UFRGS
18/06/2024

Movimento de plataformização do trabalho docente
Ilustração: Fabio Viera/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

O trabalho de plataforma é um fenômeno contemporâneo que tem tido célere crescimento devido à expansão da internet e à instauração da Gig Economy (economia dos bicos), temática pesquisada pelo Professor Rafael Grohmann. Segundo dados do IPEA, em 2023, o Brasil já tinha em torno de 1,7 milhão de trabalhadores plataformizados. Os trabalhadores atuam em plataformas ou aplicativos – chamados, em inglês, de apps – que conectam os prestadores de serviço aos clientes em potencial.

No Brasil, esse formato de trabalho está em constante debate pela sociedade, e projetos de lei vêm sendo propostos e votados na Câmara e no Senado, pois os trabalhadores de plataforma não fazem gozo de nenhum direito trabalhista, o que gera um aprofundamento da precarização do trabalho, que já está em andamento no Brasil de longa data. Esse aprofundamento da precarização do trabalho, a partir do uso das plataformas digitais, tem sido denominado de uberização do trabalho pela professora Ludmila Costhek Abílio. 

Neste contexto, o trabalho docente também vem sendo capturado. Já existem plataformas robustas para contratação de professores, como a Superprof, uma plataforma global que indica ter mais de 27 milhões de profissionais cadastrados. A empresa brasileira GetNinjas, que se diz a maior plataforma de contratação do Brasil, também possui um espaço dedicado somente à contratação de aulas.

O uso de tais plataformas demonstra que existe um outro modo de atuar como docente no contemporâneo, acarretando em uma migração do espaço laboral para o ambiente digital. Os professores têm atuado em plataformas como Instagram, TikTok e YouTube, onde criam seus perfis e passam a ser chamados, por exemplo, no Instagram, de ProfGram, ou se tornam Infoprofessores (essas são terminologias que circulam nas redes sociais). 

Nessas plataformas, os Infoprofessores atuam como uma espécie de influencer, mesclando suas postagens entre vida pessoal e profissional, com a finalidade de criar vínculo com seus seguidores e atrair clientes em potencial para vender seus infoprodutos, como e-books, podcasts, cursos online, consultorias, mentorias, audiobooks, clubes de assinatura, vídeos tutoriais, webinars, entre outros.

A efetiva venda dos cursos se dá por outras plataformas como a Hotmart, empresa brasileira de venda e distribuição de produtos digitais. É possível notar que a maioria dos professores que estão atuando no digital não vendem cursos ou aulas na sua área de formação, nem mesmo conteúdos específicos; antes, vendem o que se pode denominar de “curso para vender curso”, ou seja, cursos que têm como objetivo formar outros professores para também atuarem no digital. 

Esse movimento de expansão do trabalho de plataforma, incluindo o trabalho docente, está imerso no neoliberalismo como racionalidade, e o professor cada vez mais se torna um empresário de si.

Para os autores Pierre Dardot e Christian Laval, na obra A Nova Razão do Mundo: um ensaio sobre a sociedade neoliberal, “o neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica de mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade”.

Essa lógica normativa, que opera nas relações econômicas, mas também políticas, sociais e culturais, produz e reproduz uma racionalidade neoliberal. Logo, os sujeitos que são forjados por essa racionalidade são entendidos pelos autores como neossujeitos, com características como busca por uma competição desenfreada, inclusive consigo mesmo, em busca da sua melhor versão, bem como atuando como empresário de si que, para o filósofo Michel Foucault, na obra O nascimento da biopolítica, é aquele que “é seu próprio capital, sendo por si mesmo seu produtor e sendo responsável e produtor da sua renda”.

Como efeito dessa racionalidade na atuação docente, foi possível localizar o Neoprofessor, um docente atuante nas plataformas digitais, mas não apenas nelas, que apresenta características marcantes desse sujeito neoliberal como olhar para a vida “lucrativa” e visualizá-la como a única possível. Esses professores se ofertam, colocam seu capital humano à venda e estão constantemente disponíveis, aguardando o contato dos clientes nas grandes vitrines digitais que são as plataformas. 

Esse movimento de plataformização do trabalho está inserido na cultura empreendedora, e essa íntima subjetivação convence, de modo muito sagaz, os trabalhadores, a ponto de deixarem de desejar ter direitos trabalhistas e abrir mão de lutas históricas, tão importantes para a consolidação de uma categoria docente. Em oposição aos direitos conquistados, quem defende o trabalho plataformizado diz que “o digital não é trabalho precário, precário é dar aulas 60h semanais para 30 alunos em sala de aula”. Mas, será mesmo que o trabalho docente nas plataformas não é precário?

Nossa intenção não é dar uma resposta fácil ou simples para um tema tão complexo. Nosso convite é para refletirmos sobre os novos atravessamentos que estão postos nas relações de trabalho contemporâneas. Franco Berardi, ao retratar a precarização do trabalho na contemporaneidade, sinaliza que “(…) não se trata só da perda do trabalho formal e dos salários, mas também o efeito de fragmentação e da pulverização das relações trabalhistas, o rompimento do vínculo entre trabalhador e território”.

Já Maurizio Lazzarato e Antonio Negri, na obra Trabalho Imaterial, argumentam que “(…) a jornada de trabalho fica porosa, não no sentido da sua diminuição quantitativa, mas no sentido de que os trabalhadores autônomos trabalham sempre”. Cabe salientar que os docentes que atuam nos espaços digitais estão cada vez mais utilizando a lógica de funcionamento 24/7, abordada por Jonathan Crary, trabalhando 24h por dia, sete dias por semana, pois estão sempre atuantes nas redes, sem a possibilidade de parar para não perder o engajamento, posto que estão sob o jugo da opacidade da gestão algorítmica das plataformas.

Nesse sentido, é possível indicar que a plataformização do trabalho docente, atualmente, apresenta novas formas e possíveis aprofundamentos da precarização do trabalho, onde o neoprofessor atua como empresário de si, imerso na racionalidade neoliberal. [1], [2]

[1] Texto de Maura Jeisper Fernandes Vieira e Cristianne Maria Famer Rocha

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/movimento-de-plataformizacao-do-trabalho-docente/

Como citar esta notícia: UFRGS. Movimento de plataformização do trabalho docente. Texto de Maura Jeisper Fernandes Vieira e Cristianne Maria Famer Rocha. Saense. https://saense.com.br/2024/06/movimento-de-plataformizacao-do-trabalho-docente/. Publicado em 18 de junho (2024).

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