições como a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), com a finalidade de geração de conhecimento; além do mapeamento e análises de iniciativas que buscam contribuir com ações viáveis que possam levar o País ao cumprimento de seus compromissos de redução de emissões de GEE.
* Alexandre Aguiar, Thais Diniz e Tailine Corrêa dos Santos, pós-doutorandos do programa USPSusten da Superintendência de Gestão Ambiental da USP [1], [2]
[1] Texto de Luciana Ziglio e outros autores.
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/artigos/justica-climatica-e-o-papel-da-universidade/.
Como citar este texto: Jornal da USP. Justiça climática e o papel da universidade. Texto de Luciana Ziglio e outros autores. Saense. https://saense.com.br/2023/05/justica-climatica-e-o-papel-da-universidade/. Publicado em 19 de maio (2023).