Bruno Carneiro da Cunha
03/07/2017
E este é o problema exposto: onde está essa energia infinita? Para responder é preciso em primeiro lugar entender que este é um problema teórico, e como tal a resposta depende da aplicação da teoria: em física de matéria condensada temos sempre um número finito de modos de vibração — como, por exemplo, os modos de vibração de um cristal, sempre limitado pelo número de partículas que o compõe, e assim não há problema: vibrações de um cristal são sempre contadas a partir dessa energia mínima, que torna o estudo de vibrações na verdade o estudo de perturbações do cristal. O infinito que aparece na descrição teórica é na verdade um artefato das simplificações tomadas ao descrever o cristal.
Ao transladarmos esta hipótese para a física de altas energias, mesmo sem saber se ela é válida, leva-nos a descrições consistentes: partículas são perturbações do meio, e a energia de ponto zero não é mensurável. Estas descrições encontram respaldo nos experimentos e têm tido muito sucesso no modelo padrão. No tratamento dos livros-texto, o problema da energia de ponto zero é literalmente varrido para debaixo do tapete por meio de um artefato teórico conhecido por “ordenamento normal”. Alguns argumentos podem ser formulados em que esta energia não é de fato mensurável e que só variações em relação a este valor são medidas. Experimentos como o do efeito Casimir acabam ajudando a sustentar esse ponto de vista. Sob qualquer ponto de vista, a validade da ferramenta de teoria quântica de campos na formulação de física de altas energias acaba denunciando que algo como o “ordenamento normal” é de fato implementado na natureza e que a energia de ponto zero não afeta diretamente o comportamento das partículas.
A situação muda de figura, contudo, quando colocamos gravitação no jogo. Pela relatividade geral, toda energia deforma o espaço-tempo. Uma densidade infinita implicaria em um universo onde efeitos gravitacionais seriam infinitos. Mesmo desconsiderando modos correspondentes a comprimentos de onda muito pequenos, da ordem do comprimento de Planck, onde não sabemos se faz sentido falar de comprimentos — ou geometria — esta energia deformaria o espaço-tempo até ele ficar de um tamanho trilhões de trilhões de trilhões de vezes menor que um átomo [3]. Este termo de curvatura decorrente da energia é chamado comumente de constante cosmológica quando introduzido nas equações de movimento. Foi inicialmente introduzida por Einstein nas suas equações para a relatividade geral para tentar salvar a ideia de universo estático. Quando Hubble mostrou que o universo estava de fato se expandindo, foi descartada pelo mesmo Einstein como o “maior erro de sua vida”.
Um dos preceitos norteadores da física de partículas é o adágio “o que não é proibido é compulsório”. Este princípio foi articulado por Murray Gell-Mann, importando-o da novela de T. H. White “The Once and Future King” como uma corruptela autoritária do princípio do direito inglês. Nesse autoritarismo das leis físicas, todo o tipo de interações que não fossem expressamente proibidas por algum princípio ou simetria básica teria de ser considerada. Gell-Mann quis assim dizer que a física deveria ser modulada pelas simetrias.
A natureza, contudo, teve outros planos. A surpresa, cuja medida em 2001 rendeu o prêmio Nobel de 2011 a Saul Perlmutter, Brian Schmidt e Adam Riess, é que o espaço-tempo em que vivemos não é exatamente plano, mas que sua leve curvatura faz com que galáxias distantes passem a se afastar aceleradamente. No espírito da relatividade geral, à causa deste efeito gravitacional que deforma o universo foi dado o nome de “energia escura”.
Como de praxe em cosmologia, essa medida por si só não implica que a energia escura é descrita pela mesma constante cosmológica proposta e descartada por Einstein. Quando confrontado com dados da radiação cosmológica de fundo e de superaglomerados de galáxias, no entanto, resta pouca margem para dúvidas. Vivemos em um universo em que há uma pequena, mas perene e homogênea constante cosmológica, que dominará a evolução do universo até o seu fim e fará com que haja uma “morte fria”, em que todos os seus átomos serão eventualmente separados e sem comunicação um com os outros. Felizmente, não é caso de pânico: isso demorará ainda várias dezenas de bilhões de anos para que o gás intergalático, e um tempo muito maior para as galáxias e para que os buracos negros supermassivos que compõem cada galáxia, evapore e de fato a profecia se cumpra.
Além do desafio em estabelecer a energia escura como constante cosmológica, há o desafio ainda maior em entendê-la à luz do que sabemos sobre o resto do universo: pela discussão acima, do modelo padrão de partículas esperamos uma constante cosmológica enorme. O fato dela ser muito menor que o esperado (por cerca de 120 ordens de magnitude) nos coloca não só o problema de explicar sua pequenez como também o porquê dela não ser exatamente zero. Este é, talvez, o maior desafio atual da física teórica, e neste sentido muitos modelos têm sido propostos mas poucas teorias de fato. Destas, as mais promissoras apostavam em supersimetria — uma simetria que associa cada partícula bosônica da natureza com um “parceiro” fermiônico: as contribuições para a energia de ponto zero de cada uma se cancelam, e assim a constante cosmológica pode ser muito pequena — e um “cancelamento dinâmico” — em que microrregiões do universo, com tamanho característico da ordem do comprimento de Planck teriam uma variação tão grande de constantes cosmológicas diferentes que a impressão do ponto de vista macroscópico seria equivalente a uma constante cosmológica muito pequena.
Nenhuma das duas propostas estão ganhando adeptos: supersimetria não deixou nenhum rastro até agora nos aceleradores de partículas — justamente onde ela seria mais útil, por fatores que voltaremos a tratar no futuro, e o cancelamento dinâmico parece impossível de testar experimentalmente — a menos com a tecnologia atual. Nas palavras de Polchinski: “the cosmological constant is nonzero, therefore we can calculate nothing” [5]. O próprio autor admite que esta frase é algo exagerada, mas o fato é que a crise causada pelo resultado experimental dos grupos de Perlmutter, Schmidt e Riess colocou a física teórica em um problema no qual ela não se via desde o final do século XIX: como no caso da radiação do corpo negro há uma discrepância monumental entre predições teóricas e resultados experimentais.
Tanto do ponto de vista do paralelo histórico, quanto dos prospectos dos resultados experimentais que virão, temos todos os ingredientes para uma revolução profunda de como entendemos o universo. Quem viver verá.
[1] Crédito da imagem: Courtesy Argonne National Laboratory (Wikimedia Commons) / Creative Commons (CC BY 2.0). URL: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=24653972.
[2] Crédito da imagem: Arquivos pessoais de E. Segrè. URL: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Bohr_heisen_pauli.jpg.
[3] O comprimento de Planck pode ser pensado como o comprimento mínimo de um buraco negro: nesta escala a incerteza quântica torna o comprimento de Compton da mesma ordem do raio de Schwarzschild. Sua definição matemática dependendo da constante de Planck, da constante da gravitação universal e da velocidade da luz é lp = (ħG/c3)½ ≈ 1,62×10-35m.
[4] R Amanullah et al. Spectra and Light Curves of Six Type Ia Supernovae at 0.511 < z < 1.12 and the Union2 Compilation. arXiv:1004.1711 [astro-ph.CO]. URL: https://arxiv.org/abs/1004.1711.
[5] J Polchinski. The Cosmological Constant and the String Landscape. arXiv:hep-th/0603249. URL: https://arxiv.org/abs/hep-th/0603249.
Como citar este artigo: Bruno Carneiro da Cunha. O enigma da energia escura. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/07/o-enigma-da-energia-escura/. Publicado em 03 de julho (2017).