Jornal da USP
02/07/2024
Mais da metade da população brasileira maior de 18 anos (56,4%) vive em situação conjugal, segundo dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Embora seja um número expressivo, ainda faltam pesquisas que se aprofundem sobre esse tipo de relação, haja vista que os estudos familiares, por si só, não adentram por completo a sua complexidade.
Foi diante dessa lacuna que o psicólogo Fabrício de Andrade Rocha desenvolveu sua tese de doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRGS. Sob orientação da professora Adriana Wagner, o projeto focou em propor um ciclo evolutivo vital de casais brasileiros, identificando seus conflitos, crises e estratégias de enfrentamento.
Fabrício conta que uma das maiores queixas ouvidas no consultório voltava-se ao impacto das relações conjugais – parceiros amorosos que dividem a vida, formalmente casados ou não – no emocional dos pacientes. “A ideia das pessoas é que o amor é suficiente para o bom funcionamento da relação, mas isso é uma ilusão: não depende só dele”, inicia o pesquisador.
Primeiros passos
A princípio, Fabrício mapeou as configurações familiares e os fatores que poderiam influenciar a estrutura de funcionamento desses casais. A partir disso, o pesquisador construiu um modelo de ciclo fundamentado em dados da população, que contemplava as diferentes configurações familiares e compreendia quatro etapas: I) Fase de formação (0-3 anos); II) Fase de expansão (4-15 anos); III) Fase de manutenção (16-25 anos); IV) Anos tardios (+26 anos).
“Um dos grandes achados que a gente tem nessa tese é de que a fase de formação – isto é, o tempo que o casal tem no início dessa relação – é essencial pro resto da vida conjugal”, pontua Fabrício. Segundo ele, a qualidade conjugal estabelecida no início da relação é a que vai perdurar para os anos seguintes. “O amor é importante, porque é o que une essas duas pessoas. [A manutenção] Depende de como elas vão resolver os seus conflitos: toda relação tem conflitos”.
O casal brasileiro
Para o autor, uma das primeiras dificuldades na construção do trabalho foi a escassez de estudos nacionais voltados ao assunto, porque “a relação conjugal é extremamente afetada pelo meio em que está inserida”. Como demonstrado na pesquisa, o casal brasileiro é composto de peculiaridades que precisam ser pontuadas. Diferente de outras culturas, como a norte-americana (em que a maioria dos estudos sobre conjugalidade se baseia), a família brasileira é agregadora e, sobretudo, diversa. Os números mostram que os casais brasileiros não vivem sozinhos: compartilham a vida com pais, sogros, filhos, enteados, avós, netos – o que impacta fortemente a dinâmica da relação.
“Isso também traz uma instabilidade grande, porque eles não estão construindo o seu sistema familiar. Eles estão inseridos no sistema de uma outra pessoa para tentar construir a sua identidade conjugal”.Fabrício de Andrade Rocha
Pico de divórcios
Idealmente, para o psicólogo, nos primeiros anos de relação as tarefas de conjugalidade não deveriam se misturar com outros tipos de demandas de cuidado. Morar com familiares, o que muitas vezes acontece por falta de recursos financeiros, ou ter filhos logo no início do relacionamento são alguns dos fatores que podem interferir na construção de uma base sólida do casal. “Eles vão estabelecer esse novo sistema familiar, com duas pessoas que trazem das famílias de origem costumes, hábitos, pensamentos e crenças diferentes. E isso já é estressante”.
A pesquisa, que iniciou em 2020, também perpassou por assuntos como a pandemia de covid-19. Para o autor, as notícias veiculadas na época fizeram parecer que o período de isolamento gerou crises nas relações conjugais – o que não foi, necessariamente, verdade. “A pandemia não gerou problemas conjugais, ela só exacerbou problemas pré-existentes”. Conforme esclarecido por ele, os números só confirmam o que já se propunha no início do trabalho: “durante grandes eventos, como a pandemia, o casal que já está estável continua estável”.
Segundo o psicólogo, o que difencia as relações saudáveis das não saudáveis não é a quantidade de conflitos, mas a maneira com que eles são resolvidos. Para ele, as três tarefas mais importantes inicialmente são: estabelecer fronteiras saudáveis com o mundo à sua volta, criar uma identidade própria do casal e desenvolver uma maneira saudável de resolver conflitos. “Se o casal consegue cumprir essas três tarefas – que não são fáceis, mas são possíveis – no início, de forma saudável, muito provavelmente eles vão ter uma boa relação conjugal ao longo do tempo.”
Novos estudos
Depois do término da tese, Fabrício seguiu para o pós-doutorado na Universidade de Sherbrooke, no Canadá. Neste momento, o foco do estudo está no desenvolvimento infantil: como o uso de telas pelos pais afeta o desenvolvimento e aprendizado das crianças. Segundo ele, um próximo passo é inserir a conjugalidade nesse contexto. “O desenvolvimento infantil não acontece sozinho, mas dentro de um sistema familiar cujo desequilíbrio também pode afetá-lo”. [1], [2]
[1] Texto de Carolina Paz Comerlatto
[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/primeiros-anos-do-relacionamento-sao-essenciais-para-uma-conjugalidade-saudavel/
Como citar este texto: Jornal da USP. Primeiros anos do relacionamento são essenciais para uma conjugalidade saudável. Texto de Carolina Paz Comerlatto. Saense. https://saense.com.br/2024/07/primeiros-anos-do-relacionamento-sao-essenciais-para-uma-conjugalidade-saudavel/. Publicado em 02 de julho (2024).