Marcus Eugênio Oliveira Lima
14/06/2020

Frequentemente, depois que notei que estou ficando velho, recebo mensagens via WhatsApp de pessoas da minha faixa etária ou mais velhas, saudosas do tempo em que não havia bullying (i.e., o termo e o controle, porque o mau hábito é antigo), que ninguém se preocupava com “politicamente correto”, que se podia fazer piadas sobre os outros, que se curava crises psicológicas com surras, uma vez que os pais podiam e deviam bater nos filhos, etc. O saudosismo se espraia para coisas mais inocentes, chegando até aos horrorosos calçados da época de escola, ki-chutes e congas, ou tipo de bola sem qualidade que tínhamos para jogar na rua, chutando pedras.
Sentir nostalgia é normal, mais do que isso, é algo que nos torna humanos. Em termos etimológicos, nostalgia deriva do grego nostos, que significa voltar para casa e algia, que significa saudade, sofrimento. As pesquisas em psicologia social mostram que a nostalgia tem consequências positivas, pois nos ajuda a lidar com os desafios em contextos de transições de vida. Por exemplo, se você vai viver em outro país, a nostalgia lhe ajuda na adaptação. Entretanto, isso dependerá da crença de que sua identidade poderá ser mantida (identity continuity). Quando sua continuidade identitária é ameaçada, a nostalgia tem consequências negativas para o funcionamento psicológico [2]. É nesse sentido que, na psicologia social, se concebe a nostalgia como um sentimento agridoce, em que o passado pode causar dor ou prazer, ainda que seja um prazer não pleno e uma dor não pungente [3].
O problema da nostalgia é quando ela se torna um sentimento coletivo e não apenas individual. Nesse caso, um grupo começa a sentir saudades de algo do passado, algo que perdeu dos “bons tempos” e que gostaria de ver restaurado. Há muita pesquisa em psicologia social mostrando que a nostalgia coletiva surge em tempos de mudança e transformação social e econômica, de crescente diversificação cultural e religiosa, tempos em que membros da maioria (nativa, política, social, sexual, etc.), aqueles que ocupavam exclusivamente as posições de poder antes das supostas “invasões bárbaras”, não se sentem mais em casa em seus bairros e ruas, desejando o retorno dos tempos em que era “apenas nós”. As pesquisas mostram que esse sentimento se associa ao preconceito contra minorias, à xenofobia e ao voto em políticos e partidos autoritários que possam restaurar o passado.
Na nostalgia coletiva, o passado é sempre idealizado, como tempo em que as pessoas (“nós”) possuíam as normas e valores “certos”; que havia uma comunidade moral que sabia se comportar e que era mais feliz. O presente é o tempo em que as pessoas (“eles”) perderam as noções de certo e errado, são de outra ou de nenhuma comunidade moral e, portanto, não merecem respeito ou tratamento humanitário, uma vez que, como vimos nas “Gostas de Psicologia Social” da semana passada [4], humanidade e humanismos só para os humanos. É assim que a nostalgia coletiva se torna o sentimento estruturante das narrativas conservadoras, nas quais, como dizia William Shakespeare, “o passado e o futuro parecem-nos sempre melhores; o presente, sempre pior”. Tal como embarcar, à semelhança de Marcel Proust, numa jornada “em busca dos tempos perdidos”. Entretanto, ainda na literatura, Millôr Fernandes faz um alerta importante aos navegantes: o passado é o futuro usado.
Na última semana de forma mais intensa, e, nos últimos tempos, mais esporadicamente, temos vivido uma jornada em marcha ré em busca do passado. Daquele tempo em que havia mais obediência, respeito, enfim, que os grupos (e as pessoas neles) ocupavam seus espaços numa “ordem perfeita”, tempos dos “valores da família”, “de Deus”, “dos valores brancos”, em que casal era “marido e mulher”, que professor tinha “autoridade”, que não havia tanta gente em aeroportos (pelo menos antes da pandemia), enfim, tempos em que “cada um sabia o seu lugar”.
Essa nostalgia coletiva tem motivado, pelo mundo afora, ondas de populismo reacionário, fortalecendo os partidos conservadores e ameaçando as democracias, como comentamos em outro texto[5]. Faz retornar monstros que achávamos que estavam mortos, mas que, na verdade, habitavam os porões da nossa sociedade, esperando o momento certo para regressarem com mais força e poder de destruição. Como nos ensina Freud, estamos assistindo a um “retorno do reprimido”. O velho mundo conservador grita com força tecnológica nas caixas de ressonância dos bots e se amplifica nas redes sociais.
Um desses monstros é o racismo flagrante e as políticas de extermínio da diferença. Noutro texto [5], tivemos oportunidade de argumentar que estamos vivendo nos últimos anos no Brasil um momento em que o termo “racismo” tem sido e será cada vez mais usado, assim como nos Estados Unidos da era Trump e na Europa dos nacionalismos de extrema-direita. A realidade dos fatos da última semana evidenciou essa ideia. Nos Estados Unidos, no dia 25 de maio de 2020, George Floyd, de 40 anos, foi morto estrangulado, quando já estava algemado e imobilizado, por policiais brancos em Minneapolis. A polícia local, logo depois do ocorrido, emitiu a seguinte nota sobre a morte de George “morreu após um incidente médico durante uma interação policial”[6]. Uma semana antes, no Brasil, o adolescente negro de 14 anos, João Pedro Mattos Pinto, foi morto numa operação conjunta das polícias Federal e Civil, no Complexo do Salgueiro, Rio de Janeiro. Mais de setenta tiros foram disparados na direção de João Pedro, que brincava com amigos [7]. Em 2019, todos lembram do assassinato do músico Evaldo Rosa e do catador de material reciclado Luciano Macedo, ambos negros, com 80 tiros disparados por militares do exército, no Rio de Janeiro.
Nos três casos, as vítimas eram negras e foram mortas sem chance de defesa – executadas – pelo aparato de controle do Estado (polícia/exército). Mas será que podemos falar de racismo e de um retorno ao racismo enquanto política de estado para extermínio, nas três situações? A resposta é sim. O filósofo Aquile Mbembe defende essa ideia num livro intitulado Necropolítica: “Existe uma constatação completa de guerra, que se dá através da fusão entre um estado racista, assassino e suicidário. O outro – geralmente animalizado, historicamente destituído de humanidade – passa a encarnar o inimigo ficcional, gerando violência e morte como mecanismos de segurança, eliminando de forma impessoal esse que seria um atentado à existência dos demais (p. 369)[8]. Cria-se, então, uma política de estado vinculada às ideias de neocolonização: “A comparação com o período colonial se dá porque a política atual envolve relações de subalternização parecidas às que os países colonizadores infligiram no passado sobre suas colônias (…) matar torna-se uma escolha possível considerando o domínio do Estado sobre os corpos pretos, pobres e periféricos” [9].
Tudo isso nos faz pensar que é a nostalgia coletiva de épocas de supremacia, de domínio absoluto, de colonização do outro, que alimenta o retorno das formas mais abertas de racismo, com políticas de extermínio, que vivemos nos dias atuais. A humanidade parece caminhar a passos largos para trás, perdida, em busca de tempos também “perdidos”.
No Brasil, a viagem ao passado parece mais célere. Manifestações como as do último domingo (31/05/2020) pedindo intervenção militar e fechamento do Supremo Tribunal Federal, promovidas por grupos armados e treinados, com tochas acessas e máscaras, reencenam, com “novos atores”, velhos filmes da Ku Klux Klan nos Estados Unidos do Jim Crow.
A questão fundamental que se coloca é: Onde vamos parar neste retorno à cloaca da história da humanidade? Como ensina o filósofo e político Edmund Burke: “Não se pode planejar o futuro pelo passado.” A nostalgia do domínio supremacista precisa ceder lugar para sentimentos coletivos mais inclusivos, como o respeito, o amor e a solidariedade, caso contrário nossa história irá transitar do presente para o passado e do passado para lugar nenhum. Importante referir ainda que a nostalgia coletiva não é exclusividade dos idosos, pelo contrário, há muita pesquisa mostrando que a geração “milênio”, aqueles que se tornaram adultos a partir de 2000, estão entre os mais conservadores e reacionários no campo das opções políticas e morais. Mas este pode ser assunto para outras “gotas” de psicologia social. Por ora, vale lembrar a máxima de Angela Davis: “Nos tempos de hoje, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista!”
[1] Imagem de Tumisu por Pixabay.
[2] https://www.academia.edu/10353794/Iyer_and_Jetten_2011_-_identity_continuity_moderates_the_effect_of_nostalgia_on_well-being_and_life_choices.
[3] https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0147176715300134.
[4] https://marcuseugenio.wordpress.com/2020/05/21/a-essencia-humana-e-as-aparencias-de-civilidade/.
[5] http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/view/317.
[6] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52818817.
[7] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/20/o-que-se-sabe-sobre-a-morte-a-tiros-de-joao-pedro-no-salgueiro-rj.ghtml.
[8] https://www.scielo.br/pdf/ha/v25n55/1806-9983-ha-25-55-367.pdf.
[9] https://rioonwatch.org.br/?p=37984.
Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. O velho novo e o novo velho: Nostalgia coletiva e racismo. Saense. https://saense.com.br/2020/06/o-velho-novo-e-o-novo-velho-nostalgia-coletiva-e-racismo/. Publicado em 14 de junho (2020).