Jornal da USP
02/09/2025

Uma nova técnica de preparação de pulmões para transplante, testada por pesquisadores brasileiros e canadenses, pode aumentar significativamente o número de órgãos disponíveis para cirurgia, que hoje representam apenas 20% do total de doações devido a lesões preexistentes. O método faz a reparação de órgãos lesionados, lavados e preservados na temperatura de 10°C, por meio da aplicação de uma proteína, o peptídeo Angiotensina-(1-7).
Experimentos com animais mostraram que a técnica reduz os danos causados por falta de circulação sanguínea (isquemia) e aumento acentuado do fluxo de sangue (reperfusão), preservando a saúde do enxerto e melhorando a oxigenação do pulmão transplantado. As conclusões do trabalho estão em artigo publicado na revista científica Journal of Heart and Lung Transplantation.
De acordo com o autor do trabalho, Paolo Oliveira Melo, que pesquisou o tema em sua tese de doutorado na Faculdade de Medicina (FM) da USP, a inclusão de novas categorias para o transplante, inclusive de pacientes com falência pulmonar persistente associada à covid-19, favoreceu um crescimento vertiginoso das listas de espera. “Até março de 2025, por exemplo, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) registrou 348 pessoas com necessidade de receberem um pulmão”, relata ao Jornal da USP. “Apesar da alta demanda e na contramão do que acontece com outros órgãos, neste mesmo período foram realizados apenas 37 transplantes de pulmão no Brasil, em quatro Estados: Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará.”
O baixo número de pulmões considerados viáveis para o processo de doação ainda representa uma barreira significativa para os pacientes que precisam de um transplante para salvar suas vidas”, ressalta o pesquisador. “Para superar essa carência de órgãos, são necessárias formas criativas de resgatar os 80% de pulmões de doadores não utilizados que são considerados marginais devido a lesões preexistentes.”
Oliveira Melo explica que durante a captação pulmonar para o transplante, a lavagem do órgão com uma solução de preservação a 4°C é uma etapa essencial para garantir sua viabilidade. “Ela remove o sangue residual, prevenindo a formação de microtrombos [entupimento dos vasos sanguíneos] e reduzindo a resposta inflamatória”, relata. “Também promove hipotermia protetora, diminuindo o metabolismo celular e preservando a integridade tecidual.”
“Além disso, a lavagem distribui uniformemente a solução de preservação, facilita a remoção de compostos tóxicos acumulados e permite uma melhor avaliação macroscópica do órgão”, acrescenta o pesquisador. “Esses cuidados são fundamentais para minimizar a lesão de isquemia-reperfusão e otimizar os desfechos do transplante.”
Reparação
A pesquisa avaliou se a reparação pulmonar a 10°C, facilitada por agentes terapêuticos, também poderia ser possível durante a lavagem do pulmão, feita com uma solução eletrolítica extracelular para remover detritos, na captação do órgão. “Nesse contexto, nós optamos por enriquecer a solução de preservação com Angiotensina-(1-7), um peptídeo amplamente sugerido como agente de proteção do parênquima pulmonar”, diz Oliveira Melo, “durante o período em que os pulmões são armazenados em condição hipotérmica estática (10°C), antes do transplante”.
“Inicialmente desenvolvemos um modelo experimental de lesão pulmonar em ratos, para simular as condições de pulmões no momento da captação do órgão para o transplante”, descreve o pesquisador. “Em seguida, testamos as diferentes estratégias de preservação comentadas anteriormente.”
Os pesquisadores verificaram que os pulmões “lavados” com solução enriquecida com Angiotensina-(1-7) e condicionados à 10°C por 12 horas apresentaram função significativamente melhor após o transplante, em comparação com os pulmões que receberam apenas a solução de preservação padrão. “Esses achados indicam que o peptídeo pode potencializar os efeitos benéficos da preservação hipotérmica, promovendo uma recuperação mais eficiente do enxerto”, observa Oliveira Melo.
“Também identificamos menor expressão de marcadores inflamatórios e de dano oxidativo nos tecidos dos pulmões condicionados com a Angiotensina-(1-7), sugerindo uma ação protetora mesmo na presença de estresse celular”, salienta o pesquisador. “Finalmente, observamos alterações em genes relacionados à integridade e reparo mitocondrial, o que indica que essa abordagem pode ativar mecanismos de controle de qualidade celular importantes no contexto do transplante.”
Segundo Oliveira Melo, para a técnica ser aplicada clinicamente, ainda são necessários passos importantes. “Primeiro é fundamental realizar estudos em modelos animais de maior porte, que se aproximem mais da fisiologia humana e permitam uma avaliação mais precisa de sua segurança e eficácia”, diz. “Estudos futuros devem avaliar se essa abordagem pode potencializar ainda mais a recuperação e qualidade dos enxertos. Somente após esses testes pré-clínicos e a validação da eficácia em protocolos mais próximos da realidade clínica será possível considerar o uso da técnica em pacientes.”
O estudo foi conduzido por meio de uma colaboração internacional entre os grupos de pesquisa do professor Paulo Manuel Pêgo Fernandes, da FMUSP, e Marcelo Cypel da University Health Network (UHN), afiliada à Universidade de Toronto (Canadá). O trabalho teve como autor principal Paolo Oliveira Melo, como parte de seu doutorado pela FMUSP. Atualmente o pesquisador realiza seu pós-doutorado no grupo do professor Cypel em Toronto, dando continuidade às investigações na mesma linha de pesquisa.
Mais informações: e-mail paololiveiramelo@gmail.com, com Paolo Oliveira Melo [1], [2]
[1] Texto de Júlio Bernardes
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/tecnica-tem-potencial-para-recuperar-pulmao-lesionado-para-uso-em-transplante/
Como citar este texto: Jornal da USP. Técnica tem potencial para recuperar pulmão lesionado para uso em transplante. Texto de Júlio Bernardes. Saense. https://saense.com.br/2025/09/tecnica-tem-potencial-para-recuperar-pulmao-lesionado-para-uso-em-transplante/. Publicado em 02 de setembro (2025).