UnB
04/12/2019
O norte de Minas Gerais, formado por 89 municípios, é conhecido como Gerais e possui uma das culturas mais ricas do país. Ali moram os chamados geraizeiros, comunidades tradicionais que se concentram na região de transição entre o Cerrado e a Caatinga, dispersos pelo norte do estado, o segundo mais populoso do Brasil, mas também pelo oeste da Bahia, Tocantins e Goiás.
Os geraizeiros foram reconhecidos pelo governo federal somente em fevereiro de 2007, a partir do Decreto Nº 6.040, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. A história desse povo está retratada no livro Gerais de dentro a fora: identidade e territorialidade entre geraizeiros do norte de Minas Gerais, da professora da Faculdade UnB Planaltina Mônica Nogueira. A obra é fruto de sua tese de doutorado, defendida em 2009.
A ideia do estudo nasceu das ações de Mônica como ativista no campo socioambiental. “Pude testemunhar o surgimento da discussão sobre a noção de povos e comunidades tradicionais no Brasil”, conta. Na época, a pesquisadora era integrante da Rede Cerrado, coletivo que defende o bioma e seus povos. Ao se dar conta de que os geraizeiros eram ainda pouco conhecidos, decidiu então que esse seria o tema de sua tese.
Segundo a professora, os geraizeiros ficaram por muito tempo em isolamento relativo, o que permitiu o desenvolvimento de uma cultura característica. Eles têm formas particulares de se relacionar com a natureza, sistema de produção bem adaptado ecologicamente e modo de viver peculiar. “Eles têm uma identificação muito profunda com as paisagens do Cerrado, tanto que estão dispostos a defendê-lo, mesmo diante de grandes forças econômicas com interesses contrários aos seus”, relata.
Mônica conta que a ligação com o Cerrado é tanta que determinou a maneira como chamam a terra: Gerais. O termo pode se referir tanto ao bioma quanto às chapadas do norte do estado onde residem.
ALTERAÇÕES AMBIENTAIS – Ao longo das últimas décadas, a região foi tomada por extensos plantios de eucalipto, o que transformou o convívio da população local. O plantio de maciços de eucalipto foi estimulado por uma política de Estado na década de 1970 que envolveu o arrendamento de terras tidas como desocupadas a empresas plantadoras de eucalipto. A implantação do monocultivo da planta causou alterações ambientais severas, como a perda de biodiversidade e a escassez de água.
Espalhada pela zona rural dos municípios, a população do norte de Minas vive em comunidades que já foram afetadas pelo eucalipto. “Nada incomoda os geraizeiros, somente o eucalipto”, declara João Chiles, geraizeiro mestre em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT) da UnB.
Por meio de sua pesquisa, ele demonstrou aspectos relativos ao modo de vida e de produção do seu povo, com foco sobre a produção agrícola geraizeira e no papel dessas comunidades para a conservação da agrobiodiversidade.
Moisés Oliveira, geraizeiro da comunidade de Sobrado, situada em Rio Pardo (MG), e também mestre pelo mesmo programa da Universidade, aproveitou a dissertação para aprofundar o entendimento sobre as unidades de paisagens reconhecidas e manejadas por eles.
Moisés, que defendeu o mestrado em 2017, enfatiza o senso comunitário e de pertencimento ao local que seu povo tem. “Para nossa gente, as chuvas das ramas anunciam que é tempo da solta no Gerais. O gado de cada um é cuidado por todos”, conta.
VISIBILIDADE – Moisés e João Chiles representam uma nova geração de pesquisadores, membros de povos e comunidades tradicionais que se formaram mestres pela Universidade de Brasília. Os dois produziram pesquisas de grande relevância para o campo e ampliaram a comunidade de pesquisadores sobre a realidade e os sistemas de conhecimento de povos e comunidades tradicionais no Brasil. “São duas dissertações fundamentais no campo de pesquisa sobre os geraizeiros”, avalia Mônica.
O movimento desse povo, presente nas dissertações de João Chiles e Moisés, vai muito além da luta pelo Cerrado, pelas chapadas e pela água do sertão. Caracteriza a defesa por territorialidade e o pertencimento a esse lugar. Hoje, o processo é de busca pela retomada do território e pela garantia das condições de defesa, do modo de vida e da cultura geraizeira.
TESE E LIVRO – Para Mônica Nogueira, o maior feito de seu trabalho foi colocar os geraizeiros no mapa. “Quando se publica uma tese, um efeito interessante é que um grupo pouco conhecido passa a ter mais visibilidade”, comenta.
Uma das fundadora do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT), Mônica afirma que o curso ajuda a reconhecer a existência de outras formas de conhecimento além da ciência. “No MESPT, a gente já teve três geraizeiros formados”, contabiliza a docente.
Pesquisas sobre os geraizeiros aparecem cada vez mais, segundo ela, e “estão crescendo junto aos próprios geraizeiros”, avalia. “Como os estudos sobre os geraizeiros são muito recentes, ainda há muitas comunidades e aspectos de seu modo de vida não conhecidos por nós”, acrescenta a autora.
As seleções do MESPT são amplamente divulgadas junto a redes de organizações de base comunitária e apoio a povos e comunidades tradicionais em todo o país. Mônica diz ainda que o processo é modelado para a composição de turmas multiétnicas, a fim de valorizar aspectos importantes para este tipo de formação. [1]
[1] Texto de Juliana Eichler e Nicolau Ferraz, da Agência Facto.
Como citar esta notícia científica: UnB. Geraizeiros: uma história de luta pelo Cerrado brasileiro. Texto de Juliana Eichler e Nicolau Ferraz. Saense. https://saense.com.br/2019/12/geraizeiros-uma-historia-de-luta-pelo-cerrado-brasileiro/. Publicado em 04 de dezembro (2019).