UFMG
13/02/2020

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“Sou Edgar Kanaykõ, do povo Xakriabá. Moro na terra indígena Xakriabá, no município de São João das Missões, no Norte de Minas. Meu interesse pela fotografia e audiovisual surgiu do próprio interesse da comunidade, quando, nos anos 2000, viu chegar a energia elétrica e, com ela, equipamentos como televisão, rádio e a câmera fotográfica. Desde então, a fotografia, que inicialmente foi vista como um perigo – pela desconhecida influência que poderia exercer sobre nossa cultura –, passou, aos poucos, a ser conhecida e percebida também como instrumento de luta e resistência”.

É dessa forma que Edgar Nunes Correa, o Edgar Kanaykõ, define sua relação com a fotografia, protagonista de sua dissertação de mestrado, defendida no segundo semestre de 2019, na Fafich. Primeiro indígena mestre pela UFMG na área de antropologia, Edgar também é um dos artistas com trabalhos na exposição Mundos indígenas, em cartaz no Espaço do Conhecimento UFMG.

O pesquisador, que faz questão de retomar a conversa se apresentando com sobrenome indígena e identificando seu povo, explica que uma característica “do ser indígena” é essa relação de respeito e pertencimento à sua comunidade, característica que se reflete também na relação do povo Xakriabá com a fotografia. Na dissertação Etnovisão: o olhar indígena que atravessa a lente, as fotografias de Edgar Kanaykõ são o principal instrumento narrativo, superando o texto escrito, “essa forma de grudar o idioma no papel”, como ele define a escrita. 

Sagrado e segredo

Na língua akwẽ (originalmente os Xakriabá eram chamados de Akwẽ Ktabi), a palavra hêmba significa espírito, alma e também pode significar imagem, fotografia. “Para nós, e isso não é diferente para muitos povos indígenas, a fotografia também revela o que os olhos não podem ver. Proponho uma reflexão sobre como fazer etnografia com imagem, ou etnofotografia, principalmente sob o ponto de vista indígena, que é diferente do não indígena, porque, para nós, essa relação da fotografia também com o mundo espiritual pode trazer perigos ao envolver o sagrado, que, muitas vezes, é segredo”, teoriza.

Edgar Kanaykõ, que cursou Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei), na Faculdade de Educação, conta que, durante um ritual ou festas indígenas, quem decide sobre o que pode ou não ser registrado não é quem está com uma câmera nas mãos, mas os espíritos, mediados pelos pajés, que também negociam com a comunidade. 

Essa preocupação com o permitido e o não permitido, que define as questões de ética e uso da imagem desde a captura, perpassou toda a pesquisa do indígena, que manteve diálogo intenso com seu povo, segundo seu orientador, o professor Ruben Caixeta de Queiroz, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich.

“Edgar também sempre se preocupou com o modo como o seu trabalho seria lido pelo seu povo, cuidado que reflete o compromisso que eles tanto prezam com suas comunidades ao ingressarem na academia”, observa.   

Desde seu primeiro contato com a fotografia, Edgar quis descobrir como dizer alguma coisa por meio das imagens. “Quando entrei na UFMG, em 2009, para fazer a licenciatura em ciências sociais e humanidades, pensei em desenvolver esse tema. E no mestrado tive apoio da Associação Indígena Xakriabá para desenvolver uma reflexão sobre esse importante instrumento tecnológico. Os mais velhos perceberam que a fotografia também poderia ser instrumento de luta e resistência e que alguma coisa poderia ser revelada, especialmente aos mais jovens, nas escolas indígenas”, relata. 

Segundo Ruben Caixeta, o trabalho de Edgar traz novas perspectivas para o que se denomina antropologia indígena, ou antropologia colaborativa, porque, apesar de as imagens sempre terem sido utilizadas pelas ciências para ilustrar e ajudar a descrever uma realidade, nessa pesquisa foram produzidas por um nativo sobre si mesmo e sua cultura. “O nativo, objeto das pesquisas antropológicas e que sempre colaborou como guia, tradutor ou assistente de campo dos pesquisadores, passa a ocupar o lugar de sujeito na produção do conhecimento sobre si mesmo. Trata-se de uma troca, em que a universidade ganha ao se abrir para a pluralidade e a universalidade de novos saberes, ao mesmo tempo que contribui com a formação de profissionais que retornam às suas comunidades”, acrescenta o professor.  

Essa “antropologia reversa”, como Edgar Kanaykõ define seu trabalho, traz a expectativa de “uma influência histórica sobre essa narrativa, sempre contada por não indígenas e ilustrada, muitas vezes, por estereótipos como índios nus, morando na Floresta Amazônica e usando arco e flecha”, observa. 

Em sua opinião, “nesse cenário, onde o governo deslegitima as lutas indígenas, é preciso mais do que ocupar os espaços majoritariamente ocupados por não indígenas, como a academia, é preciso desconstruir e reconstruir esses espaços com um pouco da nossa cara. E, quando voltarmos para nossas comunidades, seremos mediadores de tantas questões, sempre com um pé no mundo e outro na aldeia. Sempre conectados uns com os outros”, afirma Edgar.

Mundos indígenas

Na exposição Mundos indígenas, explica Edgar Kanaykõ, a intenção dos curadores, todos indígenas, é proporcionar ao visitante “os cheiros de seus territórios, desde a terra e seu cultivo até a diversidade da vegetação e da cultura”. As fotografias de Edgar retratam o território Xakriabá, formado por 56 mil hectares demarcados, 32 aldeias e com população de 10 mil pessoas, jovens em sua maioria. Na exposição, também estão representados os povos Maxakali, Pataxoop, Yanomami e Ye’kwana.

Dissertação: Etnovisão: o olhar indígena que atravessa a lente
Programa: Pós-graduação em Antropologia
Autor: Edgar Nunes Correa (Edgar Kanaykõ)
Orientador: Ruben Caixeta de Queiroz
Defesa: agosto de 2019

(Teresa Sanches)

[1] Foto: Edgar Kanaykõ.

Como citar esta notícia: UFMG. Olhar que atravessa a lente. Texto de Teresa Sanches. Saense. https://saense.com.br/2020/02/olhar-que-atravessa-a-lente/. Publicado em 13 de fevereiro (2020).

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