UFPR
31/10/2023

Locais de parque onde havia lixão ainda são evitados por pequenos mamíferos décadas depois
A cuíca (𝘔𝘢𝘳𝘮𝘰𝘴𝘢 𝘱𝘢𝘳𝘢𝘨𝘶𝘢𝘺𝘢𝘯𝘢), marsupial que chega a 17 centímetros quando adulto, está entre as oito espécies de pequenos mamíferos que foram capturados para o estudo. Fotos: Fernanda Gatto Almeida/Acervo/Lamma-UFPR

Ainda estão lá as marcas do depósito de lixo a céu aberto que ocupou parte da área onde hoje fica o Parque Estadual Rio da Onça, em Matinhos (PR). São clareiras que aparecem no meio da vegetação da Mata Atlântica, além de espaços onde se vê material de difícil decomposição, plástico e isopor, emergindo em meio ao substrato do solo, embolado com folhas e raízes. Além de visível aos visitantes, o impacto do lixão descontinuado nos anos 1990 também é percebido pelos pequenos mamíferos da região, que até hoje evitam as áreas mais degradadas.

Esse comportamento foi investigado por pesquisadoras do Laboratório de Análise e Monitoramento da Mata Atlântica (Lamma), da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ao longo de 2018, eles analisaram o conjunto de espécies de pequenos mamíferos não voadores encontradas em três áreas do parque — uma de floresta original, outra de mata regenerada e outra que ainda tem indícios de degradação, porque era uma das que abrigava o lixão.

Além de serem o grupo mais diversificado de mamíferos do planeta e do Brasil, os pequenos mamíferos não voadores são um indicador relevante da situação de um ecossistema, porque expõem a disponibilidade de alimentos e locais de abrigo. Também são importantes espalhadores de sementes e controladores de pragas.

Para resumir: onde há pequenos mamíferos, há muitas formas de vida diferentes, a biodiversidade.

A principal conclusão das cientistas é de que pequenos marsupiais e roedores silvestres — mamíferos que pesam até um quilo — são, em geral, encontrados em menor número nas áreas mais degradadas do Parque Estadual Rio da Onça, apesar de algumas espécies estarem mostrando certa resiliência enquanto o ecossistema tenta se recompor. A análise foi registrada em artigo científico publicado em setembro no periódico Ecología Austral e é pioneira na avaliação de pequenos mamíferos em localidade onde houve lixão por tempo prolongado.

“O que verificamos é que algumas espécies utilizam a área degradada com menor frequência quando comparamos com outras áreas. Além disso, observamos também um número menor de indivíduos utilizando a área do antigo lixão, o que pode indicar que ela possui menos recursos e não pode abrigar tantos indivíduos quanto uma área não afetada”, explica a pesquisadora Fernanda Gatto-Almeida, doutora em Genética pela UFPR e uma das autoras do artigo.

A pesquisadora ressalta que os pequenos mamíferos da Mata Atlântica fazem parte da fauna silvestre e não têm relação com espécies exóticas consideradas pragas, como algumas espécies de ratos (ratazanas e camundongos). Fernanda começou a pesquisar pequenos mamíferos da Mata Atlântica quando ainda era bolsista de iniciação científica e prosseguiu a pesquisa no mestrado em Zoologia na UFPR, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob orientação das professoras Liliani Marília Tiepolo e Juliana Quadros, que coordenam o Lamma.

“Os animais que avaliamos nos nossos estudos são nativos da Mata Atlântica e sensíveis a alterações ambientais. Não estão associados a ambientes urbanos. Eles desempenham papéis muito importantes na natureza. São componentes valiosos da biodiversidade e contribuem para a saúde e a estabilidade dos ecossistemas em que habitam”.

Mais do que animais nativos da Mata Atlântica, que são os que habitam essa floresta, o parque abriga também espécies que são endêmicas desse bioma, isto é, são encontrados apenas nele.

Assembleia de pequenos mamíferos sinalizou comportamento dessa fauna em cada área do parque

No apanhado geral, a avaliação é de que a existência de um espaço para despejo de lixo, a céu aberto e sem qualquer cuidado ou tratamento, não é uma situação que o ambiente consiga reverter rapidamente, mesmo com as leis de proteção ambiental. Ou seja, nesse caso, a unidade de conservação estadual se beneficiaria com investimento em metodologias menos passivas, como remoção do lixo, replantio de árvores nativas e monitoramento das condições e da sucessão da fauna e da flora.

A constatação tem impacto para o estudo da Mata Atlântica, um bioma do qual só restam cerca de 12% de cobertura original e que ainda registra percentual de devastação considerável em anos recentes, inclusive no Paraná, um dos Estados que historicamente mais suprimiu essa vegetação.

O próprio Parque Estadual Rio da Onça é considerado, em seu plano de manejo, “em crescente isolamento”, com pressão no entorno que é altamente urbanizado, onde ainda se vê lixo irregular. Além do lixo, a área do parque já teve cultivo irregular de espécies exóticas como o eucalipto e o pinus, que o governo estadual afirma ter removido e ainda estar monitorando.

Na época da pesquisa, o parque contava com área inferior a dois quilômetros quadrados. Em 2022, houve um aumento do parque por meio do decreto estadual 11.489/22, que autorizou a anexação de áreas de floresta dos arredores, o que fez a unidade passar a contar com uma área de 16,6 quilômetros quadrados no total.

Como a maioria das espécies de marsupiais e roedores silvestres observados no estudo segue evitando os locais onde a mata virou clareira e o lixo ainda faz parte da paisagem, é possível perceber que o espaço para elas é, na verdade, menor do que o da área do parque.

“No contexto em que avaliamos a ‘não adaptação’, ela se reflete no uso menos frequente do espaço. As espécies que ‘não se adaptam’ não exploram aquele espaço, portanto têm perda de habitat em microescala. O antigo lixão que avaliamos está inserido em meio a uma área de vegetação nativa, então os animais têm refúgio e comida nas imediações da área afetada. Mas é fato que na área da clareira onde o lixo era descartado os recursos ambientais não foram regenerados por completo”, diz Fernanda.

Para compreender a forma como os pequenos mamíferos percebem os diferentes ambientes da reserva, os pesquisadores partiram do conceito de “assembleia”, que permite registrar as interações de diversas espécies ao mesmo tempo. Assembleias são agrupamentos de indivíduos de diferentes espécies de um mesmo grupo (por exemplo pequenos mamíferos, que são roedores ou marsupiais) em um determinado ambiente.

O estudo de assembleias possibilita obter um panorama mais diverso sobre como aquela fauna usa e percebe o ambiente em questão. Isso é revelador porque algumas espécies podem ser mais resilientes do que outras ou até mesmo se beneficiar de certas mudanças, portanto investigar apenas uma delas pode trazer distorções para a pesquisa.

Também é significativo perceber se animais são recapturados, uma vez que esse é um indício de que residem ali. O baixo número de recapturas no estudo, por exemplo, pode indicar que os pequenos mamíferos estão em trânsito na maioria das áreas.

Algumas espécies preocupam e outras surpreendem pesquisadoras

Por meio das armadilhas posicionadas nas três áreas distintas do parque, as cientistas fizeram 109 capturas de pequenos mamíferos. Foram usadas cerca de cem armadilhas em nove campanhas de seis dias e noites cada. As armadilhas continham iscas com uma mistura de banana, amendoim, sardinha e farinha de milho. A preferência das pesquisadoras foi por fixar as armadilhas também em galhos de árvores, mas isso não foi possível na área de clareira, uma das que recebeu o lixão. Portanto, houve também armadilhas em arbustos e no chão.

Das capturas, quase metade (51) ocorreu na mata fechada mais conservada e, 29% (32), na mata em regeneração. Na clareira, a área degradada, houve 24% (26). O número de capturas não equivale ao número de animais capturados, visto que foram registradas algumas recapturas. Descontando-se os reencontros, as cientistas registraram 82 animais diferentes (as fotos de vários deles estão na galeria acima).

A espécie mais encontrada foi a Akodon montensis, o rato-do-mato, um roedor de menos de 60 gramas que come insetos, pequenos invertebrados, frutas e sementes. Apesar de estarem em número considerável — 45 capturas —, o estado de saúde desses animais preocupou as cientistas.

“Verificamos que indivíduos apresentavam uma descamação na base da cauda, por vezes bastante severa. Essa descamação não é comum de se encontrar em áreas fora do Parque Estadual Rio da Onça e pode ser indicativo de que a saúde dos animais está comprometida de alguma forma”, lembra Fernanda.

Uma limitação da pesquisa é a análise sobre o grau de adaptação desses pequenos animais, o que exigiria compreender suas condições fisiológicas e comportamentais, entre eles a reprodução. Ou seja, o fato de um animal estar residindo no parque não necessariamente significa que não está tendo dificuldades para sobreviver.

Ainda assim, as cientistas avaliam, à primeira vista, que é uma boa notícia a presença da espécie Euryoryzomys russatus, um pequeno roedor muito ágil que se alimenta de frutos e grãos e pesa até 100 gramas.

“É um roedor que geralmente se mostra sensível a distúrbios ambientais e foi a segunda espécie mais registrada na área do lixão. A presença dessas espécies é de certa forma encorajadora, pois demonstra que apesar da área do lixão a área do entorno deve estar provendo qualidade ambiental suficiente para que a espécie permaneça ali”, conta Fernanda. [1], [2]

[1] Texto de Camille Bropp.

[2] Publicação original: https://ciencia.ufpr.br/portal/locais-de-parque-onde-havia-lixao-ainda-sao-evitados-por-pequenos-mamiferos-decadas-depois/.

Como citar este texto: UFPR. Locais de parque onde havia lixão ainda são evitados por pequenos mamíferos décadas depois. Texto de Camille Bropp. Saense. https://saense.com.br/2023/10/locais-de-parque-onde-havia-lixao-ainda-sao-evitados-por-pequenos-mamiferos-decadas-depois/. Publicado em 31 de outubro (2023).

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