Jornal da USP
08/02/2024

Embora geralmente relacionado ao ato de submergir na água, o verbo “mergulhar” também pode significar explorar profundamente o desconhecido, possivelmente trazendo algo novo à tona. Em uma colaboração entre diversos institutos científicos de diferentes Estados brasileiros, o artigo Scientific diving in Brazil: history, present and perspectives, recém-publicado no periódico Ocean and Coastal Research, reúne décadas de estudos sobre o mergulho como uma prática científica essencial.
Divulgado em dezembro de 2023, o texto traz uma série de reflexões sobre a atividade e descreve o primeiro relato de estudo científico subaquático no Brasil, que data do século 19 nos recifes de Abrolhos. Atualmente, o mergulho científico é realizado em diversas áreas, desde regiões costeiras rasas até locais remotos e de difícil acesso, como ilhas oceânicas, cavernas inundadas e áreas geladas como a Antártida.
“O mergulho científico (MC) é qualquer atividade que realizamos necessitando da submersão com a finalidade de obtenção de dados ou material científico”, explica o professor Tito Monteiro da Cruz Lotufo, do Departamento de Oceanografia Biológica do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, um dos autores do artigo, parte de um grupo de trabalho sobre o assunto. Segundo ele, essa prática é crucial em várias áreas, incluindo oceanografia, biologia marinha e arqueologia.
No entanto, conforme os autores, a regulamentação da modalidade no Brasil ainda carece de ações mais concretas para uma autorregulação eficaz e eficiente, que ofereça segurança física aos praticantes e salvaguardas institucionais para as organizações que o utilizam em seus projetos de pesquisa.
Quem são os mergulhadores?
“O mergulho é uma atividade muito antiga, desde a captura de organismos no fundo do mar até a busca por tesouros. Ao longo da história, [a atividade] teve vários pontos de desenvolvimento, muitas vezes envolvendo a ciência, mesmo que não fosse exatamente voltado para responder perguntas científicas”, esclarece Lotufo ao enfatizar a invenção do SCUBA – sigla em inglês para Self-Contained Underwater Breathing Apparatus –, por Jacques Cousteau e Philippe Tailliez, como um marco no desenvolvimento do mergulho científico, expandindo significativamente o alcance das pesquisas subaquáticas desde meados do século 20.
“A partir [da invenção do SCUBA] as coisas se aceleraram, com a criação de associações e o desenvolvimento de protocolos e normas”, reflete o especialista.
No Brasil, uma revisão bibliográfica em bases de dados mostrou um aumento significativo na produção científica relacionada ao mergulho científico desde os anos 2000. A maioria dos documentos analisados pertence à biologia marinha, seguida por geologia, estruturas artificiais e etnociência. As áreas mais comuns de estudo foram aspectos ecológicos, comportamento animal, taxonomia, registros de espécies invasivas e mapeamento de habitats. Este aumento na produção científica está diretamente relacionado ao crescimento de recursos humanos no campo desde os anos 2000.
Para mapear esse processo, o estudo buscou entender o perfil dos mergulhadores científicos no Brasil. A maioria dos participantes tinha formação em Ciências Biológicas, seguida por Oceanografia, Arqueologia, Engenharia de Pesca e Ecologia. Os resultados mostram que a maioria dos mergulhadores científicos no Brasil são homens jovens, geralmente com doutorado, que conduzem pesquisas relacionadas às ciências biológicas em águas costeiras até 30 metros de profundidade.
Neste contexto, o professor destaca a importância do grupo de trabalho dentro do Comitê Executivo para a Formação de Recursos Humanos em Ciências do Mar (PPG-Mar), vinculado ao Ministério da Educação. O grupo, criado em meados de 2004, busca desenvolver cursos de formação na área marinha e estabelecer normas para o mergulho científico. “Esse grupo de trabalho foi criado dentro do PPG-Mar, vinculado ao MEC, com a função principal de desenvolver cursos de formação na área marinha. Surgiu da necessidade de algum tipo de respaldo governamental para tentar regulamentar a atividade do mergulho científico”, conta.
“Uma grande limitação que temos hoje é a formação do mergulhador científico. Não temos uma norma ou protocolo padronizado no Brasil”, revela o professor. De acordo com ele, a formação do cientista mergulhador é um desafio, pois depende de uma formação em mergulho e também uma formação científica acadêmica formal. “O treinamento de mergulho é caro, e os equipamentos são meio caros, algo inacessível para a maioria da população brasileira”, enumera.
Sobre o papel das universidades no avanço da prática, o professor demonstra preocupação com a infraestrutura e recursos para o mergulho científico no Brasil. Nos últimos anos, Lotufo reforça a importância da manutenção dos navios do IO, por exemplo, que recentemente enfrentou dificuldades burocráticas como falta de pessoal para manutenção e operação. “Sabemos que a estrutura para a manutenção dos navios é onerosa e pesa no orçamento da Universidade, mas eles são essenciais no estudo da Oceanografia”, pontua.
Preservação de ecossistemas
Além disso, Lotufo destaca o papel dos mergulhadores científicos no monitoramento de ecossistemas marinhos, particularmente diante dos desafios impostos pelas mudanças climáticas.
“Temos esse enorme desafio que é a exploração da Amazônia Azul, uma área gigantesca sob responsabilidade do Brasil. Como isso pode ser feito de forma sustentável e racional sem conhecer?”, questiona o especialista, ao lembrar que, em pleno século 21, “ainda há muito a ser descoberto e isso demanda recursos”. Para ele, é necessária uma abordagem mais estruturada e institucionalizada para o mergulho científico no Brasil, citando exemplos de programas bem estabelecidos em outros países, como nos Estados Unidos.
“Esperamos que a ferramenta de mergulho seja cada vez mais disseminada, principalmente no processo de formação dos pesquisadores e profissionais. Isso vai permitir que utilizemos essa ferramenta de uma forma mais ampla e conheçamos de forma muito mais abrangente o que acontece debaixo d’água”, elucida.
Por fim, o artigo prega sobre a importância do investimento nas especificidades das unidades que lidam com o estudo do mar, abordando desafios logísticos e financeiros enfrentados especialmente em um país com uma vasta costa como o Brasil. Com isso em vista, em uma provocação final, o professor questiona: “Como avançar para um futuro sustentável sem um bom conhecimento desse sistema, que é o grande regulador climático do planeta?”.
Mais informações: e-mail mlotufo@usp.br, com Tito Lotufo, professor do Instituto Oceanográfico (IO) da USP [1], [2]
[1] Texto de Denis Pacheco
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/desbravando-aguas-profundas-pesquisa-discute-desafios-e-avancos-do-mergulho-cientifico-no-brasil/
Como citar este texto: Jornal da USP. Desbravando águas profundas: pesquisa discute desafios e avanços do mergulho científico no Brasil. Texto de Denis Pacheco. Saense. https://saense.com.br/2024/02/desbravando-aguas-profundas-pesquisa-discute-desafios-e-avancos-do-mergulho-cientifico-no-brasil/. Publicado em 08 de fevereiro (2024).