Fiocruz
08/07/2020
O uso de animais não humanos com fins medicinais é chamado de zooterapia. Esse campo científico possui íntimas ligações com a etnofarmacologia, disciplina que investiga como plantas, animais e minerais podem ser úteis na criação de novos medicamentos (Alves, Dias, 2010). No documento Guidelines on Conservation of Medicinal Plants, publicado em 1993 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), foi estimado que entre 75 a 80% da população mundial dependia dessa terapêutica para a atenção à saúde. Dessa forma, cresceu nos últimos anos o investimento em pesquisas econômicas, educacionais, etnográficas, botânicas, farmacêuticas e ecológicas sobre os usos de biomateriais como alternativa à medicina alopática e suas implicações para a saúde pública no mundo contemporâneo (WHO, 1993).
A zooterapia integra as controvérsias acerca da origem do novo coronavírus Sars-Cov-2. Vale observar que as hipóteses a respeito da emergência da Covid-19 levam em consideração três dinâmicas nas quais a presença de animais não humanos portadores de coronavírus é notória. Essas dinâmicas são as seguintes: 1-a zooterapia praticada pela medicina tradicional chinesa; 2-as interações de manejo e venda da fauna em mercados atacadistas de animais vivos, 3- o constante tráfico internacional ilegal de múltiplas espécies. Desse modo, se, de um lado, é inegável o papel de animais em interações que estão na origem de emergências sanitárias recentes, também é relevante evidenciar a coparticipação dos animais não humanos na produção de medicamentos, sobretudo quando vislumbramos os possíveis empregos de biomateriais no tratamento futuro, inclusive, da própria Covid-19.
No entanto, em que pese a indeterminação sobre o ponto de partida exato da Covid-19, a análise clínica dos primeiros casos de humanos infectados pelo novo coronavírus indicou que os pacientes frequentaram, em dezembro de 2019, o mercado atacadista de frutos do mar e de animais vivos, na cidade de Wuhan, província de Hubei, China. Desde então, tais evidências trouxeram à memória dos cientistas a experiência epidêmica da síndrome respiratória aguda grave (Sars), também causada por coronavírus, entre 2002 e 2003. Anos depois foi reconhecido pelos cientistas que dejetos de morcegos contendo coronavírus interagiram com civetas, espécie mamífera de grande proximidade com humanos e que atuou como hospedeira intermediária na emergência da Sars. Naquela altura, territórios chineses registraram os primeiros casos, e, meses depois, nações asiáticas vizinhas foram contaminadas. Durante um ano de difusão do patógeno pelo globo, países da América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia notificaram juntos cerca de 8,000 casos e 800 óbitos por Sars. Em 2012, um outro coronavírus, de maior letalidade e presente em camelos, irrompeu causando uma nova onda de síndrome respiratória aguda grave (Mers), com casos iniciais notificados na Arábia Saudita e posterior difusão em outros países do Oriente Médio, Europa e África.
As incertezas em relação às espécies envolvidas como hospedeiras do atual Sars-Cov-2 também são inúmeras, mas contam com algumas hipóteses. Em maio de 2020, Peter Ben Embarek, especialista em zoonoses e doenças alimentares da OMS, comunicou que a Covid-19 foi originada em morcegos, dada à semelhança metagenômica da Sars-Cov-2 com o coronavírus encontrado nestes mamíferos voadores. Cabe lembrar que morcegos são reconhecidos como reservatórios de coronavírus. A capacidade de transmissão viral entre as diversas espécies de morcegos aumenta a possibilidade de mutações genéticas e adaptativas dos vírus (Wong et al, 2019). É sabido também que os excrementos dos morcegos possuem a capacidade de infectar diferentes superfícies e novos hospedeiros mamíferos intermediários, que, ao interagirem com humanos, podem resultar em novos ciclos zoonóticos. Para Embarek, portanto, o mercado de frutos marinhos de Wuhan pode sim ter sido o principal mediador do processo infeccioso da Sars-Cov-2.
Como já ressaltei, um outro ramo de investigações sobre a origem da Covid-19 guarda relações diretas com as zooterapias, posto que boa parte das pesquisas recentes também observa a alta semelhança do vírus Sars-CoV-2 com os coronavírus localizados nos pangolins malaios (Manis javanica). Esta espécie de mamífero dotada de escamas é popularmente conhecida pela sua participação ancestral na medicina tradicional asiática, bem como pode ser encontrada nos mercados de animais silvestres chineses e na gastronomia vietnamita. Suas crostas possuem queratina e passam por processos de secagem e moeção, para serem transformados em pós utilizados como remédios na medicina tradicional.
Devido à drástica redução dos pangolins nos mercados asiáticos, os contrabandistas deslocaram seu foco de caça ilegal para terras africanas. Como exemplo, nota-se que, em duas apreensões realizadas numa semana de abril de 2019, o governo de Cingapura registrou, na primeira carga, cerca 14,2 toneladas com partes de pangolins, e, na outra remessa de 14 toneladas, escamas de espécimes oriundas da Nigéria. Com isso, estima-se que cerca de um milhão de pangolins foram capturados entre 2000 e 2013. O pangolim é o animal mamífero mais traficado do mundo neste século (National Geographic, 2020). Dessa forma, espécies de pangolins estão em vias de extinção, conforme dados da Lista de espécies ameaçadas da União Internacional para Conservação da Natureza (Challender et al, 2019).
Em estudo recente publicado na revista Nature, cientistas analisaram amostras de pulmões, intestinos e sangue de 18 pangolins malaios coletadas entre agosto de 2017 e janeiro de 2018, das quais ficou demonstrado que 6 dos 43 corpúsculos examinados possuíam coronavírus com similaridade genética ao RNA do Sars-Cov-2. Outro achado da pesquisa diz respeito às variantes genéticas do vírus dos pangolins que são similares ao novo coronavírus numa parte de uma das proteínas virais, denominada receptor biding domain, também chamada de proteína spike. Essa é a principal estrutura que o vírus aciona para se conectar com as células.
Amostras de pangolins coletadas nas províncias de Guangxi e Guangdong – localizadas a mais de mil quilômetros de distância de Hubei – também possuíam cepas de coronavírus semelhantes às que afetam os humanos na pandemia em curso. Esses achados aumentaram as suspeitas de que estes mamíferos atuaram como prováveis hospedeiros intermediários na irrupção na pandemia. Por sua vez, a falta de semelhança da proteína spike, encontrada em morcegos, com aquelas presentes em pangolins permite objetar a probabilidade de misturas genéticas entre os gêneros de coronavírus de pangolins e morcegos antes do contato com os humanos (Lam et al, 2020). Esta última hipótese aguarda comprovações futuras, mas adquire relevância quando relembramos que este fenômeno ocorreu na gripe suína, uma vez que o vírus H1N1 possuía mesclas genéticas de aves, suínos e humanos.
Por essas razões, o conhecimento das zooterapias e seus impactos na geração de zoonoses são fundamentais para analisarmos as interrelações entre os humanos e a fauna. Recentemente, o artigo Uso de animais como zooterápicos: uma questão bioética (Fischer et all, 2018) delineou um extenso inventário sobre a utilização de órgãos, tecidos e demais partes de animais não humanos utilizados com fins medicinais em diversas enfermidades. Metodologicamente, o estudo analisou a resposta de redes sociais brasileiras – como grupos de biologia, farmácia, ativismo, fitness, feminino e de utilidade pública – às seguintes questões: ” Você já consumiu algum chá ou remédio caseiro feito de plantas ou animais?” e ” Considerando os animais invertebrados, você conhece algum animal ou produto de animais que pode ser utilizado como medicamento ou cosmético?”. Desse modo, Marta Fischer, Maria Palodeto e Érica Santos, as autoras do artigo, constataram uma continuidade na utilização de órgãos de animais como agentes medicinais e suas implicações para a saúde pública e o meio ambiente brasileiro.
Em seguida as autoras cruzaram as respostas obtidas com a literatura científica da zooterapia e a legislação disponível referente aos zooterápicos. Da mesma forma, a análise cotejou dados quantitativos de países como México, Argentina, Tanzânia, Espanha, Coréia, Índia e Indonésia. Das 2,260 citações bibliográficas examinadas, os invertebrados terrestres répteis (16%), aves (17,6%) e mamíferos (24,4%), destacaram-se, deixando os invertebrados anfíbios (2,7%), marinhos (4,2%) e peixes (15%) em menor índice na medicina tradicional. Do conjunto das referências apuradas, também emergiu o uso zooterápico de espécies como a abelha-europeia, jandaia, barata, cavalo-marinho, peixe-elétrico, camaleão, cascavel, veado-mateiro, galinha, carneiro, bode, boi, cachorro, porco, ema, pato, pavão e pombo. Das espécies brasileiras listadas, várias estão ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira, anta, cervo-do-pantanal, queixada, peixe-boi da Amazônia e marinho, boto-cinza, boto-cor-de-rosa, bugio, macaco aranha-peruano, macaco barrigudo, puma, onça pintada, leopardo, cachorro-vinagre, mocó e veado-campeiro.
Paralelamente foi observado que 2,413 citações bibliográficas indicaram o uso destes elementos no tratamento de desordens motoras e respiratórias, visto que a alta prevalência destas anomalias somada ao incômodo gerado por estas doenças e a rápida procura por alívio dos sintomas favorecem o uso de zooterapias. Marcadores socioeconômicos, como a falta de acesso a serviços médicos e o elevado custo de medicamentos, também constituem condições que estimulam o uso das zooterapias (Fischer et al, 2018, p.225). A falta de monitoramento na captura e comercialização de animais não humanos, no entanto, propicia a utilização de produtos de qualidade duvidosa (Idem).
Desse modo, Fischer e suas colegas defendem que a zooterapia “demanda a aplicação dos princípios éticos da responsabilidade, cuidado e sustentabilidade no balizamento da relação homem-natureza”. Ademais, foi destacado que a exploração da fauna incide na estrutura das populações e do ecossistema, bem como deixa marcas de dor e sofrimento durante a captura, criação, manejo e experimentação das espécies (Fischer et al, 2018, p.223-224). Entretanto, ainda que gozemos de legislações protetoras da nossa fauna, uma intensa hecatombe de exploração e caça de inúmeras espécies sem fins medicinais permanece e é estrutural na sociedade brasileira.
Ainda que as zooterapias possam desencadear zoonoses raras, convém salientar a participação exitosa da fauna na produção de medicamentos e dispositivos biomédicos. Conforme pontuou Calixto, a produção de drogas com base na biodiversidade tem demonstrado que a extração de toxinas de animais, bactérias, fungos e plantas permite aos farmacologistas compreenderem complexos mecanismos da biologia celular, molecular e eletrofisiologia; sendo o estudo de suas enzimas, receptores, canais iônicos e outras estruturas biológicas passíveis de identificação, isolamento e clonagem. Com esse arsenal, a indústria farmacêutica tem criado terapias mais seletivas e com maior eficácia contra doenças de alta complexidade. Os produtos naturais servem como matéria prima na síntese de moléculas complexas e proporcionam alta quantidade de estruturas químicas. Como efeito, o interesse industrial nestes insumos consolida-se, uma vez que apresentam êxitos em bancos de moléculas para ensaios de alta velocidade; auxiliam na economia de tempo e recursos; são sede de pequenas moléculas para atingir complexos metabólicos e, sobretudo, são profícuos em proporcionar absorção e metabolização pelo organismo (Calixto, 2003).
Nessa perspectiva, vale registrar as investigações zooterápicas em curso relacionadas à Arenicola marina e sua promissora contribuição para o tratamento da Covid-19. Este animal não humano é uma poliqueta e pertence ao mesmo filo das minhocas, cuja hemoglobina possui a capacidade de aumentar em até quarenta vezes o transporte de oxigênio dos pulmões para os tecidos humanos, além de ser compatível com todos os tipos sanguíneos (Paiva, 2020; Saraiva, 2020; Rousselot et al,2006; Zal; Rousselot, 2014). Devido à forte crise de abastecimento nos bancos de sangue provocadas pelo HIV e surto da vaca louca ocorridas em 2003, o interesse da comunidade médica diante desta espécie cresceu consideravelmente (France-Presse Agence, 2020). Desde 2007, pesquisas francesas sobre as funções hemolíticas da Arenicola encorajaram o uso destas substâncias em pacientes com isquemia e hemorragia, bem como mostraram efetividade na preservação de órgãos para transplantes e no aperfeiçoamento da oxigenação de cultura de células. Do ponto de vista econômico, tem crescido o seu cultivo por indústrias ligadas à aquicultura e biotecnologia. No entanto, cientistas e empresas envolvidos na criação das arenícolas destacam que, caso suas potentes hemoglobinas mostrem-se eficazes no tratamento da coagulopatia na Covid-19, o maior desafio será a produção do bioterápico em alta escala.
A heparina também serve como outro exemplo da utilidade e segurança dos medicamentos compostos com partes de animais não humanos. A inesperada identificação deste biomaterial é atribuída ao estudante de medicina canadense Jay McLean (1890-1957), quando investigava os efeitos coagulantes de extratos de tecidos na John Hopkins University, em 1916. Nesse processo, Lead observou em cobaias que os sumos de coração e fígado retardavam a coagulação sanguínea e, por esse caminho, o jovem cientista conseguiu isolar o primeiro anticoagulante da história a partir de fígados caninos. Anos depois, coube a Charles Best (1899-1978), principal coprodutor da insulina, inserir a heparina na atividade clínica. Atualmente, a produção comercial da heparina conta com biomateriais extraídos de intestinos (bovinos e suínos) e pulmões (bovinos) como componentes do medicamento (Escouto, 2009). Dessa forma, a heparina é reconhecida como um dos anticoagulantes mais vendidos do mundo, bem como foi inserida na lista de medicamentos essenciais da OMS como uma das mais efetivas e seguras terapias fornecidas nos serviços de saúde (Lim, 2017).
Entre fevereiro e março de 2020 foram publicados no periódico científico Journal of Thrombosis and Hemosthasis quatro artigos relatando coagulações sanguíneas severas – como o tromboembolismo pulmonar – em pacientes com a Covid-19. Em maio deste ano, pesquisadores brasileiros constataram efeitos benéficos da utilização da heparina em cultura de células, visto que esta terapia reduziu em 70% a entrada do novo coronavírus em células saudáveis do organismo humano (Dolhnikoff,2020). Os testes laboratoriais foram liderados pelos cientistas do Instituto de Farmacologia e Biologia Molecular da Unifesp-Infar e contaram com a colaboração de pesquisadores ingleses e italianos. Os ensaios in vitro demonstraram que a proteína spike do coronarívus conecta-se às moléculas da heparina, induzindo a uma alteração do processo infeccioso, enfraquecendo assim a entrada do novo coronavírus em células sadias. Em função dos recorrentes índices de mortalidade da Sars-Cov-2 estarem relacionados a coagulações sanguíneas nos pulmões, tais dados inspiram os pesquisadores a criar medicamentos antivirais com base nos compostos da heparina.
Nesse contexto, enquanto o mundo aguarda com esperança os resultados de testes clínicos randomizados com a heparina em pacientes com a Covid-19, dados da Organização Mundial da Saúde identificaram o uso do Enoxaparin – heparina de baixo peso molecular de origem suína – e da Tinzaparina sódica – sal de sódio de heparina, oriundo da mucosa intestinal de porcos- como anticoagulantes que estão sendo igualmente utilizados no combate aos graves estágios clínicos da doença. No entanto, por enquanto, a agência ainda não emitiu pronunciamento oficial em favor da heparina como medicamento anticoagulante padrão para o tratamento da coagulopatia em pacientes acometidos com o novo coronavírus (WHO, 2020).
Como vimos, a inserção de animais não humanos na medicina tradicional somada à conservação de animais vivos em mercados de grande público e a permanência do contrabando ilegal de animais silvestres podem desencadear novas zoonoses. Como consequência, estas ações facilitam o contato entre espécies de animais oriundos de diferentes regiões, bem como promovem o encontro casuístico de patógenos com novos hospedeiros, cujos efeitos levam a recombinações virais. Nos próximos anos, o incremento do orçamento público destinado à produção científica e tecnológica brasileira será crucial para a promoção da vigilância sobre os usos da fauna e de modo a detectar a presença de novos patógenos. Esse esforço também deverá ser estendido aos aeroportos, navios e transportes terrestres, com fins de estimular uma consciência crítica frente à biopirataria e à responsabilidade dos animais humanos na origem e explosão de epidemias zoonóticas.
*Rodrigo Ramos Lima é doutorando no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)
[1] Imagem de Roger Culos, Wikimedia Commons, CC BY-SA 4.0.
Como citar este artigo: Fiocruz. Covid-19 e a relação entre humanos e animais: zoonoses e zooterapias. Texto de Rodrigo Ramos Lima. Saense. https://saense.com.br/2020/07/covid-19-e-a-relacao-entre-humanos-e-animais-zoonoses-e-zooterapias/. Publicado em 08 de julho (2020).