Jornal da USP
19/09/2019
Quando começou a pesquisar o uso de ferramentas pelos macacos-prego nos anos 1990, o etólogo Eduardo Ottoni, do Instituto de Psicologia (IP) da USP, não imaginava que seus trabalhos e de outros pesquisadores dedicados ao estudo da espécie estavam contribuindo para a consolidação de uma nova disciplina científica: a evolução cultural.
O sinal de que foi atingido um volume relevante de massa crítica na área foi a criação da Sociedade de Evolução Cultural em 2017, durante encontro em Jena, na Alemanha. “A tônica daquela reunião foi otimizar a inclusão e a interação de várias perspectivas teóricas e aplicadas relacionadas com o estudo dos fenômenos culturais, das humanidades às ciências naturais e da informação”, explica Ottoni, que participa este ano do Programa Ano Sabático do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
No projeto Abordagens Evolucionistas da Cultura, ele está escrevendo um livro-texto sobre o tema e dois artigos para periódicos especializados. Além disso, está planejando um workshop no IEA em novembro, para o qual deverá convidar quatro pesquisadores estrangeiros, inclusive Rachel Kendal, da Universidade de Durham, no Reino Unido, presidente da Sociedade de Evolução Cultural.
Com essas contribuições, espera fomentar o debate no País sobre as recentes perspectivas de estudo da área, que incluem abordagens darwinianas da evolução cultural, coevolução genes-cultura, cognição estendida e tradições comportamentais em animais não humanos.
Origens
De acordo com Ottoni, havia uma completa divisão entre as humanidades e as abordagens biológicas sobre a evolução cultural, com preconceitos dos dois lados. “Algumas áreas de ciências humanas imaginavam coisas horríveis quando se falava em biologia, e surgiram até classificações pejorativas, como a de chamar alguém de ‘determinista genético’”.
Nesse cenário surgiu uma perspectiva de antropologia cultural associada à ideia de tábula rasa e que não faz nenhum sentido, segundo o etólogo. “A concepção era de que a evolução nos deu o cérebro e os órgãos dos sentidos, com tudo relacionado à cultura sendo construção social e flexível, sem nada que a canalizasse ou determinasse.”
O lado biológico também estabeleceu restrições com a síntese neodarwinista, desenvolvida a partir do final do século 19 até a descoberta do DNA nos anos 1940, afirma o pesquisador. “O neodarwinismo gerou um modelo com mais restrições em relação à cultura do que o modelo original de Darwin.”
O modelo neodarwinista fala em herança “particulada”, não lamarckista (pois não envolveria a herança de caracteres adquiridos) e com variação (mutações) “cega” (em relação à seleção), especifica Ottoni. “Esse modelo dificilmente pode ser aplicado à cultura”.
Já Darwin fala, basicamente, em variação herdável com consequências em termos de fitness [aptidão]. Esse modelo, sim, serve perfeitamente para modelar processos culturais.”
O exemplo extremo desse modelo restritivo foi dado pelo biólogo evolucionista Richard Dawkins, “embora ele tenha sido o criador do conceito de ‘meme’ como unidade de transmissão de cultura, mas isso numa metáfora, numa espécie de exercício teórico sobre o processo de informação”, comenta o professor.
Para Dawkins, a cultura, ao afetar o sucesso do organismo, faz parte do fenótipo, num sentido amplo do termo que ele chama de fenótipo estendido (o conjunto de características ‘selecionáveis’ do indivíduo). Isso implica que a cultura afete o fitness, mas não seja ‘herdada’ do mesmo modo que os genes.”
Coevolução
Essas concepções humanistas e biológicas deram margem a muitas discussões, mas acabaram sendo substituídas por um novo ponto de vista: aspectos culturais não seriam algo isolado do organismo, mas sim uma parte muito importante nos processos de evolução biológica, explica Ottoni.
Deixou-se de considerar a evolução genética como a única linha de transmissão de informação no tempo. A evolução cultural passou a ser considerada outra linha de transmissão, com regras um pouco diferentes na sua dinâmica. E as duas linhas interagem. Há ainda uma perspectiva que vem ganhando visibilidade e relevância: a cultura não seria exclusiva dos humanos.”
Ottoni conta que foi parar nessa área a partir da discussão de processos culturais em macacos-prego, depois da descoberta, inicialmente acidental, de que eles usam ferramentas e que aprendiam a usá-las uns com os outros. “Já se sabia do uso mais sofisticado de ferramentas por chimpanzés.”
Os pesquisadores começaram a descartar tudo que pudesse ser explicado por variação genética ou, no caso de diferenças de comportamento entre grupos, por diferenças ecológicas. “Descartados
esses aspectos, é preciso verificar o grau de importância da interação social para o aprendizado.”
Essa abordagem foi aplicada em relação ao uso de ferramentas por primatas não humanos (chimpanzés, macacos, orangotangos). A ideia da existência de processos culturais em outros animais não humanos também já estava presente nos estudos de comunicação vocal em cetáceos, estudos experimentais com peixes e em outros casos, acrescenta o etólogo.
Tudo isso encontrou eco em modelos mais gerais de evolução, em autores que trabalhavam com a ideia de construção de nicho: “Num modelo evolucionista mais tradicional, os indivíduos expõem seu fenótipo estendido ao ambiente e a natureza mata mais uns do que outros. No entanto, todo organismo transforma minimamente seu ambiente, mas alguns transformam mais e vão alterar as pressões seletivas a que estão sujeitos”.
Como exemplo ele cita o cupim, cuja estrutura orgânica é adequada para viver na temperatura e umidades controladas do cupinzeiro construído pela colônia. “Ele não aguentaria ficar exposto ao clima da savana.” Esse conceito de construção de nicho da biologia evolutiva se desenvolveu ao longo de quase um século e, apesar de ainda gerar muitas polêmicas, tornou-se clássico, afirma Ottoni.
Mas há também a ideia de construção cultural do nicho, algo mais intenso e determinante. Isso muda a relação organismo-ambiente na seleção natural: quando o organismo transforma o ambiente, outras coisas passam a ser selecionadas.”
Inteligência maquiavélica
A concepção antropológica clássica era de que aspectos ecológicos da seleção natural produziram o desenvolvimento do intelecto humano. “De acordo com essa explicação, os hominídeos saíram para a savana e não tinham a capacidade de sobrevivência que seus predadores tinham naquele espaço, precisando construir armas, já que não tinham as armas naturais dos predadores, como garras e presas. Basicamente, é uma ideia da tecnologia suprindo carências naturais.”
Em contraposição a isso, surgiu então a hipótese do que ficou conhecido como “inteligência maquiavélica”. Os adeptos dessa ideia defendiam que as pressões da complexidade social teriam sido mais importantes para a evolução do intelecto primata que o desenvolvimento de tecnologias.
Da hipótese sobre as origens sociais do intelecto surgiu um submodelo sobre a aprendizagem social: a ideia da inteligência cultural. Isso significa que se os humanos, desde seus ancestrais, dependem cada vez mais de desenvolvimento tecnológico e dinâmicas de relacionamento cada vez mais dependem de cultura. Assim, estaria sendo selecionado tudo que favorece geneticamente a evolução de capacidades que predispõem à aptidão para a aprendizagem socialmente mediada e o estabelecimento de processos culturais.”
Ottoni afirma que essa capacidade foi uma pressão seletiva específica que marcou muito a história dos primatas. “Isso começou com os primatologistas e depois se expandiu para o estudo de outros animais.”
No entanto, até pouco tempo atrás, muitos pesquisadores chamavam de “tradições” o que se perpetua em primatas não humanos através de aprendizagem socialmente mediada, observa. “Tradição não é uma palavra boa, pois, em primeiro lugar, a palavra denota uma transmissão vertical, de geração para geração, ao passo que s transmissão cultural acontece inclusive horizontalmente, entre indivíduos da mesma faixa etária.”
O que deve ser usado é cultura e com status semelhante ao do termo genética, defende o professor. Nesse modelo, há uma via de fluxo de informações à margem, mas interdependente da genética. “Se chamarmos esse processo de cultural, mudam as perguntas: a cultura humana tem peculiaridades ou seria apenas um caso de hipertrofia? Se ela é peculiar, então o que acontece de diferente nos humanos?”.
Diante dessas questões, os cientistas passaram a refinar os conceitos de aprendizagem, como no caso da imitação, segundo Ottoni. “Talvez só os humanos imitem no sentido estrito do termo. Será que há esse tipo de imitação nos chimpanzés?”
A questão primordial é definir esses aspectos operacionalmente para comparar os processos de aprendizagem socialmente mediada em humanos e não humanos e verificar o que há de diferente, afirma o pesquisador. Um dos temas “ultraquentes” de pesquisa nesse cenário atualmente é o da cultura cumulativa: “A cultura humana é claramente cumulativa, com aperfeiçoamentos progressivos”.
Seleção de grupo
Um dos pontos polêmicos da história da biologia evolucionista é a seleção de grupos, que até Darwin chegou a sugerir.
Ottoni ressalta que “a rigor, em termos moleculares, o que são selecionados são os genes, mas na maioria das situações de modelagem tendemos a falar de organismos sendo selecionados”.
Se o portador de um alelo [forma alternativa de um gene] não tem filhos ou tem menos filhos do que o portador de outro alelo do mesmo gene, este outro alelo vai preponderar. A seleção selecionou uma variante genética e é isso que vai fazer a diferença no tempo, mas são indivíduos a quem ela favoreceu ou não a existência.”
Em certos momentos, embora os indivíduos compitam, serão favorecidos – e transmitirão mais genes – grupos sociais com mais tecnologias, habilidades, cooperação ou quaisquer características que os façam ter mais sucesso num ambiente similar ao de outros grupos, comenta o pesquisador.
Segundo ele, no período pós-Darwin, na transição entre os séculos 19 e 20, vários autores falavam de seleção de grupos e do sacrifício de indivíduos em prol do grupo.
No entanto, à medida que a abordagem molecular foi amadurecendo, “ficou óbvio que em termos moleculares não é bem assim”. A ideia de sacrificar o próprio fitness é muito complicada para integrar um modelo que inclua quem não se sacrifica, afirma o etólogo, “ainda que haja uma exceção relevante (e fundamental para a história do pensamento evolucionista): o conceito de inclusive fitness”. Nesse caso, o organismo sacrifica algum fitness para promover o de parentes e, dessa maneira, colabora para a transmissão de genes com algum grau de semelhança com os seus.
“Isso é a base da noção de kin selection, processo de seleção natural onde o indivíduo sacrifica um pouco de seu fitness para ajudar parentes; isso parece algo “altruísta”, mas na verdade pode produzir um ‘saldo positivo’ de fitness, uma vez que favorece genes comuns a ele e aos parentes”. Para o modelo neodarwinista, explica Ottoni, a kin selection seria o primeiro “patamar” evolutivo da cooperação, da eussocialidade [caracterizada pela presença de castas abrangentes de indivíduos de uma colônia que não se reproduzem].”
Ele diz que ficou claro que seria difícil o fitness grupal produzir uma vantagem que superasse o déficit de fitness individual, que é o que vai passar o DNA, não o grupo. Essa versão mais ingênua sobre seleção de grupo praticamente morreu, de acordo com Ottoni. “A questão é discutida atualmente com modelagem vinda da genética de populações.”
Ele comenta que os proponentes modernos da seleção de grupo mostraram, por modelagem matemática, duas coisas: a seleção molecular de grupo não é tão improvável como os autores neodarwinistas clássicos pensavam; a importância da “seleção de parentesco” para explicar coisas como a eussocialidade teria sido “superestimada”.
A versão clássica da síntese neodarwinista e de sua versão para o comportamento, a sociobiologia, meio que descartava a existência de casos concretos disso.”
Um dos cientistas mais importantes nessa mudança de pensamento é o biólogo americano Edward Wilson, autor de Sociobiologia, diz Ottoni. “Trabalhando com uma nova geração de matemáticos, ele publicou uma série de questionamentos sobre a modelagem clássica da sociobiologia e a evolução da eussocialidade em cupins. Wilson é um dos autores do conceito de que uma colônia de cupins é um superorganismo.”
Os modelos clássicos sobre como a eussocialidade evoluiu tinham muita relação com a ideia de haplodiploidia (em boa parte dos insetos sociais, os machos têm apenas uma cota de DNA, ao passo que as fêmeas possuem duas), que produz relações de parentesco complicadas, afirma o pesquisador: “Uma abelha é muito mais ‘parente’ da rainha do que de seus próprios filhos, então o interesse em botar ovos é menor; dessa forma, haveria uma explicação molecular sobre por que é mais vantajoso não se reproduzir”.
Isso ficou complicado de ser sustentado devido a várias exceções, segundo ele. “Há pelo menos uma espécie de mamífero, o rato toupeira pelado, que vive em colônias na África, cupins, formigas que copulam com um macho e as que copulam com vários ao longo da vida.”
Diante disso, Wilson propôs um novo modelo para a eussocialidade, “colocando como ponto de partida desse processo evolutivo de um superorganismo a criação de um ninho compartilhado, um grande investimento do qual não vale a pena ir embora”.
Esse modelo fica cada vez mais complexo e Wilson consegue inclusive incluir os humanos na eussocialidade, com as sociedades humanas se tornando tão complexas que passam a ter as propriedades de organismos.”
Outra coisa que ele rediscutiu foi a seleção molecular de grupos. Para Wilson, “embora seja mais difícil ganhar fitness que compense pelo lado coletivo a perda de fitness pelo lado individual, isso não é impossível, sendo a eussocialidade apenas um caso extremo em que a espécie tomou um determinado caminho”.
A seleção molecular de grupo é altamente polêmica e há inúmeros debates de correntes opostas, comenta Ottoni.
Grupos e evolução cultural
A maior parte dos pesquisadores dedicados ao modelo de evolução cultural nem entra no mérito da seleção molecular de grupo. “O que eles mostram é que certas coisas difíceis de modelar na evolução molecular realmente acontecem na evolução cultural. No caso do DNA, o indivíduo passa o que tem, mas na cultura há outros mecanismos, como a assimilação.”
Outro exemplo é a questão da homogeneidade. “Para a seleção genética ocorrer, é preciso que haja uma diferença genética clara entre dois grupos. É muito difícil ocorrer homogeneidade em grupos de uma espécie para que a seleção natural favoreça diferencialmente um ou outro.”
Nesse aspecto, explica o etólogo, a cultura é completamente diferente. “Se um indivíduo vai para outro grupo e souber muito bem algo que o novo grupo não sabe, todo mundo vai aprender. Mas o mais comum é ele se ajustar ao que o grupo está habituado.”
Coisas mais complicadas podem ocorrer. Um indivíduo não migra, mas vê o grupo vizinho começando a praticar a horticultura e percebe que aquilo garante mais comida no inverno do que a caça e a coleta, exemplifica Ottoni.
Não adianta eu querer ter um gene que o vizinho tem e eu adoraria ter. Não vou ganhar esse gene dele. Mas a prática cultural do vizinho eu posso copiar.” [1]
[1] Texto de Mauro Bellesa / Instituto de Estudos Avançados da USP.
Como citar esta notícia científica: Jornal da USP. Nova área de estudos analisa transmissão cultural do ponto de vista evolucionista. Texto de Mauro Bellesa / Instituto de Estudos Avançados da USP. Saense. https://saense.com.br/2019/09/nova-area-de-estudos-analisa-transmissao-cultural-do-ponto-de-vista-evolucionista/. Publicado em 19 de setembro (2019).