UFRGS
22/11/2023

Literatura negra quilombola aplicada no ensino infantil estimula construções identitárias e exercício de alteridade
Foto: Pikisuperstar/Freepik

Diante da ampla associação do povo negro à escravidão dentro das escolas brasileiras, em 2003 foi decretada a Lei n.° 10.639, que determina a obrigatoriedade do ensino da cultura e da história afro-brasileiras nas salas de aula. O objetivo é ressaltar a importância da presença africana no desenvolvimento da sociedade, além de a instituição de ensino atuar como instrumento contra o preconceito racial e a discriminação. Passados 20 anos desde a instituição da lei, o cenário que persiste nas escolas ainda não é o intuído com a legislação, principalmente quando se trata do ensino infantil.

Nesse contexto, em sua dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS (PPGEdu), a pedagoga Luana de Oliveira Lehmkuhl explora a produção de narrativas e experiências do quilombo dentro da literatura infantil negra. Partindo de produções de autores negros publicadas em editoras de quilombo (iniciativas independentes que possuem o compromisso de publicar livros de autores negros), a pesquisadora explora aspectos referentes à infância no contexto do quilombo, dentro dos valores civilizatórios afro-brasileiros: territorialidade, ancestralidade, oralidade, memória, religiosidade, corporeidade e musicalidade.

Ao todo, foram analisadas sete obras de três editoras distintas: “Pedras, pedrinhas e pedregulhos” e “Kabu e Ketula”, escritos por Pituka Nirobe, ilustrados por Levi Cintra e publicados em 2017 pela editora Nandyala; “Bucala – a pequena princesa do Quilombo Cabula”, escrito por Davi Nunes, ilustrado por Daniel Santana e publicado em 2019 pela editora Malê Mirim; e a coleção “Griôs de Tapera”, composta pelos livros “Dona Sebastiana e como tudo começou”, “Tapera encantada”, “As pedras da tapera” e “Como proteger as crianças e fazê-las crescerem fortes”, escritos por Sinara Rúbia, ilustrados por Ricardo Cafuzo e publicados em 2019 pela Aziza editora.

Da raiz quilombola aos quilombos editoriais

“O mundo editorial tem uma questão mercadológica, mas os quilombos editoriais tentam quebrar isso”, afirma Luana. Quilombola integrante de uma comunidade situada em Santa Catarina, ela foi motivada pela sua própria trajetória desde a graduação. O plano inicial da pedagoga era trabalhar a sua dissertação de mestrado a partir do cinema, por conta de seu aspecto mais dinâmico. Mas, como na indústria cinematográfica a produção cultural voltada para a infância quilombola é escassa, foi na literatura que Luana encontrou o objeto da sua pesquisa.

Sob orientação da professora do PPGEdu Fabiana Marcello, as narrativas trabalhadas na pesquisa foram escolhidas com base em três critérios que determinassem que os livros fossem: (a) publicados por quilombos editoriais (tido como fator singular na dissertação); (b) versassem sobre a literatura infantil; e (c) fossem ambientados em quilombos. A partir da seleção das narrativas, a autora conseguiu identificar a aplicação dos valores civilizatórios afro-brasileiros. “Eu consigo visualizar eles [os valores] o tempo inteiro na escrita e nas ilustrações”, explica Luana, ressaltando a importância da presença da literatura dentro dos quilombos.

Quando a pesquisadora diz que os quilombos editoriais tentam romper com a questão mercadológica do ramo, ela se refere ao compromisso por parte dessas editoras de veicularem narrativas produzidas por sujeitos negros independentemente de retorno financeiro. Ela explica que, quando um livro de literatura infantil é publicado por um sujeito negro que tenta resgatar em suas narrativas a sua realidade, o autor acaba por difundi-la e possibilitar o entendimento por parte de pessoas que vivenciam as mesmas situações. “Isso é importante para pessoas brancas também, mas especialmente para gerar identificação entre os sujeitos negros, porque a literatura é um espaço de disputa, assim como vários outros dentro da cultura”, diz Luana.

“Quando a gente tem um sujeito negro nessa posição de prestígio, podendo ter sua obra publicada, a gente tem também uma quebra desse lugar onde o branco é dominador dentro da literatura, especialmente dentro dos livros de literatura infantil, porque as crianças também se reconhecem nos autores”Luana de Oliveira Lehmkuhl

Na sala de aula com os pequenos

Professora do ensino infantil, a faixa etária dos alunos de Luana é de 4 e 5 anos. Agora, os livros analisados em sua dissertação a acompanham na didática da sala de aula. Ela comenta que, quando apresenta aos alunos esse acervo que traz outros contextos, a reação inicial é o estranhamento. Mas a habituação vem em seguida: o território das narrativas quilombolas passa a ser de conhecimento dos pequenos, uma vez que a professora os ajuda a identificar aspectos similares e diferentes daqueles cujas narrativas já são conhecidas.

Como muitos pais não possuem acesso a esse material, o único lugar em que a criança tem acesso às narrativas infantis de quilombo é na escola – isso quando a instituição trabalha com obras que trazem esse contexto, algo ainda raro no ensino infantil. “Quando a gente traz esses livros, eles começam a pensar outras formas de ser criança, e a gente começa a trabalhar com a questão da alteridade.”

“Eles [as crianças] começam a pensar sobre o outro, então a gente passa a ter um distanciamento dessa figura do eu, numa relação de respeito com outras formas de ser criança e que às vezes se aproxima daquilo que eles vivem também”Luana de Oliveira Lehmkuhl

A bagagem do pesquisador

Para se chegar a um destino desejado, um voo direto nem sempre é viável, tornando necessária uma — ou mais de uma — conexão. Além da felicidade pela conclusão e pela aquisição do título de mestrado, esse período também rendeu para Luana um momento de sobrecarga física e mental. A pesquisa, como ela diz, não é fácil e muito menos um trabalho mecânico; não acontece simplesmente. É algo que vai sendo tecido nos encontros com outros autores e materiais, com colegas e orientadores. Leva tempo e dedicação. “Dentro da vida do pesquisador, a gente sempre carrega uma mala quando escrevemos uma dissertação. Mesmo nas férias, essa mala acompanha a gente. É cansativo”, relata.

Agora de fôlego retomado e saúde restaurada, Luana se prepara para embarcar no voo do doutorado. O objeto de pesquisa ainda se mantém no campo das ideias, mas a autora tem certeza que pretende continuar trabalhando com a literatura infantil negra de contexto quilombola. [1], [2]

[1] Texto de Alexandre Briozo Gomes Filho.

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/ciencia/literatura-negra-quilombola-aplicada-no-ensino-infantil-estimula-construcoes-identitarias-e-exercicio-de-alteridade/.

Como citar esta notícia: UFRGS. Literatura negra quilombola aplicada no ensino infantil estimula construções identitárias e exercício de alteridade. Texto de Alexandre Briozo Gomes Filho. Saense. https://saense.com.br/2023/11/literatura-negra-quilombola-aplicada-no-ensino-infantil-estimula-construcoes-identitarias-e-exercicio-de-alteridade/. Publicado em 22 de novembro (2023).

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