Jornal da USP
07/05/2024
Os sambaquis são montes construídos com conchas há milhares de anos. Escavando essas estruturas, é possível encontrar diversas evidências das atividades das pessoas que habitaram o território brasileiro no passado. Eles estão em quase todo o litoral do País, mas são encontrados em maior quantidade nas regiões Sul e Sudeste. Alguns desses monumentos marcam a paisagem plana com verdadeiras montanhas.
Natural de Tubarão (SC), Jéssica Mendes Cardoso cresceu conhecendo sambaquis do litoral catarinense sem saber do que se tratavam. Foi somente na faculdade de Ciências Biológicas que entendeu a dimensão desses sítios arqueológicos. Esse interesse a levou a trabalhar com educação patrimonial, ensinando a população sobre a importância da preservação dos sambaquis. Hoje ela é pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, da Universidade de Toulouse, na França e Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), instituição responsável pela guarda do material de Galheta IV.
O foco dos estudos de Jéssica tem sido o sítio arqueológico Galheta IV, no município de Laguna (SC). Esse sambaqui é especialmente rico para os arqueólogos porque nele foram encontradas evidências tanto da cultura sambaquieira, que dominou a costa por milhares de anos, quanto dos grupos proto-Jê, do interior. Alguns desses grupos proto-Jê ocupavam o planalto e a encosta catarinenses, onde hoje fica o município de Urubici (SC), muito próximo de onde fica Galheta IV.
A formação dos sambaquis teria começado há pelo menos 8 mil anos. Porém, misteriosamente, há cerca de mil anos eles pararam de ser construídos. Geralmente essas comunidades sobreviviam da pesca e da coleta de recursos marinhos. Embora tivessem hábitos muito parecidos em todo a costa, a população dos sambaquis também era muito diversa.
Uma primeira mudança ocorreu há 1.500 anos, quando os montes deixaram de ser construídos predominantemente com conchas. Em alguns locais, também começaram a aparecer cerâmicas, material que não era usado antes pela população costeira, mas sim pela população proto-Jê, do interior.
Quando os europeus chegaram à região de Laguna, encontraram sociedades Kaingang e Laklãnõ-Xokleng, descendentes das proto-Jê, e guaranis, que eram ainda mais recém-chegadas ao litoral.
Um artigo recente do qual Jéssica é a primeira autora destrinchou a mobilidade, a cultura material, a dieta e as evidências genéticas do sítio arqueológico, com a colaboração de pesquisadores do MAE e do Laboratório de Geociências Ambientais de Toulouse.
Essa migração dos povos Jê vindos do interior é investigada desde a década de 1960, pois teria afetado todas as sociedades que viviam no litoral da região Sul. No entanto, a ideia de que o contato dos sambaquis se deu diretamente com as populações do planalto começou a ser questionada nas últimas décadas.
“O sítio de Galheta IV é muito importante para a gente poder responder como se deu essa transformação nas evidências materiais na paisagem”, diz Jéssica. Segundo as pesquisadoras que conversaram com o Jornal da USP, o desaparecimento do modo de vida sambaquieiro às vésperas da colonização europeia é decorrente de uma crescente interação com outras populações, provavelmente da própria costa.
Em algumas áreas do litoral do Brasil, a expansão tupinambá pela costa empurrou a população que antes vivia ali para outros lugares. Em Santa Catarina, isso não ocorreu. “Nós não temos nenhuma evidência de uma troca de população”, pondera Verônica Wesolowski, arqueóloga e professora do MAE. A substituição seria o desaparecimento de uma unidade biológica das formas culturais associadas a ela.
A população de Galheta IV tem muito parentesco com os povos sambaqui antigos, porém a cultura material parece ter mais semelhanças com a população Jê. Uma das possíveis explicações é que houve um contato de algumas centenas de anos com outros povos do interior que passaram a viver na encosta e, em seguida, no litoral.
Os sambaquis encontrados em Laguna começaram um processo de transformação cultural há 2 mil anos. “É uma mudança lenta marcada pela mudança de material construtivo dos sítios”, detalha Fabiana Terhaag Merencio, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Entre as novas características, está a substituição de conchas por ossos de peixe na construção dos montes.
A partir do mesmo período, o nível do mar começou a diminuir muito, o que pode ter contribuído para o abandono das conchas e em rituais funerários. No entanto, a pesquisa apontou que não houve mudanças significativas na dieta dessa população e nas práticas funerárias. As análises dos dentes de oito sepultamentos mostraram que eles consumiam peixes e outros recursos marinhos, sem evidências de outros alimentos, e os restos mortais encontrados não têm sinais de cremação, como é costume na cultura Jê.
Além disso, a cerâmica encontrada no Galheta IV tem mais semelhanças com a produzida por populações proto-Jê litorâneas, cujos vestígios são encontrados na região Sul do Brasil, e não com os proto-Jê do planalto.
Os estudos de DNA antigo, uma novidade na arqueologia, também mostram que a população sambaqui não se desfez, como a mudança de costumes poderia indicar. “O DNA sugere que eles são muito mais parecidos com sambaquieiros do que com Jê”, reforça a professora do MAE. Ou seja, provavelmente houve uma convivência de longa duração com outros povos.
“Isso rompe a noção de que um grupo biológico é responsável por uma cultura específica e que, quando muda a cultura, o grupo tem que ter mudado. Não necessariamente. Você pode ter uma transformação de aspectos culturais, inclusive a conexão biológica entre dois grupos que originalmente eram diferentes. Parece que foi isso que aconteceu”, explica Verônica.
A professora, que está como pesquisadora visitante em Coimbra, tem divulgado esse e outros trabalhos mais recentes sobre sambaquis em aulas e conferências fora do Brasil. O que mais impressiona, segundo ela, é a resistência dessas populações durante os milhares de anos.
“Se pegarmos o material cultural da fundação de São Paulo olhando para a cultura material — para as cerâmicas, para as louças e tudo mais — e compararmos com a forma que vivemos hoje, poderíamos nos perguntar ‘para onde foi aquele pessoal que morava aqui?’. Não foi para lugar nenhum. Aquele lugar se transformou”, compara Verônica.
Estudos recentes também encontraram um descendente de sambaquieiros com proto-Jê, além de apontar que a população dos sambaquis de pelo menos 1.300 anos atrás, no litoral que hoje pertence a Santa Catarina, tinha uma pequena ancestralidade originária dos povos Jê.
Mais informações: e-mails jessicamcardoso@usp.br, com Jéssica Mendes Cardoso; f.terhaag@gmail.com, com Fabiana Terhaag Merencio, e wesowski@usp.br, com Veronica Wesolowski de Aguiar e Santos. [1], [2]
[1] Texto de Ivan Conterno (Estagiário sob orientação de Fabiana Mariz)
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/arqueologos-acham-novas-pistas-sobre-ancestralidade-no-litoral-brasileiro/
Como citar este texto: Jornal da USP. Arqueólogos descobrem novas pistas sobre ancestralidade no litoral brasileiro. Texto de Ivan Conterno. Saense. https://saense.com.br/2024/05/arqueologos-descobrem-novas-pistas-sobre-ancestralidade-no-litoral-brasileiro/. Publicado em 07 de maio (2024).