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12/08/2024

Ver a literatura do Japão na canção do Brasil
Ilustração: Ana Schittler/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Uma das artes mais democráticas e abrangentes do país, a canção brasileira (“músicas com letra” dos mais variados gêneros: funk, MPB, forró, pisero, rap, rock, reggae, música gaúcha, axé, bossa nova, sertanejo raiz, etc.) possui potencial para construir aproximações interculturais que evitem os lugares-comuns do estereótipo e do exótico. De maneira lúdica, a partir da linguagem própria que une música e literatura, a canção propicia diferentes reflexões. Nela encontramos representados nossos próprios cotidianos e conflitos internos, os daqueles que vivem diferentes realidades e, igualmente, as parcelas de experiência de vida e de mundo que compartilhamos. Nesse papel de educadora sentimental e sensível do brasileiro, a canção é uma mobilizadora de empatia, permitindo um olhar para o Outro que, enquanto O vê em sua própria complexidade, também O vê como semelhante.

Buscando diminuir noções de distância e de oposição, as quais, ao menos no senso comum, ainda são maioria quando se pensa o Japão a partir do Brasil, em minha pesquisa de mestrado comparo a canção brasileira com a literatura japonesa clássica, destacando similaridades estéticas, poéticas, históricas e sociais. À primeira vista, as culturas japonesa e brasileira parecem não compartilhar de pontos de contato, mas esse diálogo existe. A música brasileira é bastante apreciada no Japão, como pode ser percebido nas turnês de artistas como Roberto Menescal, Marcos Valle, João Donato e Zé Ibarra no país asiático, e nas duas apresentações memoráveis de João Gilberto em Tóquio: o CD João Gilberto in Tokyo (2004) e o blu-ray João Gilberto live in Tokyo November 8&9, 2006 Tokyo International Forum Hall A (2019). Além disso, a bossa nova influenciou o “city pop” e, principalmente, o “Shibuya-kei”, gêneros de música pop japonesa que surgiram, respectivamente, no fim dos anos 1970 e na metade da década de 1990.

Da parte do Brasil, nossa literatura possui um componente nipônico: o poema haicai, que chegou ao país no contexto da imigração japonesa no início do século XX, mas tornou-se mais conhecido pela forma como o Modernismo paulista o adotou, através de leituras orientalistas francesas. Composto por três versos de cinco, sete e cinco sílabas respectivamente, o haicai foi considerado um “poema-síntese” que se opunha ao exagerado sentimentalismo romântico. Essa interpretação serviu para os ideais modernistas, mas apagou boa parte das características da literatura japonesa que o haicai permite observar. Entre elas, a referência a determinados locais do território do Japão que possuem associações artísticas baseadas em referências históricas e literárias; os chamados “utamakura”.

Localizado a cerca de 100 quilômetros da cidade de Quioto, capital do Japão entre o fim do século VIII e a metade do século XIX, o Monte Yoshino é um desses “lugares com conotações poéticas”. Sempre que a localidade é mencionada em uma obra, a imagem da sua deslumbrante beleza natural que ainda hoje atrai turistas se faz presente. Observando essa conotação, Teishitsu escreveu o haicai: “‘ah!…’ / é só o que posso dizer / cerejeiras de Yoshino” (circa século XVII), revelando ficar “sem palavras” diante do local. Um século mais tarde, foi a vez de Buson “visitar” o local: “cerejeiras de Yoshino / com a neve cai um galho / me acordo do sonho” (circa século XVIII).

Da mesma forma, a Praia de Suma, na cidade de Kobe, ficou associada à melancolia e à solidão a partir do capítulo “Suma”, do Romance do Genji (circa 1005), de Murasaki Shikibu, no qual o protagonista é exilado na região. Mais de meio milênio depois, em Trilhas longínquas de Oku (circa 1690), Matsuo Bashô escreveu o seguinte haicai: “solidão / o outono nesta praia / mais triste que em Suma”, utilizando as conotações relacionadas à localidade.

Na canção do Brasil, também há ocorrências de tratamento estético semelhante. Por exemplo, a poetização da Praia de Tramandaí, local de veraneio dos gaúchos desde o final do século XIX, como refúgio natural que se contrapõe à vida urbana da capital Porto Alegre. Fato que pode ser observado em “Reggae das Tramanda” (2002), de Armandinho: “nessa cidade quando bate uma fissura / pra fugir dessa violência, essa loucura / eu pego a Freeway e vou dar um banho lá no píer de Tramanda”, e “Tramandaí” (2003), de Os Replicantes: “Você tira as férias e quer ir ver o mar / finalmente você poderá descansar”.

E há outras ocorrências: a cidade de Alegrete como representação do sentimento do “ser gaúcho” da cultura tradicionalista, poetização realizada por Nico e Bagre Fagundes em “Canto Alegretense” (1983); além das internacionalmente conhecidas conotações das praias cariocas de Copacabana e Ipanema apontando belezas paradisíacas e prazeres da vida, as quais podem ser vistas em canções como “Copacabana, princesinha do mar” (1946), de Braguinha e Alberto Ribeiro: “existem praias tão lindas, cheias de luz / nenhuma tem o encanto que tu possues”; “Sábado em Copacabana” (1951), de Dorival Caymmi: “um bom lugar para encontrar: Copacabana / Pra passar à beira-mar: Copacabana / Depois num bar à meia-luz: Copacabana”, e a célebre “Garota de Ipanema” (1962), de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Assim como os utamakura da literatura japonesa, esses “utamakura da canção brasileira” são estilizações literárias pertencentes a um imaginário coletivo que aproxima os membros da comunidade. Aspectos reais e poetizados se combinam para revelar nesse sentimento de topofilia um ponto de contato cultural cujo reconhecimento reduz a força das percepções que veem o Japão como completamente distinto do Brasil. [1], [2]

[1] Texto de Leonardo Reis

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/ver-a-literatura-do-japao-na-cancao-do-brasil/

Como citar esta notícia: UFRGS. Ver a literatura do Japão na canção do Brasil. Texto de Leonardo Reis. Saense. https://saense.com.br/2024/08/ver-a-literatura-do-japao-na-cancao-do-brasil/. Publicado em 12 de agosto (2024).

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