Jornal da USP
03/05/2021
As populações da periferia estão abrindo portas para uma participação ativa e representativa nos centros urbanos, na medida em que dividem o protagonismo com outros setores da sociedade e garantem uma presença marcante nos debates brasileiros contemporâneos. No artigo Narrativas audiovisuais da periferia e disputas culturais em busca do povo, publicado na Significação: Revista de Cultura Audiovisual, o pesquisador Wilq Vicente proporciona uma visão ampla sobre as narrativas visuais, ou seja, imagens que contam histórias por meio de vídeos, mais especificamente aqueles realizados pela população moradora fora dos centros urbanos. Esses vídeos são meios de fala, de postura, enfim, de expressão de atuação social, na “reivindicação do protagonismo popular […], viabilizado mediante sua produção cultural”. O artigo busca analisar essa transformação na produção de vídeos a partir dos anos 2000.
Essas novas narrativas visuais florescem em um campo gerado pelo empenho de novas “políticas públicas culturais oficiais” que proporcionam debates propícios para a expressão de parcela da população, que ocorrem em um contexto de novos investimentos de políticas públicas, de novas posturas de várias ONGs “com enfoque na juventude das comunidades pobres, de novo espaço tecnológico para a difusão cultural”, de novos espaços para discussões inclusivas dos historicamente oprimidos “e da necessidade de reinvenção da indústria cultural neste contexto”. Enfatiza-se o estudo do diálogo das periferias com outras estruturas institucionais, políticas e sociais ao se tratar das desigualdades.
O autor afirma que é fundamental, para o entendimento de uma “política da representação”, pondo em pauta as questões: quem produz os vídeos? Qual a proposta dos autores? Qual é o público-alvo? Quais as “forças políticas envolvidas”? Como esses vídeos e seus autores interagem com “outras esferas de produção cultural” e como se integram no mundo das narrativas visuais em geral? Segundo Wilq Vicente, a questão “nossa realidade representada por nós mesmos” é abordada de diversas maneiras, tanto por coletivos nascidos em ONGs quanto em “produções independentes de coletivos artísticos da periferia”. São citadas iniciativas artísticas e vídeos como Videolência, cujo propósito é discutir as qualidades e os padrões das realizações audiovisuais das periferias.
Mesmo os realizadores formados em cursos de audiovisual, inseridos em produções dotadas de boa infraestrutura e divulgação, sempre se remetem à periferia no intuito de “compartilhar suas memórias, vivências e percepções locais”, incentivando a análise histórica de suas condições sociais, habitacionais e capacitando-os para transformarem suas realidades. Hoje, reconhece-se o audiovisual como instrumento de formação, de interação social e de cidadania, com o objetivo de motivar a “’diversidade cultural’, termo difundido pela Unesco a partir dos anos 1990. O autor ressalta a contribuição das primeiras provedoras de acesso gratuito à internet, em 2000, e da eclosão da banda larga, “permitindo pela primeira vez a transmissão de vídeo”, que se disseminou completamente com o Orkut e o YouTube em 2007.
Os realizadores denominam suas produções como “vídeo comunitário”, “cinema de quebrada”, “vídeo popular”, “vídeo militante” e “vídeo periférico”, exprimindo um discurso audiovisual particular e peculiar, manifestando polêmicas, inquietações e debates infindáveis em relação a “implicações políticas e estéticas de diferentes modos de atuação”.
O artigo chama a atenção para o fato de que, na década de 1970, o cinema brasileiro também se aproximou do povo, com o “cinema militante”, “concebido como meio de politização das massas”. Os novos produtores culturais começam, na última década, a apoderar-se de recursos e instrumentos que lhes eram proibidos, tais como “acesso à universidade, a recursos públicos e equipamentos culturais, entre outros”.
As produções audiovisuais atuais são participativas, coletivas, narram histórias reais e são realizadas com mão de obra local, contando com a criação de empresas de cinema para estimular as narrativas, assim estabelecendo elos com as comunidades, e vistas “como agentes culturais de transformação”. O audiovisual protagonizou um papel vital de “registro e difusão das lutas, da memória coletiva e do imaginário popular”, inexistentes nos meios dominantes, tornando-se um meio poderoso de mostrar e denunciar, às claras, a desigualdade e a injustiça social, de criar e vivenciar novas narrativas, “que são ao mesmo tempo estéticas e políticas”, e divulgá-las, revelando e relatando uma realidade que “a narrativa oficial e os discursos conservadores em voga buscam suprimir”.
Artigo
VICENTE, W. Narrativas audiovisuais da periferia e disputas culturais em busca do povo. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, São Paulo, v. 48, n. 55, p. 134-152, 2021. INSS: 2316-7114. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2021.169600. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/169600. Acesso em: 23 mar. 2021.
Contatos
Wilq Vicente – Mestre em Estudos Culturais pela USP, coordena oficinas de vídeo e foi curador de diversas mostras de filmes sobre audiovisual popular e periférico para o Cinusp, Kinoforum e Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. E-mail wilqvicente@gmail.com. [1]
[1] Texto de Margareth Arthur/Revistas da USP.
Como citar este texto: Jornal da USP. Vídeos produzidos na periferia são agentes culturais de transformação. Texto de Margareth Arthur. Saense. https://saense.com.br/2021/05/videos-produzidos-na-periferia-sao-agentes-culturais-de-transformacao/. Publicado em 03 de maio (2021).