Antônio Murilo Macedo
08/12/2017

Ilustração artística da seta do tempo. [1]
Quando recebemos um copo de cerveja gelada e o colocamos na mesa sabemos que a cerveja espontaneamente esquentará com o tempo. Se alguém esbarrar na mesa e derrubar o copo no chão ele quebrará em vários pedaços e a cerveja vai se espalhar no chão. A ordem desses eventos nos parece tão natural que sequer paramos para pensar sobre o que estaria impedindo que eles ocorressem espontaneamente em ordem inversa. Suponha que um amigo tenha filmado tudo com o celular e ao receber o filme você decide assisti-lo de trás para frente. No início você sentirá uma sensação estranha, mas depois vai provavelmente rir do absurdo que seria a vida se o filme passado de trás para frente fosse possível no mundo real.

Parabéns, você acabou de descobrir a “seta do tempo”, uma das mais profundas consequências da segunda lei da termodinâmica. O termo seta do tempo é atribuído ao astrônomo inglês Arthur Eddington que o usou pela primeira vez em 1928 em seu livro “The Nature of the Physical World”. Essencialmente, a seta do tempo estabelece o sentido temporal natural para uma sequência de eventos na escala macroscópica. Se vemos um filme de um touro bravo entrando em uma loja de cristais, saberemos instintivamente se o filme está rodando no sentido correto ou de trás para frente. Ok, mas se a seta do tempo é uma consequência da segunda lei da termodinâmica, então não há nada que possamos fazer para invertê-la, pois as leis da termodinâmica estão acima de todas as outras, são leis pétreas da natureza, certo? Bem, é aqui que a mecânica quântica mais uma vez nos surpreende.

O conceito chave da segunda lei da termodinâmica é a entropia, que pode ser intuitivamente entendido como uma medida de desordem. A seta do tempo seria então uma das formas de enunciar a segunda lei da termodinâmica, mais especificamente, a seta indicaria o ordenamento dos eventos em sequência de estados de equilíbrio termodinâmico de modo que a entropia não diminui, ou seja, o sistema evolui espontaneamente para um estado mais desordenado (maior entropia). Uma forma muito elegante de formular a segunda lei da termodinâmica é usando o conceito de informação. Neste contexto, entropia seria uma medida da informação faltante para que pudéssemos fazer uma descrição microscópica detalhada e determinística da evolução do sistema. Para dar uma ideia do conceito de informação faltante, considere um sistema formado por uma moeda e 8 caixas colocadas lado a lado. A moeda está em uma das caixas, mas não sabemos qual. O número mínimo de questões binárias (do tipo sim ou não) que precisamos fazer para sabermos com certeza em que caixa a moeda está é exatamente a informação faltante neste problema. A estratégia vencedora identifica onde está a moeda com apenas 3 perguntas binárias, ou seja, a informação faltante é 3.

Na física quântica o conceito clássico de informação faltante é substituído pela noção de informação quântica faltante. A principal diferença entre os dois conceitos é que na versão quântica o estado de informação faltante nula não significa que podemos fazer uma descrição microscópica determinística do sistema, pois a aleatoriedade intrínseca dos eventos quânticos individuais não pode ser contornada. Isto, no entanto, não impede, em princípio, que a seta do tempo quântico aponte sempre na mesma direção da seta de tempo clássico. E de fato, isto é o que é observado corriqueiramente em experimentos. Todavia, a mecânica quântica permite correlações não locais que contribuem para a informação mútua entre dois sistemas de modo que, segundo previsões teóricas, consequências termodinâmicas não convencionais poderiam emergir, entre elas a inversão da seta do tempo.

Em um recente artigo, um grupo de pesquisadores de universidades do Brasil, Cingapura, Reino Unido e Alemanha [2] relataram a observação experimental da inversão da seta do tempo em um sistema quântico. No experimento, dois sistemas de spin ½ , ou qubits, são preparados em equilíbrio térmico local com temperaturas TA e TB de modo que TA > TB. Em seguida os sistemas são colocados em contato térmico e as energias internas de cada um e a informação mútua entre eles são monitoradas em função do tempo. Os sistemas de spin ½ eram núcleos de carbono e hidrogênio de uma amostra líquida de clorofórmio diluída em acetona, que foram controlados por técnicas de ressonância magnética nuclear. Quando o sistema foi preparado em conjunto com um estado inicial não correlacionado, calor fluiu espontaneamente de A para B, em conformidade com o sentido usual da seta do tempo. Ao introduzir correlação quântica no estado inicial, observou-se o oposto, ou seja, calor fluiu de B para A demonstrando a inversão da seta do tempo. Este processo inverso ocorreu paralelamente a uma diminuição da correlação inicial, sugerindo que a correlação quântica inicial seria uma espécie de combustível para a operação de um processo com seta de tempo invertida.

Podemos vislumbrar várias consequências interessantes deste experimento. Em primeiro lugar, ele demonstra de maneira enfática a intricada conexão entre mecânica quântica, termodinâmica e teoria da informação. Além disso, a observação de que a informação mútua entre qubits serve de recurso para o controle do fluxo local de calor pode ter importante impacto no desenvolvimento de dispositivos que operem no regime da termodinâmica quântica, como nanomotores moleculares e circuitos de nanoeletrônica. No âmbito conceitual, a noção de que a seta do tempo é um conceito relativo, sujeito a uma dependência das condições iniciais, é talvez a contribuição mais contundente e duradoura deste trabalho.

[1] Crédito da Imagem: Robert Couse-Baker (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). https://www.flickr.com/photos/29233640@N07/8730739154/.

[2] K Micadei et al. Reversing the thermodynamic arrow of time using quantum correlations. arXiv:1711.03323 [quant-ph] (2017).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Correlações quânticas invertem a seta do tempo. Saense. http://www.saense.com.br/2017/12/correlacoes-quanticas-invertem-a-seta-do-tempo/. Publicado em 08 de dezembro (2017).

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