Jornal da USP
19/02/2025

As causas e os efeitos de uma sequela da covid-19 que pode aumentar o risco de problemas cardiovasculares são demonstrados em pesquisa de cientistas da USP e outras instituições brasileiras. Segundo o estudo, o vírus usa o colesterol existente no corpo para se multiplicar. Esse processo afeta a lipoproteína de baixa densidade (LDL), partícula que transporta o colesterol pelo sangue. A infecção também muda sua estrutura, podendo favorecer o acúmulo nos vasos sanguíneos e distúrbios relacionados, como AVC e infarto.
Combinando técnicas de física, biologia molecular e bioquímica, os pesquisadores constataram que a fase aguda da covid leva à formação de partículas de LDL menores e mais oxidadas. Ao mesmo tempo, a pesquisa descobriu que essas alterações permaneciam seis meses após a alta hospitalar, mantendo os riscos para a saúde dos pacientes. As conclusões do estudo foram relatadas no Brazilian Journal of Physics.
“Nosso grupo de pesquisa trabalha desde 1982 com fluidos complexos, como os cristais líquidos. Temos uma série de técnicas experimentais que analisavam as propriedades ópticas de materiais, que foram aplicadas a sistemas biológicos. Inicialmente, avaliamos as características de partículas de LDL oxidadas in vitro”, relata ao Jornal da USP o professor Antônio Martins Figueiredo Neto, do Instituto de Física (IF) da USP, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Fluidos Complexos (INCT-FCx), onde a pesquisa foi realizada. “Em 2005, uma colaboração com pesquisadores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP nos levou a aplicar essas técnicas para analisar o comportamento da LDL, quando foi identificado um marcador de partículas com alto teor de oxidação e baixo conteúdo de antioxidantes.”
De acordo com o professor do IF, com o início da pandemia da covid-19, em 2020, os pesquisadores decidiram investigar como o vírus poderia modificar a LDL. “Na época, alguns estudos preliminares mostraram que pacientes infectados com menores concentrações da partícula associada ao colesterol (LDL-c) tinham um pior prognóstico clínico”, afirma. “Para isso, foi preciso um novo estudo, reunindo médicos e profissionais da saúde do Hospital Universitário (HU) da USP”.
A professora Nágila Damasceno, do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, uma das coordenadoras do trabalho, explica que o objetivo era verificar se a qualidade da partícula era influenciada pela infecção aguda. “Também queríamos saber qual seria o comportamento em pacientes recuperados”, afirma. “Em condições normais, o colesterol transportado pela LDL garante o remodelamento e síntese de novas membranas celulares, e o excesso de colesterol e modificações oxidativas criam um ambiente favorável às doenças cardiovasculares. Entretanto, no contexto da pandemia, ninguém entendia o papel dessa partícula”.
Fator de risco
Os pesquisadores verificaram que o coronavírus usa o colesterol que é produzido no fígado, ou obtido a partir da alimentação, para gerar novas membranas celulares e se multiplicar. Além disso, a “tempestade metabólica” típica da covid-19 potencializa mudanças na estrutura da partícula. “É importante lembrar que o aumento de colesterol na LDL é um fator de risco clássico para doenças cardiovasculares”, ressalta a professora da FSP. “Ao contrário do que se podia imaginar, pacientes com covid-19 em sua fase aguda ou recuperados, mesmo tendo menor colesterol circulante, apresentaram LDL com características mais aterogênicas [que geram placas de ateroma nas artérias], ou seja, mais oxidada e com menor tamanho”.
Figueiredo Neto aponta que, para identificar as partículas oxidadas, foi usado um equipamento de Varredura-Z (do inglês Z-Scan). “Essa técnica usa um feixe de luz laser verde de alta intensidade. Quando ele atravessa a amostra, é medida a transmitância, ou seja, o quanto de luz passa por essa amostra. Após uma calibração com o sinal óptico da LDL de pessoas saudáveis, foi feita a comparação com pacientes na fase aguda da covid-19 e recuperados”, enfatiza. “Empregamos também a espectroscopia de UV visível, que mede a absorção de luz pela partícula em diferentes comprimentos de onda, e também o espalhamento de raios X em baixos ângulos, que dá informação sobre a estrutura da LDL normal e modificada pela infecção.”
“Verificamos que a qualidade da LDL medida pelos parâmetros ópticos era bastante inferior à de pessoas que não tiveram contato com o vírus. Ou seja, a covid-19 foi capaz de promover alterações na estrutura da LDL”, destaca o professor do IF. “A qualidade das amostras também foi avaliada no Laboratório de Bioquímica da Nutrição Aplicada às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) da FSP, por meio do sistema Lipoprint, que permite identificar sete subfrações de LDL, segundo o tamanho e conteúdo de colesterol”, acrescenta Nágila.
“Essas informações complementaram as análises feitas no IF, reforçando o papel negativo da covid-19 na qualidade da LDL e seu efeito duradouro mesmo após seis meses de alta hospitalar”, salienta a professora da FSP. “Os resultados são promissores e possivelmente aplicáveis a outras infecções, além de motivarem novas investigações sobre fatores associados à possível piora de qualidade da LDL, tais como tabagismo, obesidade e hipertensão.”
“O estudo sugere que a infecção pelo coronavírus é um fator agravante de risco cardiovascular. Ressaltamos a necessidade de acompanhamento do risco cardiovascular por um cardiologista 12 meses após uma infecção, assim como um nutricionista, que possa auxiliar no controle do peso e na readequação alimentar para melhoria do controle dos lipídeos e, particularmente do LDL-c”, recomenda Nágila. “A infecção pelo covid-19 tornou-se uma realidade e um desafio perene à ciência e, mesmo com importância da vacinação, o risco cardiovascular de pacientes infectados é algo a ser considerado nos protocolos assistenciais dedicados à fase aguda e durante a fase longa”, observa Figueiredo Neto.
A professora da FSP destaca que a abordagem da pesquisa foi possível devido a um trabalho multidisciplinar que incluiu pesquisadores do IF, FSP e da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, além da equipe assistencial do HU, que teve papel decisivo na triagem dos pacientes. Nágila Damasceno destaca ainda o papel de Alessandra Goulart, médica do HU e atual professora da FSP, do professor Ricardo Ambrósio, da FCF, chefe do Laboratório de Análises Clínicas do HU, e equipes envolvidas como sendo uma etapa crucial para executar um estudo dessa natureza em plena pandemia.
Mais informações: afigueir@if.usp.br, com Antonio Martins Figueiredo Neto, e nagila@usp.br, com Nágila Damasceno [1], [2]
[1] Texto de Júlio Bernardesv
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/covid-19-sequela-ligada-ao-colesterol-pode-aumentar-risco-de-problemas-cardiovasculares/
Como citar este texto: Jornal da USP. Covid-19 Sequela ligada ao colesterol pode aumentar risco de problemas cardiovasculares. Texto de Júlio Bernardes. Saense. https://saense.com.br/2025/02/covid-19-sequela-ligada-ao-colesterol-pode-aumentar-risco-de-problemas-cardiovasculares/. Publicado em 19 de fevereiro (2025).