UFRGS
31/07/2025

Arte pode ser utilizada como ferramenta pedagógica na formação da subjetividade de crianças e adolescentes negros
Foto: Ana Clara Ferreira da Silva (E) e Marcelo Thierry Salgado (D) são estudantes do Colégio Estadual Coronel Afonso Emílio Massot e atuam como mediadores em formação no projeto Afroconto (Crédito: Pietro Scopel/JU)

Fazer com que um grupo de 14 crianças preste atenção em uma contação de história não é uma tarefa fácil. Afinal, as conversas paralelas e a curiosidade são desafios para qualquer pessoa ou atividade que tente capturar o foco de um grupo infantil.

É o caso de algumas das contações de histórias promovidas pelo Afroconto, projeto de extensão vinculado ao Instituto de Psicologia, Serviço Social, Saúde e Comunicação Humana da UFRGS. Com o objetivo de apresentar a estudantes de todas as faixas etárias narrativas antirracistas e anticapacitistas por meio da literatura infantil e infantojuvenil, o Afroconto visita escolas de Porto Alegre para realizar a leitura de livros e dinâmicas que estimulem o debate sobre esses tópicos entre as turmas.

No Colégio Estadual Coronel Afonso Emílio Massot, na zona central de Porto Alegre, onde o Afroconto mantém atividades semanais desde 2022, os contadores de histórias às vezes se deparam com esse tipo de desafio. Foi o que aconteceu na atividade acompanhada pela equipe do JU em uma tarde de junho com uma turma do primeiro ano do ensino fundamental. Em meio à curiosidade dos alunos com os livros da biblioteca e a conversas que se dispersavam e iniciavam novamente a partir de um outro ponto, era difícil fazer com que as crianças prestassem atenção à leitura do livro Educando crianças antirracistas, da autora Bárbara Carine.

Mesmo assim, em canções populares entre a faixa etária e brincadeiras paralelas, alguns tópicos conseguiam atrair a atenção dos alunos. Em uma passagem do livro que destaca os diferentes tipos de cabelo e a beleza de cada um, uma menina levou as mãos à cabeça. “O meu cabelo é crespo, ele fica pra cima, mas quando eu tomo banho ele abaixa”, observou. “O meu é cacheado, igual ao da profe, e fica pra baixo”, disse outra, apontando para o próprio cabelo.

A “profe” é Luana Lopes, estudante de Relações Internacionais na UFRGS e bolsista do Afroconto, era uma das responsáveis pela contação da história para a turma. Além dela, o outro responsável por transmitir a mensagem do livro às crianças era Marcelo Salgado, de 14 anos, estudante do 7.º ano do ensino fundamental no Colégio Massot.

Marcelo é um mediador de leitura em treinamento pelo Afroconto. A ideia do projeto é formar e capacitar pessoas de dentro da comunidade escolar que possam multiplicar as ações promovidas pelo Afroconto quando os organizadores não puderem estar presentes. A equipe pedagógica da escola sugeriu a atividade para Marcelo para estimular seu contato com a leitura e seu engajamento no ambiente escolar. Por isso, há um ano, ele integra a equipe de contação de histórias do colégio, fazendo uma curadoria das obras que serão apresentadas e realizando a leitura para as turmas.

“As bibliotecas do município de Porto Alegre estão sucateadas, não se faz concurso de bibliotecário, e elas vão fechar”, explica Anilton Nunes, mestrando no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e membro do Afroconto. “A gente faz uma formação que tem o acompanhamento de um bibliotecário, que fica responsável pela parte técnica.”

Ana Clara da Silva, também estudante do 7.º ano na Massot, é outra mediadora em formação pelo Afroconto. Tia de um menino pequeno, ela conta que tem jeito para lidar com as crianças, mesmo as mais agitadas, e que às vezes aprende mais com as contações de histórias do que com o conteúdo passado em sala de aula. “Precisa de paciência, mas eu gosto. Me ensina a ser mais paciente também”, conta. “Eu gosto de ouvir as crianças e conversar com elas.”

Para Luana, que passou a participar das contações de histórias há pouco tempo, o mais impactante na experiência é perceber como os alunos são afetados pelas atividades. “A gente se aplica de verdade e quer estar ali, e isso causa um efeito muito grande na gente”, reflete.

Arte pode ajudar a imaginar novos futuros

Em 2020, a doutoranda em Letras pela UFRGS Tainã Rosa criou o podcast A Cor da Voz com a intenção de colaborar nos debates sobre negritude que via acontecendo nas redes sociais e de levar a visão acadêmica sobre o assunto para a sociedade. Cada episódio recebe estudiosos negros para debater temas como o racismo estrutural, o afrofuturismo e a literatura negra. “Na parte conceitual, eu queria um canal negro, com entrevistados negros e temáticas que atingem pessoas negras”, explica.

Desde sua concepção, o podcast tinha como objetivo traduzir conceitos e ideias acadêmicas em uma linguagem que atingisse todos os públicos. Foi quando o A Cor da Voz passou a ganhar projeção que os alunos de Tainã, estudantes da rede municipal de Alvorada, passaram a ter interesse pelo projeto e pedir para ouvir os podcasts.

Mas não era tão simples fazer o material chegar às crianças. “Apesar de a gente viver uma virada tecnológica, essa não é a realidade de muitas escolas. Muitas ainda não têm internet”, reflete Tainã. Ela percebeu, então, que era hora de adaptar o formato para que os discentes pudessem ter acesso aos podcasts.

Foi assim que, em 2023, surgiu a ideia de transformar os episódios do podcast em livros que poderiam chegar em qualquer lugar e serem lidos por qualquer pessoa. Os episódios foram transcritos em formato de entrevista, mantendo os regionalismos e a linguagem acessível, e compilados em três volumes que levam o mesmo nome do podcast.

Hoje, além de serem utilizados em programas de pós-graduação na UFRGS, os livros foram distribuídos em todas as escolas da rede municipal de Gravataí e Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre. Para atingir ainda mais públicos, a versão digital dos livros também é oferecida gratuitamente.

Este ano, o podcast deu mais um passo para dialogar com o público infantojuvenil: a transformação do podcast em quadrinhos. Com a colaboração do artista visual Fabricio Martins, natural de Alvorada, os episódios foram transformados em arte em desenhos coloridos e imaginativos.

Segundo Fabrício, que estudou na rede pública de Alvorada, as aulas de arte oferecidas nas escolas do município não têm aprofundamento prático e teórico. Para ele, a oportunidade de conhecer as artes visuais a fundo veio de um projeto voluntário do qual participou quando era adolescente. Hoje graduando em Artes Visuais, Fabrício enxerga a arte como um gerador de possibilidades para crianças e adolescentes periféricos. “É uma oportunidade de ter outras opções na vida”, descreve.

Tainã, que foi professora da rede municipal de Alvorada por sete anos e deu aula em bairros periféricos para alunos em situação de vulnerabilidade, destaca a importância de apresentar pesquisadores negros bem-sucedidos para crianças e adolescentes. Para ela, isso faz com que esses jovens entendam que existem possibilidades de sucesso para si próprios. E as consequências da iniciativa se refletem no sucesso do podcast entre adolescentes: apesar de não ter sido concebido com o público infantojuvenil em mente, atualmente 12% dos ouvintes são dessa faixa etária.

“Acho que o que mais pega pros adolescentes é mostrar que eles podem ter outra vida além daquela vida da periferia e de tudo que inflige a periferia, como a violência e a criminalidade, que às vezes chegam como as únicas possibilidades”Tainã Rosa

A arte antirracista como instrumento pedagógico

Para a professora da Faculdade de Educação da UFRGS (Faced) Gládis Kaercher, antes de entender como a arte inclusiva é importante no contexto pedagógico, é necessário refletir sobre qual tipo de arte chega às salas de aula. Em muitas escolas, o único tipo de arte apresentada aos alunos é a arte clássica, eurocentrada e focada no homem branco.

“A arte que se escolhe levar para escola produz efeito no branco que a gente está educando”, explica. “É um sujeito branco que só enxerga um humano, que é a imagem e semelhança de si mesmo, o humano branco.”

Além disso, é importante compreender como a representação positiva da negritude molda a autoestima e a subjetividade de crianças e adolescentes negros. Para Gládis, não basta serem os protagonistas, é necessário que os personagens negros sejam os heróis das narrativas. “Tudo isso vai impactar na construção das subjetividades negra e branca”, aponta.

“Pro sujeito não branco, ver-se está diretamente ligado à construção da autoestima e da autoimagem. Pro sujeito branco, está diretamente ligado ao entendimento e à humanização do outro, que é diferente de mim”Gládis Kaercher

Orientadora pedagógica do Colégio Massot, Caroline Barroso conta que a atuação do Afroconto na escola começou a partir de uma necessidade de realizar uma mudança social pela educação. Além de incentivar o hábito da leitura, o projeto incentiva o letramento racial desde os anos iniciais. “Eu vejo que [a literatura] é uma porta pra essa mudança e pra essa consciência.”

O colégio recebe alunos em situação de vulnerabilidade social, e Caroline acredita que a atuação do Afroconto e o debate sobre temas como racismo e capacitismo também possibilitaram uma visão melhor e um diálogo com a realidade de cada aluno. “A gente vai aprendendo, trocando com essas experiências, desenvolvendo um raciocínio crítico e vai ensinando eles em relação aos seus direitos”, observa.

Com a precarização das bibliotecas escolares, no entanto, sobretudo no que diz respeito à rede pública, o ensino desses temas é dificultado. Sem verba para a compra de livros, muitas escolas possuem um acervo defasado e obras antigas que não refletem a pluralidade existente na sociedade. No Afroconto, por exemplo, que atua tanto em instituições privadas quanto em escolas localizadas em regiões com extrema vulnerabilidade socioeconômica, os livros utilizados são sempre levados pelo grupo. Isso ocorre pois as bibliotecas não costumam ter em seu acervo obras que abordam os temas debatidos pelo grupo.

Para Gladis, tão urgente quanto a utilização da arte como ferramenta pedagógica de combate ao racismo, é o entendimento dela como prioridade nesse cenário de apagamento. “Não há outro alimento melhor para a alma humana do que a arte na sua pluralidade. Toda vez que a arte perde essa pluralidade e fica homogênea e hegemônica, a gente perde”, conclui. [1], [2]

[1] Texto de Ana Gonzalez

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/arte-pode-ser-utilizada-como-ferramenta-pedagogica-na-formacao-da-subjetividade-de-criancas-e-adolescentes-negros/

Como citar esta notícia: UFRGS. Arte pode ser utilizada como ferramenta pedagógica na formação da subjetividade de crianças e adolescentes negros. Texto de Ana Gonzalez. Saense. https://saense.com.br/2025/07/arte-pode-ser-utilizada-como-ferramenta-pedagogica-na-formacao-da-subjetividade-de-criancas-e-adolescentes-negros/. Publicado em 31 de julho (2025).

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