André Neves Ribeiro
14/11/2016
Os elétrons de um átomo possuem energias com valores bem definidos. Cada valor de energia possível define um nível e quando um elétron possui certa energia dizemos que ele ocupa aquele nível correspondente. Acontece que os valores de energias possíveis aos elétrons em átomos não constituem um segmento contínuo da reta dos reais – são permitidos apenas alguns valores bem específicos (determinados pela Equação de Schröedinger) –, dizemos assim que os níveis de energia são discretos ou quantizados. No entanto, quando um grande número de átomos são mantidos próximos, como ocorre em um sólido, os diversos níveis (discretos) de energias dos átomos se combinam e dão origem às chamadas bandas de energia, ou seja, elétrons em um sólido podem variar continuamente suas energias mas dentro de determinadas faixas de valores (bandas).
Podemos entender as propriedades físicas dos sólidos através de suas respectivas estruturas de bandas de energia. Por exemplo, em geral, sólidos que possuem bandas de energia parcialmente ocupadas por elétrons apresentam boa condutividade elétrica e são chamados metais, enquanto sólidos que possuem apenas bandas totalmente ocupadas e totalmente vazias são chamados semicondutores ou isolantes (dependendo de existir uma faixa de valores de energia proibida aos elétrons – banda proibida –, de largura pequena ou grande, respectivamente, entre a última banda de energia ocupada, chamada banda de valência, e a primeira vazia, chamada banda de condução). Mas por quê “em geral”? Bem, na natureza existem mais coisas do que imagina nossa vã filosofia. Vejamos dois casos: 1- se em sólidos com bandas parcialmente ocupadas os elétrons dessa banda interagirem fortemente, é possível que o sistema deixe de ser metálico e torne-se um isolante (isolante de Mott); 2- devido às propriedades topológicas da estrutura de bandas, alguns sólidos são isolantes em seu interior mas condutores na superfície (isolantes topológicos).
Topologia é o ramo da matemática que trata das propriedades de figuras geométricas que persistem (são invariantes) quando as figuras são submetidas a deformações contínuas. Considere como exemplo poliedros simples (figura tridimensional, sem buracos, cuja superfície consiste em faces poligonais; ex.: cubo). Nessas figuras, o número de vértices mais o número de faces menos o número de arestas da superfície dá 2 como resultado, independente do poliedro. Se o poliedro for complexo e contiver p buracos (ex.: cubo com um buraco que o atravessa de uma face à face oposta), então o resultado será 2 – 2p [2]. Para uma superfície fechada qualquer contendo p buracos, o teorema de Gauss-Bonnet assegura que a integral da curvatura da superfície é 2π×(2 – 2p) [3]. O número de buracos em uma superfície fechada é chamado gênus e é um invariante topológico, isto é, o número de buracos não é alterado quando a superfície é deformada de maneira contínua. Assim, a esfera tem gênus 0 e o toro (bóia) tem gênus 1. Se duas superfícies fechadas possuem o mesmo gênus elas podem ser deformadas uma na outra, mas se possuem gênus diferentes é impossível deformar uma na outra de maneira contínua. Topologicamente, todas as superfícies com o mesmo gênus são equivalentes. Outra quantidade invariante em topologia é o número de nós em uma corda cujas pontas foram “coladas” após dar-se o(s) nó(s). Não importa se você estica, enrola, torce ou faz qualquer outra coisa (contínua) na corda, só será possível desatar o nó se a corda for cortada.
E o que toda essa coisa tem a ver com a física e a natureza? Os vencedores do Nobel de Física de 2016 ganharam o prêmio exatamente porque perceberam a íntima relação entre certas fases da matéria e a topologia da estrutura de bandas [4]. Uma dessas fases é o chamado estado Hall quântico inteiro, que ocorre quando elétrons confinados em uma superfície bidimensional são submetidos a um forte campo magnético perpendicular ao plano da superfície. Diferentemente de um isolante comum, ao aplicar um campo elétrico no material que está nessa fase surge uma corrente elétrica na borda do material com o valor da condutividade elétrica dependendo de um número inteiro (é quantizada). Pois bem, considerando a primeira zona de Brillouin como uma superfície e o fluxo de Berry como sua curvatura, mostra-se que o inteiro que aparece na expressão da condutividade elétrica é similar a 2 – 2p, que em física é chamado número de Chern total [5, 6]. Assim, a diferença entre um isolante comum e o estado Hall quântico inteiro é dada por uma quantidade topológica, exatamente como a esfera e a bóia. O estado Hall quântico é o exemplo mais simples de uma fase ordenada topologicamente. Isolantes topológicos (ITs) são semelhantes a esses estados na medida em que também exigem ordem topológica [5, 7]. Nos ITs os elétrons da superfície têm valores de energia que cruzam toda a banda proibida formando linhas na estrutura de bandas (bidimensional) entre a banda de condução e a de valência. Topologicamente, essas linhas são similares a cordas que se entrelaçam aos pares formando nós no meio e que as pontas estão coladas uma na banda de condução e a outra na banda de valência [8]. O fato dos nós serem invariantes topológicos significa na prática que a caraterística condutora da superfície do material não pode ser eliminada por impurezas ou imperfeições no sólido (que são equivalente a puxar ou torcer a corda sem contudo rompê-la – o que desataria o nó). Algo que do ponto de vista da fabricação de dispositivos tecnológicos é muito útil.
Um aspecto extremamente promissor para a spintrônica [9] sobre os ITs é que os elétrons que constituem a corrente elétrica da superfície comportam-se como carros em uma autoestrada, ou seja, uns elétrons viajam em uma direção (indo) e os outros na direção oposta (voltando), sem contudo um invadir a pista do outro. Mas o mais surpreendente (como se tudo que foi descrito até aqui já não fosse suficiente) é que a escolha sobre qual elétron estará indo ou voltando é feita com base no spin. Todos os elétrons que fluem em uma direção têm o mesmo spin, o que resulta em correntes de spin [7].
O problema é que as propriedades de potencial tecnológico nos ITs são geralmente observadas a temperaturas muito baixas, normalmente exigindo hélio líquido para resfriar os materiais. Além disso, tornar ITs magnéticos é crucial para o desenvolvimento de novos dispositivos tecnológicos, porém, os processo de magnetização usados até então acabavam perturbando significativamente as propriedades de IT. Para contornar esses problemas, recentemente pesquisadores dos Estados Unidos e China, em colaboração, utilizaram uma abordagem nova: colocaram camadas de ITs magnéticos (dopados com cromo), ITM, alternadas por camadas de antiferromagnetos tipo-A (cuja ordem antiferromagnética ocorre entre planos atômicos do material, ou seja, os átomos de um plano possuem o mesmo spin, mas planos adjacentes possuem spins opostos), AFM [9]. Os cientistas descobriram que, embora a magnetização líquida resultante de um AFM seja nula (os spins dos planos se cancelam), a interação na interface AFM/ITM leva a um aumento gigante na temperatura em que o ITM deixa de ser magnético (TC). Enquanto uma camada simples de ITM (de 7 nm de espessura) apresentou um TC de ~ 40 K, a estrutura formada por 10 pares AFM(4 nm)/ITM(7 nm) apresentou TC de ~ 90 K. Pode parecer ainda uma temperatura muito baixa, principalmente quando comparamos aos 300 K da temperatura ambiente, mas 90 K significa algo atingível com nitrogênio líquido (bem mais barato que hélio líquido), o que abre muitas perspectivas. Essa é uma descoberta entusiasmante!
[1] Crédito da imagem: jgbarah (Flickr) / Creative Commons (CC BY-SA 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/jgbarah/3393168616/.
[2] R Courant e H Robbins. O que é matemática? Ciência Moderna (2000).
[3] Wikipedia. Gauss-Bonnet theorem. URL: https://en.wikipedia.org/wiki/Gauss%E2%80%93Bonnet_theorem. Acesso: 12 de novembro (2016).
[4] AM Macedo. E o Nobel vai para…topologia quântica. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/10/e-o-nobel-vai-para-topologia-quantica/. Publicado em 14 de outubro (2016).
[5] MZ Hasan and CL Kane. Colloquium: Topological insulators. Reviews of Modern Physics 82, 3045 (2010).
[6] Topological Insulators – a beginners guide. URL: https://iop.fnwi.uva.nl/cmp//TI.html. Acesso: 12 de novembro (2016).
[7] CL Kane and JE Moore. Topological insulators. Physics World (February), 32 (2011).
[8] HC Manoharan. Topological Insulators: A romance with many dimensions. Nature Nanotechnology 5, 477 (2010).
[9] AN Ribeiro. Spintrônica: a construção de um admirável mundo novo já começou! Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/10/spintronica-a-construcao-de-um-admiravel-mundo-novo-ja-comecou/. Publicado em 10 de outubro (2016).
[10] QL He et al. Tailoring exchange couplings in magnetic topological-insulator/antiferromagnet heterostructures. Nature Materials 10. 1038/nmat4783 (2016).
Como citar este artigo: André Neves Ribeiro. Existem mais coisas na natureza do que imagina nossa vã filosofia! Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/11/existem-mais-coisas-na-natureza-do-que-imagina-nossa-va-filosofia/. Publicado em 14 de novembro (2016).