Jornal da USP
01/04/2021

(Imagem de Gerd Altmann por Pixabay)

Por Miguel Angel Buelta Martinez, professor titular da Escola Politécnica da USP

A pandemia de covid-19 rapidamente se alastrou pelo mundo e no início de 2020 chegou ao Brasil. O sistema de saúde teve que se mobilizar para enfrentá-la, e os hospitais tiveram que implantar mais leitos, inclusive de UTI, pois a doença apresentava uma alta taxa de internação dos infectados. Os sistemas de notificação de óbitos também passaram a ser sobrecarregados, principalmente para registrar os óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que é reconhecida como a principal síndrome clínica relacionada à covid-19.

A notificação de óbitos por SRAG é feita pelas vigilâncias epidemiológicas de cada município no Sivep-Gripe (Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe), disponível na plataforma OpenDataSUS do Ministério da Saúde.

A partir de meados de março de 2020, passaram a ser divulgados também os óbitos oriundos da covid-19, os quais, devido à sobreposição de critérios e ao fato de nem sempre os infectados apresentarem toda a sintomatologia para definição de casos suspeitos, eram enquadrados como SG (Síndrome Gripal) ou SRAG. Ou seja: enquanto nos anos anteriores apenas havia a notificação por SRAG, em 2020 eram apresentados para cada data de ocorrência os óbitos totais por SRAG e os que, entre eles, tinham como causa principal a covid-19.

Para afirmar que esse óbito foi por covid-19, era preciso que houvesse sido realizado o teste de identificação e este ter dado positivo. Verificou-se, ao longo da pandemia, que todo esse processo, até a completa notificação no Sivep, demandava um certo tempo. Os dados são divulgados semanalmente, atualizando-os pelas datas de ocorrência passadas. Notou-se que só após 60 dias, ou mais, esses valores já tinham uma estabilidade relativa suficiente para que pudesse ser realizado o cálculo do possível número de óbitos totais por covid-19.

O Ministério da Saúde divulga também, diariamente, no Painel Coronavírus, o número de óbitos por covid-19, mas por data de notificação . Há, portanto, uma diferença na data presente entre os óbitos por covid-19 apresentados pelo Sivep e pelo Painel Coronavírus. Mas retrocedendo, por exemplo, 60 dias, quando o Sivep já deve ter sido atualizado para aquela data, os dados são muito próximos.

Ao longo do ano de 2020, e continuando neste ano de 2021, o número de óbitos por SRAG teve um grande aumento em relação aos anos anteriores, mas uma parcela significativa não vem sendo identificada como causada por covid-19. E essa parcela não identificada continua sendo muito superior aos óbitos por SRAG nos anos anteriores a 2020. Este contexto permite supor que poderiam estar ocorrendo mais óbitos por covid do que aqueles oficialmente notificados, caracterizando-se assim a subnotificação, pois não se identifica nenhuma outra causa que possa estar levando a esse aumento considerável nos óbitos por SRAG.

Como mostrado no cálculo a seguir, esse grande aumento de óbitos por SRAG não identificados como sendo causados por covid-19 possibilita supor um aumento de até 38% nos valores dos óbitos por covid-19 notificados pelo Painel Coronavírus do Ministério da Saúde, para obter-se o valor real. Numericamente, levando para a data de 29/03/2021, pode-se ter 433 mil óbitos por covid-19, no lugar dos 314 mil notificados até essa data.

E esse número de 433 mil óbitos causados por covid-19 pode ser ainda maior, pelas seguintes razões:

– Considerar somente os óbitos com registro completo no sistema de saúde e descompasso na alimentação dos bancos de dados. Num país do tamanho do Brasil e com todas as limitações, muitos óbitos podem não ter passado por esse sistema e ter ocorrido sem notificação adequada.

– Considerar os óbitos que foram notificados ao longo ou perto da internação hospitalar. Mesmo ainda internados, muitos vêm a falecer quando não estão mais testando positivo para o vírus. Há diversos relatos de familiares informando, por exemplo, que o atestado de óbito, erroneamente, não consta como causa da morte a covid-19. Outros relatos dizem que muitos acometidos pela doença vêm a óbito bem depois, pelas sequelas deixadas, e não são computados como causados pela covid-19. Várias outras situações podem ser descritas. Isto ainda deverá ser analisado a longo prazo.

– No atual estágio da pandemia, com o sistema de saúde em colapso em vários lugares, não há como realizar a manutenção das notificações, não é possível testar todos que apresentam sintomas, e a subnotificação tende a aumentar.

Portal da Transparência do Registro Civil, deveria refletir essa situação de excesso de óbitos de forma mais clara. No entanto, isso só poderá ser feito com uma maior janela de tempo, quando houver uma atualização completa. A diferença maior de óbitos totais entre 2020 e 2019 até que está próxima aos novos óbitos notificados por covid-19. Deve-se supor que o isolamento social que houve em 2020 também deveria ter diminuído os óbitos por outras causas naturais. É conhecido o relato dos médicos, das várias especialidades, sobre a diminuição de pacientes em seus consultórios, principalmente por outros problemas respiratórios. Os óbitos subnotificados por Covid-19 no Portal da Transparência podem estar distribuídos nessas outras causas naturais de óbitos.

Cálculo da subnotificação de óbitos por covid-19

Rede Análise Covid-19 tem realizado esse cálculo desde o início da pandemia. Os dados filtrados para a SRAG têm sido fornecidos pelo grupo Foco no Covid. O método detalhado pode ser visto neste texto.

Exemplificando, com os valores divulgados pelo OpenDataSUS para 2019 e para 2020/2021, até 21/03/2021, e retrocedendo 80 dias, até 31/12/2020, obtém-se:

– Óbitos por SRAG em 2019: 5.276
– Óbitos por SRAG em 2020: 276.238
– Óbitos por SRAG, com confirmação de covid-19, em 2020: 197.557
– Óbitos por SRAG, sem confirmação de covid-19 em 2020: 78.681

Tomando como base os 5.276 óbitos por SRAG em 2019, tem-se, em 2020, 73.405 óbitos a mais que 2019 por SRAG que não foram confirmados por covid-19. Portanto, esses óbitos poderão ser sim óbitos por covid-19 que não foram notificados como tal.

O Painel Coronavírus notificou, até 31/12/2020, 194.949 óbitos por covid-19. Se considerarmos estes 73.405 óbitos a mais, os óbitos oficiais deveriam ser multiplicados por 1,38, indo para 269 mil óbitos por covid-19 em 2020. Considerando essa subnotificação de 38% persistindo até o dia 29/03/2021, pode-se chegar a 433 mil óbitos por covid-19, no lugar dos 314 mil notificados pelo Painel Coronavírus.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Podem ser mais de 430 mil: Uma estimativa para mortes por covid-19 no Brasil além das oficialmente notificadas.  Texto de Miguel Angel Buelta Martinez. Saense. https://saense.com.br/2021/04/podem-ser-mais-de-430-mil-uma-estimativa-para-mortes-por-covid-19-no-brasil-alem-das-oficialmente-notificadas/. Publicado em 01 de abril (2021).

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