UFRGS
25/11/2024
“Dize-me o que comes e te direi quem és.” Com esse e outros aforismos, Brillat-Savarin, juiz francês apaixonado pelos prazeres da mesa e que viveu entre 1755 e 1826, inicia a sua obra “A Fisiologia do Gosto”, considerada fundamental para a literatura gastronômica. Essa frase continua sendo muito atual ao nosso contexto, pois, mesmo com toda a globalização da alimentação, ainda conseguimos identificar as particularidades culturais relacionadas à comida e às práticas alimentares de diferentes povos.
Hoje vamos focar apenas nas questões culturais que podem resultar da reflexão sobre a célebre frase de Brillat-Savarin. Em outro momento oportuno, podemos pensar sobre as condições de alimentação das pessoas de acordo com as suas escolhas alimentares e como elas podem nos dar pistas sobre o contexto social em que estão inseridas.
Quando vamos conhecer algum lugar diferente, os pontos turísticos são aqueles que sempre vão figurar entre os locais que devem ser visitados, pois representam o supra-sumo da natureza, geografia e história da localidade. Inevitavelmente, a comida típica também recebe destaque, uma vez que aquilo que o povo come e considera ser o melhor para ser compartilhado também representa a essência da região visitada.
Nem sempre, entretanto, gostamos das comidas típicas dos diferentes lugares que vamos conhecer ou, então, acabamos preferindo a versão dessa mesma comida típica que é feita perto da nossa casa. Isso acontece porque, como dizem os antropólogos, aquilo que consideramos gostoso ou não, comível ou não, é determinado pela cultura em que estamos inseridos. E quando escrevo ‘cultura’ aqui também estou me referindo àquela mais regionalizada, como podemos perceber no Brasil e também em outros países.
Vamos pegar o exemplo da erva-mate. No sul do Brasil, por influência cultural indígena, principalmente dos guarani, bebe-se a infusão da erva-mate seca moída, resultando em grânulos de cor verde-vivo e do qual se produz um chá amargo, ao que damos o nome de chimarrão. Para os sulistas, é o amargo que dá sabor e valor à bebida. No entanto, no sudeste brasileiro, temos a presença da mesma erva-mate, mas em sua versão torrada e preparada de forma gelada, muitas vezes adocicada e adicionada de suco de limão. É o chá mate gelado, bebida famosa na beira da praia do Rio de Janeiro.
Mais ao centro-oeste, teremos a versão gelada do chimarrão, com a erva-mate de cor verde-vivo sendo adicionada de saborizantes, a fim de tornar mais refrescante a bebida para ser consumida no calor da região. Essa bebida, o tereré, é a influência da forma como os vizinhos paraguaios consomem a erva-mate. Nesse exemplo, o ingrediente básico é o mesmo, o mate; porém, dependendo da região em que ele está inserido e da cultura que o cerca, ele pode ser servido amargo e quente, gelado e refrescante, ou gelado e doce. O mesmo acontece com a farinha de milho, que, a depender do local e da cultura em que se encontra, pode produzir polenta, angu ou cuscuz.
Se, no contexto brasileiro, já conseguimos identificar alguns exemplos de diferenças culturais que cercam a alimentação, imaginem quando extrapolamos para o âmbito mundial? O resultado é ainda mais surpreendente. As formas de preparo e os tipos de arroz que encontramos, os talheres com os quais comemos (ou a falta de talheres, pois muitos povos usam apenas a mão para levar os alimentos à boca), os pratos principais que são servidos, assim como seus acompanhamentos, tudo isso tem base cultural para operar e, na maioria das vezes, possui alguma explicação histórica também.
Isso explica por que em alguns países há o consumo de insetos, o que em outros, como no Brasil, é considerado um tabu. Também explica a restrição à carne bovina na Índia, o que no estado do Rio Grande do Sul seria inimaginável. Além disso, todos esses exemplos nos ajudam a entender que a alimentação humana é muito complexa, e que mesmo havendo alegações de saúde sobre determinados alimentos e preparações, a questão cultural pode prevalecer quando do momento de as pessoas efetivarem as suas escolhas alimentares.
Às vezes é difícil compreender o motivo pelo qual os indivíduos que precisam passar por um tratamento nutricional não conseguem “aderir à dieta”. Os profissionais de saúde, entretanto, devem estar atentos não apenas às recomendações e às diretrizes dos órgãos de saúde, mas também ao contexto cultural das pessoas. Afinal, somos todos seres humanos e, como tais, temos preferências e pertencemos a algum lugar. A nossa comida fala sobre isso também. E, como muito bem lembrou Brillat-Savarin em outro aforismo, “o prazer da mesa pertence a todas as épocas, todas as condições, todos os países e todos os dias; pode se associar a todos os outros prazeres, e é sempre o último para nos consolar da perda destes”. [1], [2]
[1] Texto de Fabiana Tanabe
[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/a-influencia-da-cultura-na-alimentacao/
Como citar esta notícia: UFRGS. A influência da cultura na alimentação. Texto de Fabiana Tanabe. Saense. https://saense.com.br/2024/11/a-influencia-da-cultura-na-alimentacao/. Publicado em 25 de novembro (2024).