Tábata Bergonci
27/01/2016
Por décadas, cientistas acreditaram que toda a informação que um indivíduo poderia transmitir aos seus descendentes estava em sua sequência de DNA (todo indivíduo tem DNA resultado da união do DNA do óvulo com o do espermatozoide de seus pais). Com essa premissa, podíamos inferir que nossa interação com o ambiente poderia afetar-nos, mas não aos nossos descendentes. Exemplificando, sabemos que uma longa exposição ao sol pode danificar nossa pele e, inclusive, levar-nos ao desenvolvimento de câncer. Porém, uma extensa exposição ao sol não é capaz de modificar a sequência de nosso DNA e, sendo assim, poderíamos concluir que os danos causados pelo sol não seriam passados hereditariamente.
Nos últimos anos, entretanto, pesquisadores têm encontrado muitos exemplos de modificações na estrutura dos genes que não alteram a sequência do DNA, mas que também são passadas para as próximas gerações, a chamada herança epigenética. Atrelado a isso, recentes estudos vêm mostrando que estresse, dieta, e outros fatores ambientais experimentados pelo indivíduo podem modificar a carga genética de seus descendentes.
Para entender melhor como essa transmissão epigenética acontece, pesquisadores estabeleceram um modelo em camundongos [2]. Eles alimentaram animais machos com uma dieta “gorda” (60% de gordura na dieta) ou normal (10% de gordura na dieta) durante seis meses. Como esperado, os machos alimentados com a dieta gorda se tornaram obesos, intolerantes à glicose (açúcar) e resistentes à insulina (sintomas que podem levar ao desenvolvimento de diabetes); enquanto machos com alimentação normal não manifestaram esses sintomas. Em seguida, espermatozoides dos dois grupos de machos foram injetados em óvulos e os embriões gerados foram transferidos para mães de aluguel. Os filhotes masculinos foram alimentados com a dieta normal durante 16 semanas e, durante todo o experimento, os filhotes dos dois grupos não apresentaram diferenças de peso. Entretanto, os filhotes dos camundongos obesos apresentaram intolerância à glicose e resistência à insulina com apenas 7 semanas de idade, sendo esse quadro agravado em 15 semanas. Dessa maneira, o estudo revelou que o espermatozoide transfere transtornos metabólicos adquiridos pelo pai para a prole.
Quando os pesquisadores foram analisar as diferenças moleculares entre espermatozoides dos dois grupos de pais (obesos e saudáveis), eles detectaram que os tipos e quantidade de RNA (moléculas que, entre outras funções, são responsáveis pela síntese de proteínas e regulação da expressão dos genes) variavam entre os camundongos com dieta gorda e normal. Essa variação está ligada a diferenças na expressão de mais de 1000 genes entre os dois grupos. Essa mesma diferença foi encontrada nos filhotes. Investigando com mais detalhe alguns genes alterados, eles viram alterações na expressão de genes responsáveis pela regulação de células do pâncreas, muitos desses associados com a condição de diabetes. Resultados semelhantes foram encontrados por outro grupo de pesquisadores [3], que verificaram que machos com uma dieta pobre em proteína têm níveis de RNA do espermatozoide afetado, modificando a expressão de genes relacionados à produção de colesterol. Novamente, essa mesma alteração na expressão foi encontrada nos filhotes desses machos.
Nos dois estudos, os pesquisadores concluíram que a dieta masculina altera a expressão de genes nos espermatozoides e essa alteração é transferida para o embrião. Sendo assim, quando for comer aquele hambúrguer gorduroso, não pense só em você, pense também no que você estará deixando para os seus futuros filhos! [4]
[1] Crédito da imagem: Oscar Rethwill (Flickr)/ Creative Commons (CC BY 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/rethwill/8366985388/.
[2] Q Chen et al. Sperm tsRNAs contribute to intergenerational inheritance of an acquired metabolic disorder. Science 351, 397 (2016).
[3] U Sharma et al. Biogenesis and function of tRNA fragments during sperm maturation and fertilization in mammals. Science 351, 391 (2016).
[4] Artigo relacionado: Estresse envelhece os genes!
Como citar este artigo: Tábata Bergonci. Você é o que seu pai come! Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/01/voce-e-o-que-seu-pai-come/. Publicado em 27 de janeiro (2016).
Ótimo texto!
Dá pra supor que o óvulo de mães obesas teriam o mesmo efeito, então?
Interessante é que esses artigos também contribuem para o entendimento de como doenças como diabetes tipo 2 e obesidade persistem ao longo da evolução. Por serem potencialmente debilitantes e impactantes da capacidade do indivíduo de reproduzir (fitness), era de se imaginar que essas doenças ficariam cada vez mais raras… Porém, parece que uma vez na família, sempre na família…
Obrigada, Matheus!
Sim, além do já “senso comum” conhecimento de que a dieta da mãe precisa ser controlada para garantir a saúde, de um modo geral, da mãe e da criança, já existem estudos mostrando que existe regulação epigenética transmitida da mãe para a prole.
Um estudo de 2014, publicado na Nature Communications por Dominguez-Salas e colaboradores, estudou mais de duas mil mulheres grávidas na Gambia, com dois grupos diferentes de dieta (a alimentação na Gambia muda drasticamente entre os períodos de seca e chuvoso), e descobriu-se que diferentes dietas apontavam diferentes regiões de metilação no DNA, silenciando diferentes genes (o estudo em questão focou na expressão de seis genes ligados, de alguma forma, a níveis de vitaminas do complexo B no sangue da mãe).
Concordo com seu comentário de aspecto evolutivo, algumas disfunções metabólicas ganhadas pelo indivíduo, como a obesidade, que pareceriam não herdáveis, estão cada vez mais sendo associadas com herança epigenética.
Interessantíssimo o seu texto, Tábata. No final das contas, Lamark não estava tão errado assim.
Muito obrigada, Diogo. Pois é, apesar de várias das ideias de Lamarck não serem cientificamente aceitáveis, ele contribuiu muito para que Darwin aperfeiçoasse sua teoria. E, claro, a parte em que Lamarck diz que “as transformações adquiridas por uma espécie seriam transmitidas para seus descendentes”, hoje já é perfeitamente explicável.