Jornal da USP
07/02/2022

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Cientistas da USP, Unicamp, Unifesp e da Fundação Araporã realizaram, em parceria, um estudo nas margens do Rio Jacaré-Guaçu, em Araraquara, interior de São Paulo, onde extraíram elementos que ajudam a contar uma história de cerca de 115 mil anos de mudanças no clima, no solo e na ocupação humana. O grupo de pesquisadores, que inclui arqueólogos e geólogos, publicou os resultados do estudo em artigo na revista científica Quaternary International.

A pesquisa revela que, por volta de 13 a 9 mil anos, um clima de estações mais contrastadas gerou torrentes que acumularam cascalho no solo, que, por estar apenas em parte coberto por uma camada superficial de areia, serviu para as populações locais produzirem ferramentas de pedra. O estudo da evolução da paisagem da área em resposta a fatores naturais, como mudanças no nível do rio devido ao clima, ajuda a prever de modo mais seguro transformações futuras na região, inclusive causadas pela ação humana.

“O trabalho verificou como os vestígios de ocupação humana antiga, da ordem de milhares de anos atrás, previamente identificada em uma região do interior de São Paulo, se relacionam com as camadas sedimentares depositadas desde então, com os solos antigos, ou paleossolos, formados sobre essas camadas, nos momentos de pausa na sedimentação e com a evolução da paisagem”, afirma o professor Paulo César Fonseca Giannini, do IGc, que participou do estudo. O trabalho faz parte da pesquisa de doutorado de Pedro Michelutti Cheliz, do Instituto de Geociências da Unicamp, orientado pelo professor Francisco Bernardes Ladeira, especialista em estudo de solos antigos (paleopedologia).

A pesquisa foi desenvolvida numa área de cerca de 10 quilômetros quadrados (km2), nos arredores do sítio arqueológico Boa Esperança II, que fica entre Araraquara e Boa Esperança do Sul, no interior de São Paulo. “Esta área abrange a planície de inundação atual e terraços antigos, também da ordem de milhares de anos, do Rio Jacaré-Guaçu, um afluente da margem norte do rio Tietê”, descreve o professor. “A região pesquisada fica a cerca de 90 quilômetros (km) da confluência entre estes dois rios. Os terraços antigos são ‘suspensos’, isto é, mais altos que a planície do rio atual. São antigos bancos de areia que registram momentos em que o nível do rio esteve mais elevado.”

Os pesquisadores também estudaram o conteúdo em subsuperfície desses terraços, demonstrando que existem como se fossem terraços fluviais mais velhos, soterrados, aponta Giannini. “O trabalho apontou também variações nas características dos sedimentos que podem estar ligadas a mudanças de capacidade e competência de transporte do rio e, portanto, a alterações hidrológicas. Estas alterações hidrológicas, por sua vez, podem estar ligadas a mudanças de paleoclima”, diz. “Paleoclima são as condições climáticas como, por exemplo, incidência do sol e nível de chuvas, que imperavam em determinada área no passado, nesse caso, entendido na escala de tempo geológica, isto é, milhares a milhões de anos atrás.”

O professor destaca que um aspecto muito positivo do trabalho de campo é que ele foi transdisciplinar, envolvendo atividades e especialistas de áreas distintas como geologia, geomorfologia, pedologia e arqueologia. “Foram levantados cinco perfis topográficos, ao longo dos quais se procedeu à descrição de solos desenvolvidos sobre sedimentos. Amostras das camadas de solo foram extraídas para análises em laboratório, tais como tamanho de grão (granulometria), exame de torrões de solo ou sedimento ao microscópio ótico e determinação de teores de matéria orgânica e fósforo”, relata. “Fizemos também datações das areias, inclusive daquelas contendo artefatos arqueológicos, usando as instalações do Laboratório de Espectrometria Gama e Luminescência (Legal) do IGc.”

História evolutiva

“Graças ao estudo detalhado da estratigrafia, que é a maneira como os vários tipos de rocha se distribuem no tempo, espaço e umas em relação às outras, usando vários métodos, inclusive as datações, foi possível contar uma ‘historinha’ evolutiva da área desde cerca de 115 mil anos, quando há vários indícios de que o clima na região era mais úmido que o atual. Na base, há um terraço soterrado, com essa idade”, aponta Giannini. “Em seguida vem uma camada de cascalho, com cerca de 13 a 9 mil anos, que acreditamos tenha sido depositada por torrentes, em condições de clima com estações mais contrastadas que hoje, já que cascalheiras assim não mais se depositam ali atualmente, pelo menos não com esse porte. Depois, o nível do rio subiu, provavelmente sob clima mais úmido, e as cascalheiras foram cobertas por areias do terraço suspenso.”

Segundo o professor, um aspecto curioso revelado pelo trabalho, do ponto de vista arqueológico, é que a maior concentração de artefatos de pedra ocorre no topo do horizonte de cascalho ou nas areias imediatamente acima. “São fragmentos de rocha trabalhados pelas populações antigas, via desgaste ou percussão, com a finalidade de servirem como ferramentas para pesca, caça, preparo de alimentos e outras atividades cotidianas. Nos arredores de Araraquara e Ribeirão Preto, próximo aos rios Jacaré-Guaçu e Moji-Guaçu, têm sido identificados artefatos com diversas formas, achatados e com uma ou com duas pontas”, destaca. “Os artefatos são em grande parte feitos do mesmo tipo de rocha que compõe os cascalhos, o arenito, então é provável que as populações antigas usassem os seixos do rio como matéria-prima principal. Na época da ocupação, estes seixos possivelmente estavam apenas começando a ser cobertos por areia. O local de ocupação seria estratégico, com água corrente e material lítico, sem falar na boa visibilidade oferecida pelas encostas adjacentes ao rio.”

“Entre as principais contribuições da pesquisa estão a melhor caracterização da camada de cascalho, em grande parte escondida sob as areias do terraço suspenso, e as datações por luminescência, que permitiram refinar, em termos de tempo, as relações entre sedimentação e ocupação humana”, enfatiza Giannini. “Outro aspecto original do artigo é a detecção de certa tendência de aumento na concentração dos artefatos líticos nas superfícies que foram identificadas na estratigrafia como sendo de pausas na sedimentação, com exposição e formação de paleossolos. Esse é um exemplo interessante de diálogo entre a geologia e a arqueologia.”

De acordo com o professor, conhecer como a paisagem de uma área evoluiu em resposta a fatores naturais, tais como aumento ou redução do nível de um rio devido a mudanças climáticas, permite prever, com mais precisão e segurança, quais transformações esta área poderá sofrer em resposta a mudanças ambientais futuras, inclusive as já em andamento, induzidas pela interferência humana moderna. “Esta interferência tem-se mostrado agressiva e as alterações ambientais que ela já começa a gerar ocorrem numa intensidade e velocidade muito mais rápidas que as verificadas em média nas mudanças naturais”, observa. “Além disso, a pesquisa tem ajudado a estreitar os laços entre órgãos de Araraquara voltados à preservação do meio ambiente e do patrimônio arqueológico e a academia, o que favorece com que as descobertas feitas possam ter aplicação ou gerar iniciativas imediatas.”

As datações por luminescência do estudo aconteceram no Legal, laboratório montado no IGc em 2011 através de um projeto multiusuários da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), coordenado pelo professor Giannini, e que atualmente tem a supervisão do professor André Oliveira Sawakuchi, tendo a participação da técnica especialista Luciana Nogueira. Os resultados do trabalho são descritos na tese de doutorado de Pedro Michelutti Cheliz, geógrafo e geólogo, que reside na região de Araraquara. Participam também da pesquisa o professor Fabiano Pupim, da Unifesp, Thays Desireé Mineli, IGc, Juliana Alves Rodrigues e Robson António Rodrigues, arqueólogos da Fundação Araporã, de Araraquara. As atividades arqueológicas de campo contaram com a colaboração do professor Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), e de João Carlos Moreno de Sousa, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências (IB) da USP.

Mais informações: e-mail pcgianni@usp.br, com Paulo Cesar Fonseca Giannini. [2]

[1] Montagem feita por Guilherme Castro/Jornal da USP com imagens de Wisley Luiz e João Carlos Moreno de Sousa

[2] Texto de Júlio Bernardes

Como citar este texto: Jornal da USP. Solo na margem de rio revela história da evolução do clima e da ocupação humana. Texto de Júlio Bernardes. Saense. https://saense.com.br/2022/02/solo-na-margem-de-rio-revela-historia-da-evolucao-do-clima-e-da-ocupacao-humana/. Publicado em 07 de fevereiro (2022).

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