Jornal da USP
11/10/2024
Na Inglaterra do pós-guerra, entre as décadas de 1940 e 1950, a relação entre pensadores se dava, muitas vezes, por debates públicos de cientistas críticos uns dos outros. Algumas situações extrapolavam o âmbito acadêmico e geravam conflitos de ordem pessoal. Envolvido em uma dessas controvérsias – entre um físico, um neurocirurgião e um filósofo – o matemático Alan Turing lançou as bases para o debate do campo hoje conhecido como Inteligência Artificial.
Um artigo publicado na revista IEEE Annals of the History of Computing revisita fontes históricas e apresenta evidências de que Turing variou o design de seus testes de inteligência usando de ironias e provocações em resposta aos seus oponentes. O artigo percorre ainda cartas recém-descobertas, endereçadas a Beatrice Worsley, uma pioneira da computação de origem mexicana cuja pesquisa de doutorado foi co-orientada informalmente por Turing.
Turing apresentou a perspectiva das “máquinas inteligentes”, que chamamos hoje de inteligências artificiais. A medida dessa inteligência é o conceito descrito por ele como “imitação”. Seu Teste da Imitação desafiava as máquinas a exibirem um comportamento indistinguível do de um humano, mas utilizando uma inteligência mecanizada. Na contramão do antropocentrismo, sua importância não está apenas na aplicação prática do teste, mas também em suas implicações filosóficas. Elas serviriam para a humanidade aprofundar a própria compreensão sobre sua inteligência, e com isso adquirir certa modéstia diante da natureza e das outras espécies.
Cérebro eletrônico?
Com a menção da máquina de Turing em 2001: Uma Odisseia no Espaço – filme clássico da ficção científica dirigido por Stanley Kubrick, em 1968 –, o pensamento do matemático se propagaria na cultura. “Mas, antes de tudo, ele sempre foi um conceito na filosofia das ciências cognitivas”, aponta Bernardo Gonçalves, autor do artigo e pesquisador visitante do King’s College da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O trabalho foi publicado durante sua pesquisa de pós-doutorado na Escola Politécnica (EP) da USP, sob supervisão de Fabio Cozman – diretor do Centro de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina da USP.
“Olhei para o assunto de um modo que as pessoas não costumam olhar no mundo anglófono [onde o inglês é a língua oficial]. Não se falava do contexto histórico dos testes propostos por Turing, que estão em debate com as ideias de um neurocirurgião inglês chamado Geoffrey Jefferson, com quem Turing disputa a possibilidade de as máquinas desempenharem um comportamento que pudesse ser considerado inteligente se fosse realizado por um ser humano. Jefferson não aceitava isso. Ele se posicionava como um humanista. Para ele, o homem seria sempre superior”, conta Gonçalves.
Além de Jefferson, outros contemporâneos proeminentes no ambiente intelectual inglês, como o físico e pioneiro da computação Douglas Hartree, e o químico e filósofo Michael Polanyi, confrontaram a visão de Turing sobre a função e o significado dessas máquinas, amplamente divulgadas pelos jornais britânicos como “cérebros eletrônicos”. O uso desse jargão era uma influência do pensamento de Turing, que flertava com a ideia das máquinas como uma nova espécie. A provocação se dava, em parte, na esteira dos debates sobre a teoria da evolução das espécies, na segunda metade do século 19. “Ele foi estudante de graduação de Cambridge na década de 1930, um período mais próximo dos debates sobre a Teoria da Evolução de Charles Darwin”, diz Gonçalves.
Um elemento importante nesse contexto foi a sátira utópica ou distópica Erewhon: or, Over the Range, de Samuel Butler. O título da obra, que significa “lugar nenhum” – escrita ao contrário, em inglês –, é uma provocação à sociedade vitoriana e explora os perigos da evolução das máquinas em um país fictício, levando à proibição de sua produção. Turing abraça a sátira de Butler como uma imagem provocativa de sua própria visão das máquinas superando a inteligência humana.
O profeta das máquinas
“As máquinas podem pensar?” era uma questão cara ao Departamento de Filosofia da Universidade de Manchester, no final da década de 1940. Na ocasião, o jovem cientista Alan Turing acabava de publicar um de seus mais importantes artigos sobre máquinas de computação e inteligência. Para Turing, a discussão parecia sem sentido, uma vez que “pensar” era uma palavra complexa e imprecisa. Sua intenção era, como aponta Gonçalves em seu artigo:
“(…) expandir o significado de ‘pensamento’ e separá-lo da espécie humana, assim como o significado de ‘universo’ já foi separado da Terra”.
Ora lembrado como o matemático brilhante que desvendou o enigma usado pelos alemães na Segunda Guerra Mundial, ora caricaturado como gago, autista e gay em filmes e documentários, Turing também teve seu Jogo da Imitação hostilizado pela comunidade científica da época, e essas contradições guiaram sua carreira ao longo de um solitário caminho de ridicularização e pioneirismo.
Embora utilizando deliberadamente um termo do senso comum, a ideia de imitação de Turing era um conceito matemático e computacional, que trazia as máquinas para o mesmo patamar de inteligência que os humanos. “Ele fez de propósito, para provocar esses contemporâneos. Minimizaram seu propósito porque ele projetou uma questão de gênero em uma discussão sobre a inteligência humana”, conta Gonçalves sobre a possibilidade de uma máquina se passar por um homem ou uma mulher. Para ele, Turing estava disseminando uma ideia na cultura por meio do uso, também para explicar um conceito matemático fundamental com profundas implicações tecnológicas, o conceito de universalidade através da computação digital.
Anos antes da criação dos computadores modernos, a máquina de Turing foi um modelo lógico de funcionamento de um computador universal. Ele era dividido em uma fita com símbolos e um cabeçote de leitura e escrita, movendo-se para a direita e para a esquerda. A partir das instruções contidas na fita, a máquina poderia executar ações como processar dados ou realizar um cálculo por meio de um processo puramente mecânico. Embora fosse simples, a máquina de Turing pôde reproduzir o funcionamento de qualquer algoritmo, uma ideia fundamental na ciência da computação.
Quando se pensava em máquina, ela tinha uma certa restrição física de desempenho, por exemplo quando configurada via engrenagens. Através de um teorema matemático, a máquina de Turing ofereceu um modelo claro e concreto para a computação digital.
“Turing mostra que pode haver uma máquina capaz de reproduzir outras máquinas. Esse é o primeiro grande fundamento matemático-científico a partir do qual ele vai construir sua discussão filosófica e cultural, também em diálogo com Charles Darwin. Com a computação digital, pode-se copiar e propagar informação, guardando certa comparação com como os seres vivos se reproduzem propagando informação.”
Homem, mulher ou máquina?
Para avaliar a inteligência de uma máquina, Turing propôs o Jogo da Imitação, um experimento que ele descreveu variando continuamente os tipos de jogadores e imaginando máquinas futuras que, com mais capacidade de armazenamento e dotadas de um programa apropriado, poderiam ter um bom desempenho no jogo. Contrariando as ideias de Jefferson, que dizia que a inteligência também dependia de hormônios sexuais masculinos e femininos, Turing contorna a seriedade do médico inglês nos anos 1950 propondo um jogo, e transgride o argumento do gênero com uma performance praticada por mulher, homem ou máquina.
Segundo Gonçalves, a reflexão de Turing se apoia na coexistência de espécies distintas, como se as máquinas fossem uma categoria de “ser” diferente dos humanos. “A comparação de Turing entre inteligência de máquina e inteligência humana não se dá no campo da arquitetura cognitiva e da ontologia; para ele, são duas inteligências diferentes, mas que poderiam ter um desempenho equivalente, por exemplo, no contexto de uma conversação. Ele defendeu essa visão praticamente sozinho, em uma controvérsia envolvendo pelo menos três figuras de destaque”, afirma o pesquisador.
Turing acreditava que, em meados dos anos 2000, um interrogador já poderia ser enganado cerca de 30% das vezes por uma máquina no Jogo da Imitação, após cinco minutos de questionamentos.
Máquina criança
Em sua tese, desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Gonçalves reivindica a relevância social dos experimentos mentais de Turing, em diálogo com uma questão central para a filosofia moderna: a condição das máquinas como a outra face da condição humana.
Na visão de Turing, as máquinas seriam capazes de aprender pela experiência para ter um desenvolvimento cognitivo análogo ao do córtex cerebral humano, crescendo em inteligência como uma criança humana. “Para ele, a inteligência de máquina seria também uma parte da natureza, uma nova espécie capaz de desafiar a espécie humana, e não algo desenvolvido para aprimorar a dominação humana da natureza. Diferente da IA que vemos hoje, completamente apartada da natureza, e que inclusive a consome para existir.”
Na esteira das contradições sobre Turing, os vencedores do chamado Nobel da Computação de 2018 tornaram eficazes as chamadas redes neurais – uma versão artificial da rede de neurônios no cérebro humano. Geoffrey Hinton, Yoshua Bengio e Yann LeCun contribuíram com avanços de ciência e engenharia para o aprendizado profundo de inteligências artificiais. “Mas eles não parecem ter o mesmo compromisso com a inspiração na inteligência humana. Turing imaginava uma IA mais sustentável e natural, que seria uma cópia mais próxima da inteligência humana, com seu consumo energético reduzido e raciocínio aproximado, incluindo seus erros”, diz Gonçalves.
A ideia de uma máquina pensante em analogia a um ser humano ganha novos contornos na carta que ele envia para a cientista da computação Beatrice Worsley. Turing acredita ser possível calcular a aleatoriedade cerebral e imitá-la em uma máquina:
Cara Srta. Worsley,
Não creio que você consiga encontrar nenhuma pista para diferenças essenciais entre cérebros e máquinas de computação (se houver alguma), no comportamento dos neurônios. Enquanto o que sabemos sobre um neurônio puder ser incorporado na descrição de processos estocásticos, o comportamento de qualquer mecanismo que incorpore tais neurônios pode, em princípio, ser calculado por uma máquina (…)
Naturalmente, nunca se fará um homem dessa forma. Será apenas outra espécie do gênero pensante.
Atenciosamente, AM Turing”.
“É isso o que abre para Turing a perspectiva de inteligência de máquinas que serão capazes de aprender pela própria experiência. Elas vão aprender como os seres humanos aprendem, o que é uma analogia, não uma equivalência. O impressionante é isto tudo estar registrado em palestras e cartas”, conclui Gonçalves.
O artigo Turing’s Test, a Beautiful Thought Experiment está disponível na IEEE Annals of the History of Computing e pode ser lido aqui.
Mais informações: e-mail bgoncalves1@gmail.com, com Bernardo Gonçalves. [1], [2]
[1] Texto de Tabita Said
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/pioneiro-e-ridicularizado-alan-turing-desafiou-suposta-superioridade-da-inteligencia-humana/
Como citar este texto: Jornal da USP. Pioneiro e ridicularizado, Alan Turing desafiou suposta superioridade da inteligência humana. Texto de Tabita Said. Saense. https://saense.com.br/2024/10/pioneiro-e-ridicularizado-alan-turing-desafiou-suposta-superioridade-da-inteligencia-humana/. Publicado em 11 de outubro (2024).