Agência FAPESP
23/11/2018

Sambaqui Figueirinha I. [1]
Sambaquis são formados pelo descarte de conchas e de restos de animais marinhos, acumulados ao longo de centenas ou de milhares de anos. Tais formações foram construídas entre 8 mil e 1 mil anos atrás por povos que viveram no litoral da Mata Atlântica. A região tradicionalmente é vista como periférica aos primeiros centros de produção de alimentos na América do Sul, quais sejam os Andes e a Amazônia.

Mas um novo estudo apresenta fortes evidências de que as sociedades que estariam por trás da construção dos sambaquis não eram caçadores-coletores comuns. O trabalho indica manejo ou cultivo de vegetais e uma dieta rica, com elevado consumo de carboidratos.

Resultados do estudo, feito por pesquisadores do Brasil e do Reino Unido, foram publicados na Royal Society Open Science. O trabalho foi feito a partir de dados coletados nos sambaquis Morro do Ouro e Rio Comprido, em Joinville (SC).

“O alto consumo de alimentos ricos em carboidratos nesses dois sambaquis sugere que o sustento de suas populações estava baseado em uma economia mista. Uma economia que aliava a pesca e a coleta de frutos do mar com alguma forma de cultivo de plantas”, disse o bioarqueólogo Luis Nicanor Pezo-Lanfranco, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), primeiro autor do artigo, cujo estudo teve apoio da FAPESP.

Pezo-Lanfranco desenvolveu o estudo no Laboratório de Antropologia Biológica do IB-USP, liderado pela professora Sabine Eggers em parceria com arqueólogos da University of York no Reino Unido e do Museu do Sambaqui de Joinville (SC).

De acordo com a visão tradicional da Arqueologia pré-histórica na América do Sul, os caçadores-coletores que habitavam os sambaquis proveriam seu sustento primordialmente a partir da exploração de recursos marinhos. Tal ideia começou a ser contestada nos anos 1980, a partir do surgimento de evidências dando conta de que teria existido nos sambaquis uma economia muito mais diversificada.

A alta frequência e o grande volume de alguns sambaquis na costa sul do que é hoje o Brasil, contendo centenas de enterramentos humanos, são consideradas evidências da alta densidade populacional, de arquitetura monumental e da complexidade social dos sambaquis durante o Holoceno Médio e Tardio.

Um dos principais indícios a sugerir a ocorrência de uma dieta mais variada nos sambaquis foi a constatação da existência de cáries nos dentes dos esqueletos enterrados, interpretada como decorrência direta do elevado consumo de carboidratos.

Outra pista importante foi a identificação – graças a escavações arqueológicas – de restos de possíveis culturas incipientes, como tubérculos (inhame e batata-doce), milho, palmeiras e anonáceas (a família da fruta-do-conde e da graviola).

O novo estudo tem base em evidências de patologia oral e em resultados isotópicos extraídos diretamente dos esqueletos. As análises revelaram o consumo inesperadamente alto de recursos vegetais, ou seja, de carboidratos, entre as populações que habitaram o sambaqui Morro do Ouro do litoral norte de Santa Catarina durante o Holoceno Médio (de 8 mil a 4 mil anos atrás).

O litoral norte do estado de Santa Catarina tem a maior concentração de sambaquis da costa brasileira. Centenas de locais estão distribuídos em torno da baía de Babitonga.

“Realizamos análises de saúde bucal e isótopos estáveis em esqueletos humanos de enterramentos nos sambaquis do Morro do Ouro e Rio Comprido, para desvendar seu comportamento dietético durante o Holoceno Médio e Tardio”, disse Pezo-Lanfranco.

Morro do Ouro tem sido um local importante na discussão da densidade populacional, saúde e doença, e variabilidade cultural e dietética na costa da Mata Atlântica durante o Holoceno Médio.

Escavações arqueológicas feitas no local nos anos 1980 obtiveram grandes quantidades de vestígios de fauna terrestre e marinha, artefatos, estruturas domésticas e enterramentos humanos.

Os vestígios da fauna incluem diversas espécies de moluscos, peixes e mamíferos terrestres, como paca (Cuniculus paca) e porco-do-mato (Pecari tajacu). Também foram achadas ferramentas de pedra polida e restos carbonizados de frutos de palmeiras.

Segundo Pezo-Lanfranco, no total foram encontrados 116 enterramentos humanos em várias expedições arqueológicas entre 1960 e 1984. A partir da datação do colágeno de ossos realizada por este estudo, sabe-se que o local foi ocupado entre 4,8 mil e 4,1 mil anos atrás, no Holoceno Médio. Análises de minúsculos restos de cálculo dentário realizadas por Verônica Wesolowski, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em 2010 já tinham identificado amostras com batata-doce, inhame e frutos de palmeiras neste sítio.

No sambaqui Rio Comprido, distante 4 quilômetros, foram encontrados, na década de 1970, facas e machados de pedra polida, bem como 67 enterramentos humanos. O local foi ocupado durante duas fases. A fase denominada Rio Comprido 1 (RC1) se deu entre 5,6 mil e 4,3 mil anos atrás, no Holoceno Médio. A fase Rio Comprido 2 (RC2), entre 4 mil e 3,4 mil anos atrás, já no Holoceno Tardio.

Análises morfológicas feitas no estudo incluíram determinações de sexo e idade, bem como análises de patologia oral, de 70 indivíduos – 42 eram de Morro do Ouro (MO) e 28 de Rio Comprido (sendo 16 RC1 e 12 RC2). A análise de isótopos estáveis de carbono e nitrogênio foi realizada em 36 indivíduos: 20 (MO) e 16 RC (sendo 9 RC1 e 7 RCI2) .

Utilizando 11 marcadores de saúde bucal, foram examinados 1.826 alvéolos e 1.345 dentes daqueles 70 indivíduos. Verificou-se que a maioria dos esqueletos analisada era do sexo masculino e tinha, em média, entre 20 e 49 anos no momento da morte.

“A frequência de cáries abrangeu entre 7,6% e 13,2% da amostra. É um resultado maior daquele que seria esperado entre grupos de caçadores-coletores ou pescadores e mais condizente com o padrão encontrado entre os primeiros fazendeiros do Holoceno Tardio de outras regiões como os Andes”, disse Pezo-Lanfranco.

Resultados obtidos com dentes de caçadores-coletores do Holoceno Tardio na Patagônia, por exemplo, têm frequências de cáries entre 3,3% e 5,19%. Já amostras de populações sedentárias mais recentes da Patagônia registram frequência de 10,17%.

O tipo de cárie variou consideravelmente entre os dois sambaquis, mas diferenças estatísticas foram observadas apenas para lesões cervicais (extraoclusais).

A frequência de cárie oclusal foi alta nos dois grupos, variando de 53,7% (MO) a 70% (RC1) dos indivíduos analisados. A maior frequência de cárie de esmalte foi registrada em RC1. Por outro lado, MO teve a maior frequência de cárie extraoclusal.

Lesões cariosas têm sido associadas a dietas ricas em carboidratos fermentados e açúcar. Dietas com elevada quantidade de alimentos cariogênicos têm uma frequência aumentada de cárie e de cavidades extraoclusais em superfícies lisas dos dentes.

“Portanto, é provável que as pessoas do Morro do Ouro tenham levado uma dieta mais cariogênica e refinada, por exemplo, por meio do cozimento dos alimentos, quando comparada à do Rio Comprido 2”, disse Pezo-Lanfranco.

Carboidratos processados

Estimativas alimentares baseadas na análise isotópica de carbono e nitrogênio obtidos do colágeno de dentes e ossos revelaram a composição da dieta. A principal fonte de proteína foi o peixe, variando de um mínimo de 33% nos indivíduos de Morro do Ouro e de cerca de 87% a 90% em Rio Comprido 2.

Essas estimativas sugerem que o consumo de vegetais forneceu a maior parte das calorias em Morro do Ouro (em média 48%), seguido por peixe (44%) e, em menor grau, por mamíferos terrestres (média de 8%), provenientes da caça.

Os resultados obtidos com o colágeno dos indivíduos de Rio Comprido 1 indicam a pesca como principal fonte de calorias na dieta (em média 48%), seguida de vegetais (44%) e mamíferos terrestres (7%).

Pezo-Lanfranco observa que esses são percentuais bastante similares ao verificado para Rio Comprido 2: peixe (48%), vegetais (42%) e caça (10%). Lembrando que todos os percentuais citados são valores médios, podendo haver grande variação individual.

A principal fonte de proteínas entre os indivíduos de Morro do Ouro foi peixe (58% a 84%). Essa também foi a principal fonte de proteínas em Rio Comprido 1 (66% a 85%) e RC2 (74% a 83%). São estimativas ligeiramente superiores aos valores observados para grupos caçadores-coletores pré-históricos e contemporâneos.

“A alta proporção de cáries crônicas ou estáticas entre os indivíduos de Rio Comprido 1 sugere uma dieta menos cariogênica em relação ao Rio Comprido 2 e Morro do Ouro. Está possivelmente associada ao conteúdo de fosfato e cálcio presentes em dietas de origem marinha. É o que se espera de um grupo de pescadores”, disse Pezo-Lanfranco.

“Por outro lado, a maior frequência de cáries profundas e extraoclusais em Rio Comprido 2, e notadamente em Morro do Ouro, aponta para o consumo disseminado de carboidratos cariogênicos e processados, ou seja, plantas assadas ou cozidas. Em Rio Comprido e Morro do Ouro as evidências sugerem a existência de algum tipo cultivo de plantas, mesmo que incipiente”, disse.

O estudo aponta que a cárie cervical é o tipo mais comum de cárie extraoclusal em Morro do Ouro (29%) e tem sido associada ao consumo frequente de sacarose e amidos fermentáveis sólidos, altas concentrações de lactobacilos salivares e deposição de cálculo cervical com retração gengival.

“Frequências de cárie cervical em torno de 16% foram relatadas em caçadores-coletores do Pleistoceno do norte da África e interpretadas como os primeiros sinais de coleta e armazenamento sistemáticos de alimentos vegetais ricos em carboidratos”, disse Pezo-Lanfranco.

Nos agricultores andinos, a cárie cervical foi atribuída ao consumo de bebidas fermentáveis preparadas com mandioca, milho e outros alimentos ricos em amido. Estudos anteriores mostraram que sacarose, amido com sacarose, frutos e dextrose de amido, em ordem decrescente, estimulam a produção de cárie de superfície lisa e cárie cervical, enquanto altas quantidades de maltose e amido levam preferencialmente à cárie cervical.

“As dietas em Morro do Ouro eram provavelmente mais ricas em carboidratos cariogênicos do que aquelas em Rio Comprido e comparáveis com dietas de alguns povos agricultores da antiguidade”, disse Pezo-Lanfranco.

Os índices de desgaste dentário em Rio Comprido e Morro do Ouro foram os mais baixos entre os vários grupos de sambaqui estudados em outros locais. A dieta em Rio Comprido 2 parece ter sido mais abrasiva do que em Morro do Ouro. Em Morro do Ouro foram registrados vasos de pedra e pedras de moagem que podem ter sido utilizados na fabricação de farinha. Uma análise microscópica do fundo destas vasilhas ainda está pendente.

“Esta pesquisa coloca os neotrópicos no mapa dos centros mundiais de produção de alimentos da antiguidade. O litoral da Mata Atlântica tem sido amplamente periférico nessa narrativa, apesar de sua biodiversidade única e dos registros arqueológicos da densa ocupação humana desde o Holoceno Médio. O novo estudo desafia tal visão tradicional. Reunimos evidências bastante convincentes da ocorrência de dietas ricas em carboidratos entre os caçadores-coletores da região de Joinville há 4.500 anos. A confirmação de que se trata de sistemas de produção de cultivares e o estado de domesticação dessas espécies aguardam estudos futuros”, disse Pezo-Lanfranco.

O artigo Middle Holocene plant cultivation on the Atlantic Forest coast of Brazil? (doi: 10.1098/rsos.180432), de Luis Pezo-Lanfranco, Sabine Eggers, Cecilia Petronilho, Alice Toso, Dione da Rocha Bandeira, Matthew Von Tersch, Adriana M. P. dos Santos, Beatriz Ramos da Costa, Roberta Meyer e André Carlo Colonese, está disponível em http://rsos.royalsocietypublishing.org/content/5/9/180432. [2]

[1] Crédito da imagem: Thigruner (Wikimedia Commons), domínio público.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Figueirinha_I_Central.JPG.

[2] Esta notícia científica foi escrita por Peter Moon.

Como citar esta notícia científica: Agência FAPESP. Construtores de sambaquis tinham dieta sofisticada. Texto de Peter Moon. Saense. http://www.saense.com.br/2018/11/construtores-de-sambaquis-tinham-dieta-sofisticada/. Publicado em 23 de novembro (2018).

Notícias científicas da Agência FAPESP Home