UFRGS
12/08/2025

Uso de inteligência artificial auxilia no diagnóstico precoce do câncer de boca
Foto: Marcação de células, núcleos e aglomerados celulares a partir do reconhecimento do sistema Papanicolau Slide – Image Examiner (Divulgação)

O câncer oral tem cura, desde que diagnosticado cedo. É o que afirma Pantelis Varvaki Rados, professor do Programa de Pós-graduação em Odontologia da UFRGS e coordenador de um projeto de pesquisa voltado ao desenvolvimento de modelos para investigar a suspeita inicial do câncer de boca. Usando a inteligência artificial (IA), os profissionais contam com uma ferramenta tecnológica que ajuda a identificar marcadores celulares que mostrem o risco de desenvolvimento da doença antes mesmo do surgimento de lesões mais graves.

O câncer de cavidade oral representa um dos 10 tipos mais recorrentes no país, sendo que a estimativa é de que mais de 15 mil novos casos sejam diagnosticados por ano, segundo estudo do Instituto Nacional de Câncer (INCA). O mesmo estudo mostra que mais de 6 mil pessoas morrem anualmente no Brasil em decorrência da doença. O uso de tabaco e álcool são os principais fatores para o desenvolvimento da enfermidade, além de higiene bucal inadequada, exposição excessiva ao sol (especialmente para câncer labial) e infecção pelo vírus HPV.

A pesquisa coordenada por Pantelis foi dividida em duas fases. A primeira realizou a contagem manual de regiões dos cromossomos ligadas à multiplicação celular, chamadas de regiões organizadoras nucleolares (NORs). Quando as NORs aumentam em número, isso indica que a célula pode estar sob influência de agentes carcinogênicos ,tornando-se um biomarcador útil para a triagem de risco.

A contagem das NORs foi feita célula por célula pelos pesquisadores a partir de lâminas citológicas coletadas ao longo dos anos. Isso serviu para estabelecer um padrão de referência confiável, a partir do qual seria possível comparar a performance por meio de um sistema automatizado.

“A célula marcada com maior número de NORs está em maior proliferação. E aí está pronto o caminho para, daqui a pouco, aparecer uma alteração inicial do câncer”Pantelis Varvaki Rados

Para realizar a contagem, foi usada, inicialmente, uma técnica específica de coloração com prata. Essas regiões do núcleo celular só se tornam visíveis com esse tipo de marcação – sem esse processo, as NORs passam despercebidas sob o microscópio. “As regiões organizadoras nucleolares aumentam de número quando a célula sofre impacto de agentes cancerígenos. Mas elas só aparecem com a marcação por prata. Por isso o nome AgNOR: ‘Ag vem de prata na tabela periódica”, explica Pantelis.

Na segunda fase, a Inteligência Artificial foi utilizada como ferramenta de automatização de análise das lâminas citológicas. As imagens dessas lâminas, digitalizadas previamente, foram processadas pelo sistema AgNOR Slide-Image Examiner, treinado para identificar e contar automaticamente as regiões AgNOR em cada núcleo celular.

Dentre os resultados alcançados, o estudo destaca a alta concordância entre humano e sistema. Por outro lado, a principal diferença entre humanos e IA foi evidenciada: o tempo de trabalho. Com o uso da IA, a realização da análise desta pesquisa caiu de 67 horas para 20 minutos.

Ainda assim, Pantelis explica que a IA não substitui o especialista humano, mas acelera o processo e permite triagens em larga escala com mais eficiência. O sistema identifica alterações citológicas suspeitas e, então, o humano atua como validador e condutor do diagnóstico clínico – isto é, os processos se complementam.

“A gente vai ter um volume alto de pessoas com parâmetros citológicos analisados… Saiu do padrão, o humano revisa e avalia o paciente de forma individualizada”Pantelis Varvaki Rados

Resultados

O principal achado da pesquisa, e um dos marcos do estudo, foi a média estatística de 3,69 AgNORs por núcleo celular. Esse ponto de corte foi definido como o número que, caso encontrado em uma amostra, deve ser considerada suspeito. O índice não é um diagnóstico definitivo, mas um indicador de risco aumentado.

A lógica é semelhante à de outros parâmetros clínicos, como pressão arterial ou glicemia: um valor acima do esperado acende o sinal de alerta. “Esse número é mais ou menos como a pressão 13 por 8. Se estiver acima disso, esse paciente precisa ser observado com mais atenção”, explica Pantelis.

Além da coloração com prata para visualização dos AgNORs, o estudo também incorporou outro método conhecido e amplamente utilizado na saúde pública: a coloração de Papanicolau , comum em exames ginecológicos. No contexto da pesquisa, ela foi adaptada para identificar alterações morfológicas em células da mucosa bucal.

A vantagem está no custo: enquanto os reagentes com prata podem custar milhares de reais, o método de Papanicolau é muito mais acessível e viável para unidades básicas de saúde. “Um pote de prata custa cerca de 3 mil reais. O reagente do Papanicolau tem um valor bem mais baixo e viável para adquirir”, compara o professor.

Para Pantelis, a maior promessa do projeto é permitir que exames simples, acessíveis e rápidos ajudem a mapear o risco individual de pacientes. A proposta não substitui exames clínicos nem biópsias, mas oferece uma nova forma de triagem e vigilância em saúde pública.

“A citopatologia é uma ferramenta de prospecção. A ideia é identificar quem está em risco maior para desenvolver o câncer e acompanhar essa pessoa de perto”Pantelis Varvaki Rados

Desafios e futuro

Apesar dessas conquistas, o projeto também enfrentou barreiras. Desenvolvido durante a pandemia da covid-19, o trabalho exigiu criatividade para contornar o distanciamento social, escassez de recursos e o impacto emocional de seguir produzindo ciência em tempos de crise. Ao falar sobre isso, o professor Pantelis lembra do caminho percorrido pelo grupo:

“A melhor coisa que a gente tem aqui na Universidade são as nossas cabeças. Trabalhamos em plena pandemia, com pouco recurso, e mesmo assim conseguimos levantar um modelo novo em pouco mais de um ano”Pantelis Varvaki Rados

Além da falta de verbas robustas, há outras barreiras técnicas e estruturais, como a ausência de um escâner de lâminas, equipamento que poderia automatizar ainda mais o processo. Outro entrave é o desafio logístico de expandir o modelo para diferentes centros de pesquisa.

O grupo, agora, busca cruzar os dados clínicos dos pacientes com os dados citológicos coletados, ampliando o poder preditivo da ferramenta. A ideia é, no futuro, aplicar a inteligência artificial para rastrear grupos de risco em larga escala, especialmente em unidades básicas de saúde.

Parceria

A linha de pesquisa sobre citopatologia bucal é antiga na UFRGS, iniciada por volta de 1992. A proposta era adaptar, para a boca, técnicas consolidadas no diagnóstico precoce de câncer de colo de útero. Por conta da pandemia de covid-19, o processo de associação com IA foi acelerado em parceria com o Instituto de Informática.

A aliança com o Instituto de Informática da UFRGS foi decisiva para o desenvolvimento desse sistema inteligente, um dos primeiros no Brasil a utilizar inteligência artificial para a leitura automática de lâminas citológicas na detecção precoce do câncer de boca. “A pandemia foi um período em que a gente conseguiu avançar muito na parte celular, porque se tinha um acervo grande de lâminas”, conta Pantelis.

Mesmo com as dificuldades, o pesquisador reforça que a união de diferentes áreas do conhecimento e a dedicação de estudantes e professores foram decisivas para fazer o projeto avançar. E mais do que isso: mostrar que ciência de qualidade se faz com coragem, colaboração e uma boa dose de resistência. [1], [2]

[1] Texto de Marcelo Rosinski

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/uso-de-inteligencia-artificial-auxilia-no-diagnostico-precoce-do-cancer-de-boca/

Como citar esta notícia: UFRGS. Uso de inteligência artificial auxilia no diagnóstico precoce do câncer de boca. Texto de Marcelo Rosinski. Saense. https://saense.com.br/2025/08/uso-de-inteligencia-artificial-auxilia-no-diagnostico-precoce-do-cancer-de-boca/. Publicado em 12 de agosto (2025).

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