UFRGS
11/04/2019

Estudo envolveu as comunidades que vivem próximas à Hidrelétrica de Itá. [1]

Uma pesquisa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de 2015 declara que o Brasil se situa entre os 24 países que produzem 90% de toda a energia disponível no mundo, sendo considerado o que tem maior potencial hidrelétrico. De acordo com dados coletados em 2018 por Mariana Zanarotti Shimako, aluna de graduação da Universidade de São Paulo (USP), o país possui 12% da água doce superficial do planeta e 12 bacias hidrográficas. Cerca de 70% da energia que utilizamos vem dessas hidrelétricas, e existem mais de 2 mil barragens espalhadas por diferentes estados, que são necessárias para a produção de energia. Localizadas principalmente em áreas rurais, comunidades inteiras são forçadas a deixar seus lares para trás, que logo serão tomados pela água. Entretanto, não são só as famílias que tiveram as suas casas submersas que sentem as mudanças no ambiente. As alterações causadas pela construção afetam uma área maior ao seu redor do que somente o que foi alagado. Os indivíduos que permanecem próximos às hidrelétricas sofrem de falta de suprimentos e isolamento geográfico, além da perda de conexões pessoais com membros da comunidade que acabaram partindo para outros locais. A partir de uma extensa pesquisa de campo nos entornos da Hidrelétrica de Itá, a professora de Psicologia na Universidade Feevale Carmem Giongo aponta as consequências que perduram por muitos anos após a implantação das barragens. O trabalho fez parte de sua tese de doutorado, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS e orientada pela professora Jussara Maria Rosa Mendes. [2]

Localizada nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e utilizando o rio Uruguai para produção de energia, a Hidrelétrica de Itá já estava ativa há 19 anos quando Carmem começou a sua pesquisa. A pesquisadora passou o ano de 2016, de fevereiro até dezembro, com as comunidades que vivem ao redor do reservatório e realizou entrevistas com comerciantes, agricultores, profissionais da saúde e políticos para analisar a situação da região tantos anos após a construção da barragem. A motivação por trás desse projeto vem do descaso pela vida desses moradores, apontado em estudos que indicam que somente 10% das pessoas são devidamente indenizadas em cada obra. “É um campo de muito conflito ambiental e de violação de direitos humanos que está banalizado”, afirma Carmem. Para Jussara, as famílias não estão sendo orientadas propriamente pelo Estado e não são consultadas durante o processo. “É dito para eles que vem o progresso, que vai beneficiar o país”, diz ela. Enquanto alguns são retirados e perdem as suas casas, outros acabam saindo devido ao medo e à incerteza de suas situações. A perda de suas raízes e dos laços sociais com os seus vizinhos causa um sofrimento muito grande, aumentando os níveis de depressão e os casos de suicídios na região. Mesmo que as leis ambientais sejam cumpridas, não existe legislação suficiente para proteger os cidadãos em situações como essas. “O que estamos vivendo é uma falta de investimento em seguridade social”, expressa Jussara.

Embora o progresso seja prometido para os moradores das faixas de terra que serão alagadas e também para quem está em seu entorno, Carmem revela que hoje está comprovado que essas instalações não trazem desenvolvimento para o local, e é justamente o contrário que ocorre. Sendo que as comunidades atingidas são primariamente agrícolas, a produção de alimentos é diminuída enquanto o nível de doenças aumenta. As indenizações são desiguais, e a população não possui qualquer tipo de participação nas discussões. “Quem fica e não é atingido acaba em áreas isoladas e sem acesso a políticas públicas”, declara. As consequências são variadas, indo desde impactos sociais, psicológicos e ambientais até econômicos e culturais. São comunidades inteiras em toda a sua complexidade e inter-relações que acabam se desfazendo. Apesar de haver muitos estudos sobre esses casos, a pesquisadora também aponta que pouco tem se avançado em políticas públicas para proteger os afetados. Para Jussara, as leis sociais estão em desencontro com as ambientais, e é preciso trabalhar nisso para que possam atender às necessidades dessas famílias. “Há uma banalização da justiça nas construções das hidrelétricas. Devemos conscientizar e dar visibilidade à construção social dessa banalização da vida humana, dos atingidos e de todo o entorno”, fala.

A pesquisa demonstra inúmeros problemas decorrentes do deslocamento forçado e das alterações na natureza causadas pelas construções de barragens. Jussara comenta que a perda de vínculos sociais causa depressão tanto nos moradores que ficam quanto nos que acabam se mudando para outros locais. As famílias que permanecem ficam afastadas, faltando recursos e até mesmo ônibus que cheguem à comunidade. Ao invés do progresso prometido, veio a falta de acesso. Eles não podem mais pescar ou plantar, o que antes eram os seus meios de sobrevivência. Igrejas e escolas são abandonadas. Carmem também expõe que esses moradores vivenciam períodos de muita insegurança, desvinculando-se das comunidades e sofrendo com a perda do contato com o rio. “Essa água muitas vezes não é mais acessível às pessoas”, relata ela. Há um grande sentimento de injustiça que vem junto com a depressão. Para Carmem, esses sofrimentos são associados à vivência do dano ambiental e da injustiça social que os afligem. Embora a pesquisa delas tenha tido a Hidrelétrica de Itá como objeto de estudo, essa situação e a violação dos direitos humanos se repete em todas as construções do tipo dentro do país. “As pessoas são invadidas antes de começar a barragem, quando elas não fazem parte do processo. Não são tratadas como cidadãos, não são chamadas para participar”, explica Jussara.

Ambas acreditam que, para tentar minimizar os danos causados à população, seria necessário um maior respeito pelos moradores, permitindo a participação em um processo que irá mudar as suas vidas tão drasticamente. Jussara afirma que se devem analisar todos os possíveis riscos para o meio ambiente e para a saúde antes da instalação das barragens. “O capital tem a capacidade de explorar o sangue e a vida dos trabalhadores e do meio ambiente. A voracidade pelo lucro, é isso que comanda”, expressa ela. Jussara também diz que é necessário acabar com a corrupção para que se possa ter uma vigilância eficiente e realmente preservar a vida das pessoas. De acordo com Carmem, existem várias estratégias que poderiam auxiliar os moradores em situações como essa. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que existe há mais de 30 anos e do qual ela faz parte, têm conseguidos alguns avanços na área. Especialista em organização das comunidades, o movimento atua em mais de 20 estados para auxiliar os atingidos. Para ela, um dos passos mais básicos seria melhorar a legislação para que garanta a participação das pessoas nos processos decisórios e os direitos dos afetados. Não somente isso, é necessário ampliar o conceito de atingido. Por lei, são somente as pessoas que tiveram as suas casas alagadas. Entretanto, quem vive por perto também sofre os danos. Dezenove anos após a construção da barragem de Itá, as pessoas que ainda vivem por lá revelam que os piores problemas vieram muito tempo depois, com o isolamento e a falta de acesso a bens básicos, como a água. “Essas famílias precisam de acompanhamento e reparação por muitos anos, não só enquanto a barragem é construída”, profere Carmem. Ela acredita que é preciso envolver mais os órgãos públicos no acompanhamento dessas famílias, auxiliá-las com as indenizações e informá-las melhor sobre o que está acontecendo e que direitos possuem.

Contudo, essas estratégias somente minimizam o sofrimento, não acabam com ele. Enquanto uma realocação efetiva poderia tornar a situação mais fácil, ela não apaga a dor de perder as suas raízes. “A questão é mais ampla do que isso, a gente não descola o meio ambiente da vida das pessoas”, conta Jussara. Até mesmo os que estão longe do local da barragem vão sofrer as consequências dessas mudanças. Embora a energia hidrelétrica seja tida como limpa, ambas as pesquisadoras acreditam que não é a melhor opção. “Deveria haver outras alternativas que não tivessem um custo social tão elevado”, aponta ela. É um mal que atinge muitos trabalhadores, muitas pessoas. Para Carmem, existem alternativas energéticas que são menos danosas ao meio ambiente, como a energia solar, que quase não tem apoio do Estado, ou de políticas públicas. Ainda existem muitas hidrelétricas que estão previstas ou já estão em construção. Viver com as comunidades em volta de Itá por um ano foi um grande aprendizado para Carmem, que vivenciou por ela mesma o isolamento e a falta de acesso que uma barragem desse tamanho causa. Apesar do sofrimento que já é causado atualmente e de casos de rompimento de barragens como Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, hoje existe um movimento político de facilitação do licenciamento ambiental. “Às vezes o Estado é o maior violador de direitos, porque ele flexibiliza as leis. Apesar de toda a catástrofe, estamos caminhando em um caminho oposto do que deveria ser”, fala Carmem.

Convidada pelo MAB, a pesquisadora esteve presente em Brumadinho após o acontecimento, vendo em primeira mão o que acontece quando essas barragens falham. Atendendo às famílias e às comunidades, ela trabalhou escutando os atingidos e os acolhendo quando necessário, mas principalmente os orientando sobre os seus direitos. O movimento ajudou as comunidades a se organizarem, a fazer uma lista do que estavam precisando e a garantir que sejam reparados pelos danos que sofreram. De acordo com ela, as duas principais comunidades atingidas estão sendo assistidas pelo governo, ONGs e movimentos sociais. A lama, que na verdade são rejeitos tóxicos, já atingiu mais de 40 quilômetros de extensão e está afetando comunidades ribeirinhas mais distantes, que ainda permanecem sem informações, poluindo os seus rios e os intoxicando. A Vale, empresa responsável pela barragem, ofereceu apenas água e comida para os afetados. Enquanto estão tentando fazer algumas negociações, o Ministério Público está orientando as pessoas a não assinar nada até que tudo esteja certo, para que não sejam prejudicadas a longo prazo. Ela fala que, até a data da entrevista, os representantes da empresa não aparecem em nenhuma das reuniões, e as pessoas não têm acesso à informação. “Estão deixando a desejar muito, principalmente no processo de oferecer algo que consiga minimamente reparar os danos”, afirma.

Para Carmem, é preciso maior fiscalização dessas barragens e também uma melhor política pública ambiental. De acordo com o que viu e estudou, ela acredita que falta principalmente um órgão que vá garantir a fiscalização e não deixar que seja afetada pela corrupção. A pesquisadora salienta que engenheiros foram coagidos a assinar termos dizendo que a barragem era segura e que o poder público precisa estar mais atento para evitar que situações como essa se repitam. Ela também relata que os moradores têm interesse em formar as suas próprias comissões de fiscalização para exigir que tudo esteja correto e que existam planos de emergência para quando for necessário. Carmem vivenciou o caos que tomou conta de Brumadinho por sete dias. “Isso só mostra o quanto a gente precisa avançar nas políticas ambientais, no respeito e na participação das pessoas nessas políticas. É uma cidade que depende totalmente de um empreendimento; não tem alternativas. As pessoas estão abandonadas nesses lugares”, declara ela. Os danos ambientais são irreversíveis, e a maior parte das famílias nem mesmo encontrou os corpos dos seus familiares. Para a professora, isso está longe de ser um acidente e poderia ter sido evitado. “Existem maneiras muito seguras de construir barragens, mas que ali não são construídas por serem mais baratas. É um crime, com certeza”, exprime. [3], [4], [5]

[1] Crédito da imagem: Wikimedia Commons.

[2] Tese de doutorado: “Futuro roubado”: banalização da injustiça e do sofrimento social e ambiental na construção de hidrelétricas. Autora: Carmem Regina Giongo. Orientadora: Jussara Maria Rosa Mendes. Unidade: Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.

[3] MARQUES, Gabriela da Silva et al. Deslocamento forçado e saúde mental: o caso da hidrelétrica de Itá. Revista de Estudios Sociales, 2018.

[4] BARBOSA, Fernanda Escobar Fernandes; GIONGO, Carmem Regina; MENDES, Jussara Maria Rosa. Construção de hidrelétricas e populações atingidas no Brasil: uma revisão sistemática. Aletheia, 2018.

[5] Esta notícia científica foi escrita por Nathália Cassola.

Como citar esta notícia científica: UFRGS. Pesquisa analisa o sofrimento social relacionado à construção de barragens. Texto de Nathália Cassola. Saense. https://saense.com.br/2019/04/pesquisa-analisa-o-sofrimento-social-relacionado-a-construcao-de-barragens/. Publicado em 11 de abril (2019).

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