Fiocruz
12/12/2022
A exposição forçada a agrotóxicos é uma das faces do agronegócio baseado no desmatamento e na agressão à saúde de comunidades inteiras que vivem em uma relação de equilíbrio com a terra. “Em 2022, também se silenciam as vítimas ou os inocentes violados em seus corpos e territórios pelo uso de agrotóxicos, especialmente comunidades camponesas, de agricultores familiares, tradicionais e povos indígenas”, afirma o dossiê Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, divulgado em setembro de 2022 pela organização Terra de Direitos e pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida.
Em conversa com a Radis, para nossa reportagem de capa da edição de dezembro (243), uma das autoras do estudo, Naiara Bittencourt, advogada popular na Terra de Direitos e integrante do Grupo de Trabalho (GT) em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), destaca que, na maioria dos casos de violações coletivas causadas por agrotóxicos, não há a responsabilização dos agentes violadores e a reparação das vítimas. “Aviões passam por cima das comunidades despejando agrotóxicos, intoxicam pessoas e tornam insuportável permanecer naquele território”, explica. Para ela, esse tipo de contaminação pode minar a própria existência dessas populações — por isso, ela reforça que é vital a construção de mecanismos de pressão, fiscalização e reparação na Justiça.
Que direitos humanos são violados pela exposição forçada aos agrotóxicos?
São inúmeros os direitos que podem ser afetados pela exposição forçada a agrotóxicos, incluindo os direitos humanos sociais, econômicos, ambientais e culturais. Quando há uma contaminação ou intoxicação, por exemplo, pode-se ferir o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao trabalho digno e à moradia. Pode-se violar até o direito à liberdade econômica, por exemplo, quando há impedimento de cultivo de uma produção agroecológica, que gera renda aos agricultores, em razão das pulverizações constantes. Em relação às comunidades tradicionais, povos indígenas e camponeses, também pode ser ferido o direito aos diversos modos de fazer e viver, garantidos pela Constituição. Essas comunidades e povos têm modos de vida próprios de acordo com sua cultura e tradição. A maioria cultiva alimentos sem agrotóxicos e têm relações profundas com a natureza. Uma contaminação por agrotóxicos pode minar a própria existência dessas populações.
Na imensa maioria dos casos de violações coletivas causadas por agrotóxicos não há a responsabilização dos agentes violadores e a reparação das vítimas.
O relatório publicado recentemente chama atenção para o fato de que a exposição forçada aos agrotóxicos viola direitos coletivos, de comunidades inteiras. Que recursos essas comunidades encontram na Justiça para denúncia e reparação?
O que nós verificamos nessa pesquisa nacional é que ainda que tenhamos legislações e regulações sobre agrotóxicos, na imensa maioria dos casos de violações coletivas causadas por agrotóxicos não há a responsabilização dos agentes violadores e a reparação das vítimas. Inclusive a maioria dos casos sequer é acompanhada, fiscalizada ou judicializada, pela dificuldade de produção de provas. Hoje cabe às vítimas todo ônus da realização de uma denúncia, acompanhamento, pressionar por fiscalização e atuação dos órgãos e inclusive provar os danos que sofreram e até os detalhes da causa. Ou seja, as vítimas são penalizadas duas vezes, e não os violadores, que na maior parte das vezes não são sequer responsabilizados.
Como tem sido a resposta da Justiça brasileira? E que caminhos têm sido encontrados para mobilização e pressão?
Nós percebemos que as principais dificuldades encontradas por essas comunidades são a omissão ou ausência de fiscalização dos órgãos responsáveis, a dificuldade na produção de provas, a falta de atendimento imediato, a demora na realização de laudos técnicos, a falta de informações sobre canais de denúncia e até medo e ameaça às comunidades, normalmente já envolvidas em áreas de conflitos agrários ou socioambientais. Agora, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida tem buscado tornar os canais e as formas de denúncia mais acessíveis às comunidades, técnicos e lideranças. Foi criado um site em que é possível buscar as normativas e órgãos de fiscalização por estado (www.contraosagrotoxicos.org/como-denunciar). Nós esperamos que isso possa minimizar a dificuldade de acesso. Mas o ideal seria a criação de um sistema unificado de denúncias, com protocolos de atendimento e fiscalização bem organizados, evitando que o ônus todo recaia sobre as vítimas. Isso até já foi objeto da recente Resolução 24/22 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Aviões passam por cima das comunidades despejando agrotóxicos, intoxicam pessoas e tornam insuportável permanecer naquele território.
A pulverização aérea é uma das práticas que mais tem afetado as comunidades tradicionais, por causa da deriva do veneno para áreas de plantio e moradia — e até mesmo pelo uso como arma química contra essas populações. Como essa prática tem ameaçado o próprio direito à terra e o direito de existir?
Dos 30 casos que analisamos, 21 são de violações de direitos humanos a coletividades causadas pela pulverização aérea de agrotóxicos. Alguns destes casos são explícitos na utilização desta forma de pulverização aérea como arma química de expulsão territorial, o que foi verificado no Pará e no Maranhão, por exemplo. Aviões passam por cima das comunidades despejando agrotóxicos, intoxicam pessoas e tornam insuportável permanecer naquele território. A utilização de agrotóxicos por aeronaves nessas áreas também decorre de conflitos agrários ou socioambientais latentes. Nestes casos as vítimas, apesar de terem denunciado, apresentaram receio ou medo de represálias. Nós temos incentivado a realização de denúncias e busca de parcerias locais, regionais, nacionais e até internacionais para dar visibilidade, apoio técnico e incidência nessas aéreas. A mídia também pode ajudar na pressão pela responsabilização dos agentes violadores.
Você poderia citar algum (ou alguns) caso emblemático de violação de direitos pela exposição aos agrotóxicos e como foi o acesso à Justiça e a resposta?
Sim, dos 30 casos que analisamos, apenas 13 foram judicializados. Em nenhum caso as vítimas foram integralmente reparadas. Em três casos houve reparação parcial e em 27 casos não houve qualquer reparação pelos danos ou violações ocorridas. Em apenas 11 casos houve responsabilização dos agentes violadores. Um caso bastante emblemático é a ocorrência de pulverização aérea na Escola Rural de Rio Verde, Goiás, em maio de 2013. Foi pulverizado por aeronave o agrotóxico Engeo Pleno, produzido pela Syngenta, sobre uma cultura de milho vizinha à escola. Foram contaminadas 92 pessoas. Esse agrotóxico era autorizado apenas para aplicação terrestre. O Ministério Público Federal moveu duas Ações Civis Públicas, uma contra as empresas Syngenta e Aerotex e outra para obrigar a prefeitura e o estado a tomar providências que garantisse o acesso das vítimas ao tratamento e medicamentos. A empresa de aviação agrícola e a Syngenta foram condenadas em R$ 150 mil por danos morais coletivos. A Syngenta recorreu e a ação ainda não foi julgada no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
O relatório traz também outros casos que afetam comunidades tradicionais…
Outro caso mais recente é de pulverização aérea em cima de comunidades tradicionais de Buriti, no Maranhão, em abril de 2021, que atingiu diretamente crianças e adultos da Comunidade Carranca e Araçá. Nesse caso, o responsável pela pulverização foi autuado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente, com aplicação de multa. Uma Ação Civil Pública também foi ajuizada, mas ainda não há sentença, apenas uma decisão que determina a proibição de aplicação de agrotóxicos próximo à área e o pagamento do atendimento médico às famílias atingidas. Mas há casos que sequer são denunciados e outros em que não se percebe uma postura mais ativa dos órgãos competentes, como a pulverização de agrotóxicos por avião em Marabá, no Pará, no Acampamento Helenira Resende, em março de 2018. Houve instauração de Inquérito Policial e Inquérito Civil pelo Ministério Público do Meio Ambiente de Marabá, mas que foi arquivado por falta de provas, o que demonstra ineficiência dos órgãos atuaram no momento da violação, pois as intoxicações e danos às famílias efetivamente ocorreram.
Qual é o cenário atual de controle e fiscalização sobre agrotóxicos no Brasil?
Embora tenhamos uma estrutura normativa bastante robusta, na prática há pouca fiscalização e controle pelos órgãos responsáveis. A estrutura é descentralizada e a maioria dos estados disponibiliza pouca informação, poucos recursos e pouco corpo técnico qualificado para esse controle. Na maioria dos casos em que não houve judicialização, identificamos omissões ou demora na atuação estatal, especialmente no atendimento imediato da população atingida e na produção probatória da violação. É comum a resistência dos órgãos em atender às solicitações de coleta de amostras e análise de resíduos de agrotóxicos, assim como a notificação de intoxicação por agrotóxicos por profissionais de saúde, que é obrigatória.
E que ameaças estão colocadas pelo Pacote do Veneno (Projeto de Lei 6.299 de 2002, aprovado na Câmara dos Deputados em 9 de fevereiro de 2022, agora convertido no PL 1.459 de 2022)?
O Pacote do Veneno é um projeto de lei que objetiva substituir a atual Lei de Agrotóxicos por uma lei bem mais flexível e que facilita e acelera os registros de agrotóxicos no Brasil. Por exemplo confere superpoder ao Ministério da Agricultura, em detrimento da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], acelera e delimita prazos rápidos para registro, facilita o registro de produtos que causem danos à saúde e ao meio ambiente e dispensa o registro de agrotóxico produzido no Brasil que será exportado. Enfim, há uma série de alterações que vão na contramão de recomendações de cientistas e organismos internacionais. Ao invés de avançar em mecanismos de fiscalização, controle e reavaliações, o projeto representa um retrocesso socioambiental. Na prática poderemos consumir ou ser afetados por agrotóxicos mais perigosos.
Por fim, gostaria de trazer o seu relato profissional e destacar o papel dos advogados populares no apoio a essas comunidades e povos afetados.
A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida há muito tempo identifica que há uma lacuna de judicialização dos casos de violações causadas por agrotóxicos, uma dificuldade de realização das denúncias quando ocorre o dano e, por fim, de acesso à justiça. Por isso fizemos essa pesquisa coordenada pela Terra de Direitos em parceria com muitos advogados e advogadas da Rede Nacional de Advogados Populares. Nossas hipóteses se confirmaram e elencamos uma série de recomendações para os três poderes, em todas as escalas, facilitarem o acesso dessas vítimas à Justiça. Também elaboramos uma página para organizar informações de normativas e órgãos de denúncia, hoje totalmente dispersas. Esperamos que possa ajudar outros juristas, lideranças e técnicos a conseguirem denunciar com mais frequência esse problema nacional. O que vimos nos casos que estudamos é que aqueles com maior possibilidade de assessoria jurídica dos advogados populares foram aqueles com melhores decisões judiciais, como o caso de Goiás, Rio Grande do Sul e Maranhão. Isso se deve ao conhecimento dos conflitos locais, dos mecanismos de denúncia, da busca de parcerias dentro do sistema de justiça e de outras instituições da sociedade civil, mas sobretudo do contato direto e perene com as comunidades, respeitando seu tempo e seu contexto. [2]
[1] Foto: Agência Senado.
[2] Texto de Luiz Felipe Stevanim
Como citar esta notícia: Fiocruz. Guerra química. Texto de Luiz Felipe Stevanim. Saense. https://saense.com.br/2022/12/guerra-quimica/. Publicado em 12 de dezembro (2022).