Luana Mendonça
19/12/2017

Figura 1 – Um dos representantes do gênero Xenoturbella, X. churro descrita por Rouse e colaboradores em 2016. [1]
Primeiro gostaria de dizer que tudo bem em você não saber o que é um Xenoturbella, eu mesma há 2 anos não sabia nem que esse grupo e seus parentes próximos, os Acoelomorpha, existiam. Porém, no final desse texto, espero que vocês entendam um pouco desses grupos e porquê eles são importantes para a compreensão da evolução dos Bilateria (todos os organismos com simetria bilateral, que inclui a nossa espécie). E eu garanto a vocês, eles não são chicletes, são animais (é o que eu digo a mim mesma sempre que vejo uma imagem)!

Xenoturbella são vermes acelomados (não possui cavidade celômica), com simetria bilateral, que possuem boca, mas não ânus, tem o trato digestivo em forma de saco e não de tubo, com sistema nervoso não centralizado e constituindo uma simples rede nervosa e não possuem órgão reprodutivo [2].

Xenoturbella é o único gênero que representa o subfilo Xenoturbellida e esse subfilo mais o subfilo Acoelomorpha (Acoela e Nemertodermatida) formam hoje em dia o filo Xenacoelomorpha (Figura 2). Todos os representantes desse filo foram inicialmente considerados ‘vermes estranhos’ similares aos platelmintos e colocados no filo junto com planárias, tênias e esquistossomos. Mas a novela desse grupo tem muitos capítulos, bem estilo novela mexicana, então vamos começar!

Figura 2 – Grupos que compõe o Filo Xenacoleomorpha, com Nemertodermatida e Acoela formando o subfilo Acoelomorpha e o subfilo Xenoturbellida sendo irmão deste. [3]
No princípio, os representantes de Acoelomorpha e Xenoturbella, apesar de serem considerados Platyhelminthes não eram ‘irmãos’ e cada um seguiu um caminho diferente na filogenia (estudo da relação evolutiva entre grupos de organismos) e nós vamos seguir a história de Xenoturbella.

Depois de ser removido dos platelmintos, o gênero Xenoturbella foi considerado um molusco, pois Israelson em 1999 [4] achou as larvas do gênero similar as de alguns moluscos, mas isso foi desconsiderado rapidamente, pois larvas e ovos de moluscos constituem o principal item alimentar de Xenoturbella e obviamente o pesquisador em 1999 deve ter olhado larvas de molusco que estavam no trato digestivo dos organismos examinados desse gênero.

Após a curta temporada como Mollusca, o grupo foi colocado entre os Deuterostomia (que são todos os organismos em que, simplificadamente, no seu desenvolvimento embrionário surge primeiro o ânus e depois a boca, e, em oposição temos Protostomia, em que a boca surge antes e o ânus pode nem existir – nós somos deuterostômios) [5]. Mas esse posicionamento de um animal tão estranho (muito estranho, bem chicletudo) gerou um problemão, pois significaria que os representantes de Xenoturbella tinham perdido inúmeras características que são encontradas em todos os Deuterostomia. Porém, mesmo com inúmeras dúvidas, o grupo continuou firme e forte como um deuterostômio, inclusive como um irmão de Hemicordata (Enteropneusta e Graptolithoidea) e Echinodermata (estrelas-do-mar, pepinos-do-mar, bolachas-do-mar) [6]. Esse posicionamento geraria mais uma problemática, pois colocava mais dúvidas a respeito de quais características teriam existido no ancestral comum de Deuterostomia: seriam elas complexas e alguns grupos tinham perdido, ou seriam elas simples e alguns grupos tinham adquirido posteriormente?

Até o momento estamos em 2007, quando alguns pesquisadores colocaram Acoela (membro de Acoelomorpha) dentro de Deuterostomia como grupo irmão de Xenoturbella [7]. E como, nessa mesma época, Acoela e Nemertodermatida já estavam sendo considerados grupos próximos formando o agrupamento Acoelomorpha [8], isso colocou mais lenha na fogueira da dúvida sobre o ancestral deuterostômio, mas nem por isso o posicionamento desses grupos foi rejeitado, pelo contrário, outros estudos mostraram resultados semelhantes [9, 10, 11].

Ok, até agora, nosso gênero já deu uma passeada na árvore filogenética dos animais e parece continuar como um deuterostômio primitivo que provavelmente perdeu praticamente todas as características de um Deuterostomia e que talvez seja próximo de Acoelomorpha. Porém, a similaridade entre esses grupos tinha se baseado em características morfológicas apenas e precisaria de muito mais que isso para ser confirmada. E esse muito mais chegou em 2009 com resultados baseados em análise molecular mostrando que Xenoturbellida e Acoelomorpha eram grupos relacionados [12]. E não apenas isso, os autores mostraram resultados que posicionaram Acoelomorpha na base dos animais Bilateria e uma vez que Xenoturbellida estava relacionado, ambos seriam o grupo mais basal dos animais bilaterais. Os autores também mencionam que a similaridade entre os grupos era mais que evidente, uma vez que eles são muito parecidos no formato e na ausência de várias estruturas.

A relação entre os grupos de vermes (chicletes) estranhos marinhos foi sendo mais e mais confirmada nos anos seguintes [13] e, em 2011 eles já estavam sendo considerados um filo único, os Xenacoelomorpha [14], mas o posicionamento desse grupo ainda não estava certo, pois estudos ainda estavam encontrando evidências de que eles seriam deuterostômios enquanto a maioria dos pesquisadores já tinha se convencido de que eles seriam os animais bilaterais mais basais, então as únicas certezas era que eles não eram platelmintos nem moluscos.

Em 2016, a novela foi se encaminhando para os capítulos finais, pois antes desse ano, apenas duas, eu disse duas, espécies de Xenoturbella eram conhecidas (região do Pacífico) e todos os trabalhos com o grupo estavam se baseando nessas, novamente duas, únicas espécies (o que é pouco, caso não tenha ficado claro). Dois artigos publicados na mesma edição da Nature em 2016 são os responsáveis por colocar vários pontos finais na história de Xenacoelomorpha. Um deles [15] descreve 4 novas espécies de Xenoturbella, encontradas em regiões profundas do Atlântico (México e California) (uma delas é a da figura 1). Além de descrever as novas espécies, esse estudo descobriu que as duas anteriormente descritas para Xenoturbella eram na verdade uma só. O segundo artigo [3] reforça, com fortes resultados, que Xenoturbellida e Acoelomorpha são próximos e que representam o grupamento mais basal dentre os animais com simetria bilateral, colocando talvez o ponto final sobre o posicionamento do grupo.

O mais novo capítulo dessa novela é o estudo de Nakano e colaboradores [16] que encontrou mais uma espécie de Xenoturbella (X. japonica) e levantam a hipótese de que várias características dos atuais membros do gênero já existiam no seu ancestral.

Se substituirmos Xenoturbella, Acoela e Nemertodermatida por Maria Nazaré Tedesco, Maria do Carmo e Maria Isabel teremos uma linda novela das 9. Mas o que tudo isso significa para a evolução de Bilateria? Significa que, se esses grupos são basais e, como encontrado no estudo mais recente [17], carregam características ancestrais, estaríamos mais perto de saber quem foi o ancestral que deu origem aos demais bilaterais, como ele era e quais características foram desenvolvidas posteriormente nos grupos mais ‘evoluídos’… mais do que isso, como basais, esses animais poderiam ter dado origem aos bilaterais atuais e, caso vocês não lembrem, nós somos parte desses bilaterais atuais. Mas será que essa novela chegou ao fim ou ainda teremos clichês como casamento, gravidez e morte em um ou mais capítulos finais?

[1] Crédito da imagem: Greg Rouse (Wikimedia Commons) / Creative Commons (CC BY-AS 4.0). URL: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Xenoturbella_churro#/media/File:Xenoturbella_churro_Rouse.jpg.

[2] RC Brusca et al. Introduction to the Bilateria and the Phylum Xenacoelomorpha. In: RC Brusca et al. Invertebrates. 3 ed. Sunderland, MA: Sinauer Associates, 346-372 (2016).

[3] JT Cannon et al. Xenacoelomorpha is the sister group to Nephrozoa. Nature 530, 89 (2016).

[4] O Israelsson. New light on the enigmatic Xenoturbella (phylum uncertain) ontogeny and phylogeny. Proc R Soc Lond B 266, 835 (1999).

[5] SJ Boulart et al. Xenoturbella is a deuterostome that eats molluscs. Nature 424, 925 (2003).

[6] SJ Boulart et al. Deuterostome phylogeny reveals monophyletic chordates and the new phylum Xenoturbellida. Nature 444, 85 (2006).

[7] H Philippe et al. Acoel Flatworms Are Not Platyhelminthes: Evidence from Phylogenomics. PLoS One 2, e717 (2007).

[8] A Wallberg et al. Dismissal of Acoelomorpha: Acoela and Nemertodermatida are separate early bilaterian clades. Zool Scr 36, 509 (2007).

[9] CW Duun et al. Broad phylogenomic sampling improves resolution of the animal tree of life. Nature 452, 745 (2008).

[10] Fritzsch et al. PCR Survey of Xenoturbella bocki Hox Genes. J Exp Zool 310B, 278 (2008).

[11] SJ Boulart et al. The mitochondrial genome structure of Xenoturbella bocki (phylum Xenoturbellida) is ancestral within the deuterostomes. ‎BMC Evol Biol 9, 107 (2009).

[12] A Hejnol et al. Assessing the root of bilaterian animals with scalable phylogenomic methods. Proc R Soc B 276, 4261 (2009).

[13] C Nielsen. After all: Xenoturbella is an acoelomorph! ‎Evol Dev 12, 241 (2010).

[14] H Philippe et al. Acoelomorph flatworms are deuterostomes related to XenoturbellaNature 470, 255 (2011).

[15] GW Rouse et al. New deep-sea species of Xenoturbella and the position of Xenacoelomorpha. Nature 530, 94 (2016).

[16] H Nakano et al. A new species of Xenoturbella from the western Pacific Ocean and the evolution of Xenoturbella. BMC Evolutionary Biology 17, 245 (2017).

Como citar este artigo: Luana Mendonça. Mais um capítulo na novela ‘Evolução dos Bilateria’: nova espécie de Xenoturbella é descoberta. Saense. http://www.saense.com.br/2017/12/mais-um-capitulo-na-novela-evolucao-dos-bilateria-nova-especie-de-xenoturbella-e-descoberta/. Publicado em 19 de dezembro (2017).

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