UFF
14/07/2023
Em abril de 1941, durante o governo de Getúlio Vargas, houve a publicação do Decreto-Lei 3.199, onde foi criado o Conselho Nacional de Desportos (CND), que determinava a proibição da prática de determinados esportes por mulheres, entre eles, o futebol. O decreto proibitivo se estendeu até 1979, quando teve sua revogação, mas somente em 1983 o futebol feminino foi regulamentado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Em decorrência desses quase 40 anos de impedimento, nos dias de hoje, apesar das mulheres poderem praticar livremente tal esporte, ainda existe uma desigualdade muito grande entre o futebol de homens e o de mulheres. Por isso, buscando entender o fundamento e os motivos da existência desse banimento, a doutoranda da Universidade Federal Fluminense (UFF), Nathália Fernandes Pessanha, orientada pela professora Lívia Gonçalves Magalhães, desenvolveu a sua tese de doutorado sobre mulheres no futebol.
Considerada pioneira na pesquisa do tema no âmbito histórico, Nathália busca tratar de assuntos relacionados a futebol, política e o panorama atual da sociedade. E foi durante a sua pesquisa de mestrado, sobre a presença feminina nas torcidas organizadas do Rio de Janeiro, onde percebeu que a maior parte do preconceito sofrido pelas mulheres nas arquibancadas é em função do imaginário social de que “a mulher não sabe jogar futebol” ou “a mulher não entende de futebol”.
No ano de 2019, com a junção desse questionamento e a primeira edição televisionada da copa do mundo feminina, ela enxergou a necessidade de pesquisar sobre a proibição da prática do futebol para mulheres e como a sociedade aceitou esse banimento. Para isso, foi necessário fazer um mapeamento do futebol feminino ao redor do mundo desde o início da sua história. A coleta de informações para esse mapeamento foi feita basicamente através de ferramentas de busca digital. “Quando estive na Suíça, tive acesso ao acervo da FIFA. Também fui ao museu do futebol, no centro de referência do futebol brasileiro que tem dentro do Museu, para olhar revistas e matérias jornalísticas”, conta Nathália.
Em 1921, 20 anos antes do Decreto-Lei ser publicado pelo governo Vargas, a Federação Inglesa de Futebol (FA) publicou um documento alegando que o esporte não era para as mulheres, recomendando que os clubes não tivessem times de futebol femininos, o que impediu oficialmente as mulheres de jogarem futebol na Inglaterra. Enquanto isso, no Brasil, entre os anos 1920 e 1930, a modalidade estava em constante crescimento, chegando no início da década de 1940 ganhando cada vez mais relevância.
Entretanto, assim como na Inglaterra, o aumento da prática do futebol por mulheres no Brasil fomentou a intensificação dos discursos médicos, que consideravam o esporte danoso ao corpo feminino, propagando a ideia de que, ao jogar futebol, as mulheres iriam se distanciar da sua função social: a maternidade. “A sociedade endossou e pediu pela proibição. Além do discurso de que o corpo feminino não era para aquilo e que a função da mulher era ser mãe, existia o medo de que a prática de esportes como o futebol, acabasse modificando o corpo feminino, tornando-o mais musculoso e masculino. Isso tornaria menos demarcadas as barreiras de gênero, assentadas em estereótipos associados ao homem e à mulher”, afirma Nathália.
Mesmo em meio as proibições, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, o futebol feminino foi alcançando cada vez mais lugares pelo mundo, e, tanto as mulheres inglesas como as brasileiras, continuaram praticando o esporte, mas de forma escondida. No Brasil, por exemplo, essas partidas aconteciam como eventos beneficentes porque para o Conselho Nacional de Desportos (CND), esses eventos não se caracterizavam como prática esportiva. “Teve um time mineiro que ficou muito conhecido e chegou a ser convidado para jogar fora do Brasil. O que esses times não conseguiam era jogar em campos oficiais, nem serem associados a times oficiais” relata a pesquisadora.
Na década de 1960, a proibição foi suspensa na Inglaterra, e houve a criação de outras federações, como a italiana. A Federação Italiana de Futebol Feminino foi quem conseguiu apoio e patrocínio de empresários que pretendiam tornar o futebol para mulheres uma fonte de público e renda, assim como o de homens. A partir disso, a federações européias e norte-americanas se uniram para dar início ao projeto que criou os “Campeonatos Mundiais Femininos”, hoje conhecidos como “Copas Clandestinas”, porque não são reconhecidas pela Federação Internacional de Futebol (FIFA). Foram realizadas duas edições, a primeira em 1970, na Itália, e a segunda em 1971, no México, que havia sido sede da Copa do Mundo FIFA de Futebol Masculino no ano anterior. Por falta de cobertura da imprensa, a Copa de 1970 não chamou tanta atenção, diferentemente da sediada na Cidade do México, que teve uma grande presença da imprensa brasileira e mexicana, atraindo os olhares da FIFA.
Na imprensa brasileira, por meio do Jornal dos Sports, o campeonato recebeu elogios e reconhecimento pelo sucesso, contudo, as reportagens traziam um ar de desqualificação das mulheres enquanto atletas, onde o que mais importava era o estereótipo da feminilidade. Para o jornal, a presença de público estaria diretamente ligada aos aspectos do corpo feminino, e não às suas habilidades técnicas, se pondo em concordância com o pensamento da sociedade na época, de que o futebol deveria ser praticado somente pelos homens. Em contrapartida, a imprensa mexicana se preocupava mais em ressaltar a capacidade tática das mulheres e como a competição pelo terceiro lugar seria disputada.
Devido ao sucesso inegável do campeonato “clandestino”, no final dos anos 1980, a FIFA assumiu a organização do futebol de mulheres, e em 1991 aconteceu a primeira Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, sediada na China. A partir desse momento, os campeonatos realizados anteriormente foram desconsiderados.
Como destaca Nathália, a proibição da modalidade reflete na prática do esporte até os dias de hoje. “O futebol feminino hoje é comparado ao futebol masculino da década de 1940 e 1950. Muita gente fala que o futebol feminino é ruim, mal jogado e tem placares elásticos, e isso é porque ele ainda está percorrendo o caminho que os homens percorreram lá atrás. É só pensar na FIFA: a primeira copa masculina foi em 1930, e a feminina em 1991. Ainda existe uma disparidade muito grande entre o futebol de homens e o de mulheres, e isso certamente se deve ao fato de que, por 40 anos, as mulheres foram proibidas por lei de jogar bola”, afirma.
Até a copa de 2015, a seleção feminina brasileira não tinha uniforme próprio, por 24 anos – a contar do primeiro campeonato oficial realizado pela FIFA – as atletas jogaram com uniforme masculino. Foi só na última copa, em 2019, que as mulheres tiveram um uniforme exclusivo, pensado para o corpo feminino e com uma identidade própria. Foi também em 2019 que a Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, pela primeira vez na história, foi televisionada no Brasil pelo Grupo Globo. Após esse feito histórico, canais por assinatura que fazem parte da Globo passaram a transmitir jogos de campeonatos nacionais e estaduais.
Além disso, ainda no ano de 2019, entrou em vigor a regra estabelecida em 2016 pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), de que todos os clubes que quisessem participar da edição masculina da Copa Libertadores da América teriam que ter uma equipe de mulheres a partir da edição de 2019, com a exigência de que os times femininos deveriam participar das competições nacionais e regionais. O regulamento da Conmebol foi adequado ao Artigo 23 do estatuto da FIFA de março de 2016, que previa, dentre outras coisas, a igualdade de gênero.
A tese busca mostrar como a proibição da prática do futebol feminino vai além do esporte, sendo, na verdade, uma proibição ao corpo feminino e a ocupação de espaço pelas mulheres. “É importante mostrar como o corpo feminino é cerceado pelo Estado brasileiro, mas não só por ele. Os discursos que recaem sobre o corpo das mulheres e a prática do futebol acontecem também na Inglaterra, no México, na França, na Argentina e no Chile, e são discursos que visam proibir o corpo feminino de ter acesso aos mais diversos espaços. E com isso, também temos como objetivo trazer uma maior visibilidade ao futebol feminino e aumentar o número de pesquisas e trabalhos nessa temática, porque todos são muito recentes. Dentro da historiografia, mais recentes ainda”, explica.
Para realizar a pesquisa, Nathália foi contemplada com o edital de fomento ao estudo sobre futebol do Centro Internacional de Estudos do Esporte (CIES), associado à FIFA. Uma das fases de estudo incluía a visita à sede da FIFA, em Zurique, na Suíça, onde teria acesso aos arquivos da federação sobre o futebol feminino. Todavia, ao fazer a visita, encontrou pouca coisa referente ao tema, “no museu da FIFA você tem galerias dedicadas à cada copa de futebol masculino, enquanto as femininas tem uma parede cada e um pedaço de painel dividido em dois para falar de duas copas. No museu do futebol, em São Paulo, tem muito mais material sobre futebol feminino do que no da FIFA. Sempre falo que o silêncio é uma resposta, então a falta de documentação serve para indicar o quanto essa modalidade é desprezada até mesmo pela principal entidade do futebol mundial”, conclui. [1], [2]
[1] Texto de Thainá Feijó
[2] Publicação original: https://www.uff.br/?q=noticias/12-07-2023/mulheres-no-futebol-luta-para-ocupar-seu-espaco-no-esporte
Como citar esta notícia: UFF. Mulheres no futebol a luta para ocupar seu espaço no esporte. Texto de Thainá Feijó. Saense. https://saense.com.br/2023/07/mulheres-no-futebol-a-luta-para-ocupar-seu-espaco-no-esporte/. Publicado em 14 de julho (2023).