Fiocruz
10/06/2022

Muito além do vestibular
Pré-Vestibular social Brota na Laje. (Fotografia: Divulgação.)

De coincidências a vida está cheia. Por obra do destino ou do acaso, Joyce Rocha e Rayane Figueiredo tiveram os caminhos cruzados em mais de uma ocasião. Na primeira vez, em 2018, durante o processo seletivo do pré-vestibular social Santa Cruz Universitário, trocaram breves cumprimentos antes de começar a dinâmica de grupo, uma das etapas da seleção. Enquanto Joyce acabou entrando para a turma daquele ano, Rayane foi parar em outro cursinho comunitário, o da ONG SerCidadão, localizado na rua detrás da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, onde até hoje, no subsolo da igreja, acontecem as aulas do Santa Cruz Universitário.

Uma morando em Paciência e a outra em Santa Cruz, bairros vizinhos na Zona Oeste do Rio de Janeiro, Joyce e Rayane ainda se esbarraram em eventos extraclasse organizados em parceria com as turmas dos dois cursinhos. Mas foi apenas um ano depois, em 2019, que as duas se tornaram amigas, quando se encontraram nos corredores do décimo andar do campus Maracanã, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ambas haviam passado para o curso de Jornalismo. Eram agora universitárias.

Se a amizade da dupla foi modelada por coincidências, os rumos acadêmicos, profissionais e políticos se transformaram pelo pré-vestibular social — iniciativa que prepara estudantes de baixa renda para ingressar na universidade. “A SerCidadão foi e é essencial na minha vida, porque eu entrei sem ter noção dos meus direitos como aluna, como cotista e como cidadã”, diz Rayane, refletindo sobre a lucidez crítica e a sensação de pertencimento que o cursinho comunitário provoca nos alunos. “A SerCidadão me inseriu num mundo que eu não conhecia. Já tinha sofrido machismo, mas não sabia disso. Também nunca tive noção de que morava longe de pontos turísticos e de cultura, mas quando me contaram de um teatro que eu não conhecia, isso me fez questionar o porquê de nunca ter ido até lá”, complementa.

Esse tipo de estalo que Rayane descreve faz parte das premissas dos pré-vestibulares sociais, também chamados de comunitários ou populares. Construir um projeto político-pedagógico que extrapola o conteúdo exigido nas provas de vestibular é um dos grandes objetivos dos cursinhos. Isso porque, além de abrir as portas das universidades para jovens e adultos das mais diversas periferias do Brasil, essas iniciativas educacionais buscam, de maneira local, modificar uma realidade marcada por disparidades socioeconômicas e opressões estruturais que costumam traçar o destino de milhares de brasileiros e brasileiras.

Pelo menos é o que evidencia a dissertação de mestrado de Angela Cristina Santos, educadora e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (Nides), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nós, obviamente, estamos preparando para a universidade, mas esse não é o único foco”, define Angela, que já foi aluna, professora e coordenadora do Pré-vestibular Comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) — onde, a propósito, também estudou Marielle Franco, vereadora assassinada em 2018.

“Entendemos que a formação do sujeito é tão importante quanto a preparação para a universidade, já que vai afetar uma série de outros níveis da vida desse indivíduo”, reflete Angela. Esse aspecto também é ressaltado por Fernanda Lacombe, coordenadora do pré-vestibular do Movimento de Educação Popular +Nós, que conta várias turmas distribuídas pelo Rio de Janeiro. “A gente dá matéria, mas também é um trabalho de formação política muito forte, no melhor sentido da palavra”, acrescenta Fernanda, que também leciona as disciplinas de português e literatura no +Nós. A educadora costuma se perguntar: “Por que o pré-vestibular social existe? Por que ainda tem uma desigualdade tão grande dentro da universidade?”

Seja qual for a alcunha escolhida, os prés populares, comunitários ou sociais concentram seus esforços em torno, principalmente, da classe trabalhadora e da população negra e pobre do país, dando espaço também para outros grupos marginalizados socialmente, como a comunidade LGBTQIA+. “São essas pessoas que estão excluídas da educação. São elas que, muitas vezes, acumulam todas essas opressões”, afirma Fernanda. O próprio pré-vestibular do +Nós divulga abertamente em suas redes sociais que abraça pessoas trans e travestis no projeto — mais uma característica relevante, quando se sabe que o Brasil é o país que mais mata essas pessoas em todo o mundo, segundo relatório de 2021 da organização Transgender Europe (TGEU).

O CAMINHO DA REPORTAGEM

Esta reportagem foi realizada por estudantes de jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob a supervisão da jornalista, professora e repórter de Radis Ana Cláudia Peres. Entre fevereiro e maio de 2022, durante uma disciplina com caráter de laboratório, Carlos Vinícius Quirino, Júlia Amorim, Juliana Simão, Luíza Zauza, Maria Elisa Araújo, Nicole Higino, Nicole Santos e Rodrigo de Araujo mergulharam em todas as etapas do processo, desde a definição da pauta até apuração, redação e edição dos textos. A pauta dos cursinhos populares mobilizou todos. Entre os entrevistados, colegas de curso que passaram pelas salas de aula dos pré-vestibulares comunitários compartilharam suas histórias. Dois dos alunos que assinam a reportagem — Juliana e Rodrigo — também tiveram suas trajetórias iniciadas em cursinhos. A atualidade e relevância do tema renderam boas conversas sobre a democratização do acesso à universidade e sobre o jornalismo. O resultado você confere abaixo.

“APAGANDO INCÊNDIOS”

Os pré-vestibulares atuam como espaços de resistência: são iniciativas que evidenciam a deficiência das políticas públicas voltadas para a educação e revelam a imensa lacuna que existe entre as classes sociais no que se refere ao nível de escolaridade e ao acesso educacional. Os cursinhos garantem a gratuidade do serviço (ou o pagamento de taxas simbólicas) e trabalham, em sua grande maioria, em regime de voluntariado e mobilização militante — são ligados a coletivos, associações de moradores, instituições universitárias, ONGs, grupos religiosos e agremiações de professores, de graduandos e de trabalhadores da educação.

Fernanda reitera esse perfil cooperativo e com traços de movimento social dos cursinhos comunitários. Não por coincidência, o +Nós foi impulsionado em 2015 pelo coletivo Rua — Juventude Anticapitalista, uma organização que se reconhece como movimento social. “É a sociedade civil se juntando para suprir uma demanda que o Estado não foi capaz de dar conta”, afirma.

Nesse modelo também surgem dificuldades que prejudicam a permanência dos professores nos projetos e colocam em risco a própria existência dos cursinhos, uma vez que a manutenção de materiais, do corpo docente e dos espaços de sala de aula depende de doações, financiamento coletivo, ajudas vindas do próprio núcleo estudantil e docente e parcerias com outras instituições. O pré-vestibular Brota na Laje — uma das iniciativas ouvidas por Radis — funciona, por exemplo, no prédio da escola particular Oga Mitá, no bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, e se sustenta a partir de doações e parcerias, fornecendo lanche, material didático e atividades extraclasse para os estudantes moradores de favelas da região, principalmente do Morro do Borel.

“A gente apaga incêndios”, resume Fernanda. “Se um professor vira e fala: ‘não tenho passagem para ir’, nós conseguimos garantir uma passagem no dia”, completa. Ela comenta ainda sobre as dificuldades de organizar eventos para arrecadar fundos e manter as turmas do cursinho. “Dá muito trabalho fazer um pré-vestibular popular”.

Mas se a lista dos cursinhos como o Brota na Laje e o +Nós é imensa e não se limita aos escutados nesta reportagem, os perrengues também não se resumem ao funcionamento interno dos projetos. Os alunos dos cursinhos populares vivem uma realidade de obstáculos e sacrifícios para dar continuidade aos planos de futuro. É o caso de Laura Marques, de 21 anos, que poderia representar uma classe inteira. A ex-aluna do Oficina do Saber, pré-vestibular que funciona como projeto de extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF), conta que, enquanto se preparava para prestar o vestibular, por mais de uma ocasião precisou escolher quais matérias priorizar. “Tive dificuldade em pagar as passagens de ônibus. Naquele momento, somente minha mãe estava trabalhando, então era bem pesado custear as passagens todos os dias”, relata.

Adversidades como a enfrentada por Laura afastam outros inúmeros estudantes, tornando a evasão um dos problemas mais recorrentes dentro dos projetos. “A violência nas áreas onde os alunos residem, o custo da passagem e problemas familiares estão entre os principais motivos”, relata Claudio Alves sobre a experiência do Pré-Vestibular para Negros e Carentes Pastoral da Juventude (PVNC-PJ), onde trabalha como coordenador em Duque de Caxias, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As causas da evasão enumeradas por Claudio se repetem em outros espaços da educação, explica Angela. O que faz diferença, entretanto, é como os cursinhos vão enfrentar esse problema. “Nós já sabemos o que causa. Porém, há poucos trabalhos pensando sobre o que é possível fazer para resolver a questão”, aponta. Em sua pesquisa de mestrado, ela propôs estratégias para fortalecer os pré-vestibulares.

Foi daí que nasceram, em 2020, as cartilhas de estratégias para enfrentamento da evasão e de mapeamento dos pré-vestibulares populares do Estado do Rio de Janeiro. A proposta dos dois materiais é oferecer dicas e direcionamentos, assim como facilitar que essas iniciativas sejam localizadas por pessoas periféricas, voluntários e projetos similares. “A ideia não foi buscar saídas irreais, mas sim soluções a longo prazo, com os limites e as possibilidades de cada projeto”, diz Angela. ;Outras iniciativas com objetivos similares estão sendo realizadas Brasil afora. É o caso do recente levantamento que o Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva da Unicamp (Nepac) e a Ação Educativa – apoiados pelo Instituto Ibirapitanga – estão realizando para mapear, em todo o país, cursos de pré-vestibular com recorte racial.

OUTRAS LIÇÕES

É comum abrir o perfil das redes sociais dos cursinhos comunitários e se deparar com postagens chamando para aulas públicas, palestras, aulas interdisciplinares e de campo, todas vinculadas a temáticas socialmente relevantes, como racismo, gênero, sexualidade, direito à cidade, educação, segurança pública, saúde, cultura, entre outros assuntos. Além disso, as publicações trazem convocatórias para passeatas, campanhas de doação para projetos sociais e de financiamento interno dos cursinhos; chamadas para voluntariado e cursos de formação de educadores populares; e, claro, lembretes de outras atividades, como rodas de conversa, cine-debates, eventos culturais e visitas a museus e universidades.

Esse é o caso da Rede Emancipa, da Uneafro, do Pré-Vest Marielle Franco, para citar alguns cursinhos que funcionam no Rio de Janeiro, além daqueles ouvidos para esta reportagem. De acordo com Angela, por meio da oferta desses programas, é incentivado que os estudantes entendam que o espaço público pertence a todos. “E que nesses locais existem histórias que ainda não foram contadas, mas nós queremos contar. Assim, podemos nos conectar com eles”. A pesquisadora sustenta ainda que esse tipo de agenda estimula que a arte e a cultura “criem sinapses” que só a fala expositiva não cria.

Já incorporadas ao programa pedagógico regular dos pré-vestibulares populares, essas atividades, comumente chamadas de extracurriculares, despertam também o tipo de vínculo afetivo e reflexão interna que faz a diferença na vida pessoal e cultural dos alunos. “Muitos alunos saem do pré-vestibular e, suponha-se, não passam no vestibular, mas são pessoas mais felizes, pois se compreendem melhor”, diz. Além de construir laços fortes de amizade que serão suas redes de apoio, continua Angela, “começam a ter uma melhor relação com as famílias, pois passam a entender, por exemplo, as condições sociais da própria mãe, que em muitos casos é uma mulher negra e mãe solteira”.

A pesquisadora da UFRJ aponta ainda uma distinção entre os modelos educacionais seguidos pelos cursinhos populares e aqueles adotados pelas instituições tradicionais, privadas e públicas. Para Angela, os projetos tradicionais de educação têm “uma natureza militarizada”, que se volta para o conteúdo a partir de “macetes e estudos ininterruptos”. Ou seja, há um perfil duro e violento que não se encaixa na rotina e nas expectativas do público dos pré-vestibulares sociais, ela explica. “Se agirmos nessa perspectiva, os alunos vão embora”, compara. “A principal diferença é esta: temos um projeto político-pedagógico que entende os estudantes como seres humanos com desejos, medos e frustrações, que precisam ser inspirados e ouvidos”.

PANDEMIA E OUTROS DESAFIOS

Com a chegada da pandemia de covid-19 e a adoção das medidas de isolamento social, esse trabalho íntimo dos cursinhos comunitários foi amplamente prejudicado. Angela avalia que a chegada das aulas on-line, sem contato e sem atividades culturais, apenas com a transmissão de conteúdo, foi um dos motivos do aumento da evasão. “É difícil se manter convicto de seus desejos com o mundo se acabando, sem que você tenha ninguém para te orientar”, avalia a educadora. “Foram os piores anos. Nós nos sentimos de mãos atadas”.

Criado durante a pandemia por jovens de movimentos educativos judaicos de Nova Iguaçu, o cursinho “Partiu Facul” apresentou um cuidado extra. Bianca Meniuk, uma das coordenadoras do projeto, contou que, além do compromisso com a inclusão, havia ainda uma preocupação com a saúde física e mental dos alunos. Era preciso lidar com a falta de confiança, a depressão e mesmo a violência doméstica, questões que não raro afligiam os alunos. Segundo Bianca, o principal desafio enfrentado foi a taxa de desistência. Devido à situação de vulnerabilidade, os alunos precisavam conciliar o estudo e o trabalho, o que nem sempre era possível.

Para Fernanda, a pandemia abriu precedentes para um desmonte ainda maior da educação. “Criou uma ideia muito ruim de que a sala de aula não precisa existir e reforçou o pensamento de que a educação é instrução”, ressalta, chamando atenção para a piora na qualidade de vida que, segundo ela, a crise sanitária apenas acelerou. Por outro lado, a coordenadora sai do ensino remoto emergencial convicta de que o aprendizado se constrói em sala de aula, com orientações pedagógicas presenciais, aproximando cotidianamente educandos e educadores, sem o intermédio de uma tela fria.

ESPERANÇA

Fernanda levanta um contraponto esperançoso a respeito de outra vulnerabilidade dos cursinhos: o limite de sua atuação social. “O pré-vestibular popular não resolve todos os problemas da sociedade. Mas a educação pode ser um lugar ativo de apoio para a comunidade que está próxima dele”, avalia. Ao analisar a questão, Angela também reitera que tanto os pré-vestibulares sociais quanto os coletivos de educação popular realizam um trabalho essencial. Ela pondera, no entanto, que eles atuam junto a um público jovem já selecionado, uma vez que a maioria nem consegue chegar aos pré-vestibulares. “E quanto ao pessoal que ficou no meio do caminho?”.

Esse “pessoal” está na escola pública, a educadora responde, defendendo que só é possível concretizar as transformações desejadas pelos cursinhos populares com investimento e atuação governamental. “A escola pública tem suas deficiências, mas é ela que atende crianças, adolescentes, jovens e adultos”, analisa. “Infelizmente, são tantos problemas, tantas ausências que é preciso que existam esses outros projetos para nos mostrar caminhos alternativos”.

Enquanto promovem uma educação crítica e emancipadora, sem abandonar em alguma medida a educação tradicional, os cursinhos seguem abrindo caminho para milhares de jovens e adultos. “Somos os primeiros das nossas famílias a acessar a universidade pública e entendemos que essa foi uma conquista coletiva”, fazem questão de responder em uníssono Blenda Paulino, Iara Brandão, Larissa Leão, Luiz Henrique Souza, Natalia Oliveira, Renan Santos, Vivian Kristinny e Wendel Lima. Os nove jovens, juntos, hoje tocam o pré Brota na Laje.

Declaração similar é dita por Ana Clara Passos, ex-aluna do pré-vestibular comunitário da Maré. “Fui a primeira da minha família a ingressar em uma faculdade”, afirma a estudante de jornalismo da Uerj. “Depois disso, minha irmã, que não queria fazer faculdade, agora também quer cursar uma, assim como outras primas”. Exemplos como esses fazem parte da disputa pelos espaços de conhecimento e mobilizam a pirâmide socioeducacional de maneira prática e visível. Tudo isso à sombra de uma universidade onde, no passado, havia pouco espaço para pessoas pretas e periféricas. “Um corpo favelado naquele espaço pode ser uma mudança relativamente pequena para a maioria, mas uma mudança muito grande dentro de casa”, resume Ana Clara, hoje estagiária do site Intercept Brasil. [1]

[1] Texto de Luiza Zauza (Colaboração especial para Radis). Com reportagens de Carlos Vinícius Quirino, Júlia Amorim, Juliana Simão, Maria Elisa Araújo, Nicole Santos, Nicole Higino e Rodrigo de Araújo, estudantes de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob coordenação da jornalista de Radis e professora, Ana Cláudia Peres

Como citar esta notícia: Fiocruz. Muito além do vestibular.  Texto de Luiza Zauza. Saense. https://saense.com.br/2022/06/muito-alem-do-vestibular/. Publicado em 10 de junho (2022).

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